quinta-feira, dezembro 28, 2006

«Não sei, ama, onde era, nunca o saberei…

Sei que era Primavera e o jardim do rei…

(Filha, quem o soubera!...)


Que azul tão azul tinha ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha, porque era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha!...)»

Fernando Pessoa






No país de mentira que me adoçou a infância, o Natal chegava sem frio nem geada, muito menos neve. Natal Branco não passava de um filme maravilhoso em que Bing Crosby trazia para mim as canções e o Natal de neve e fantasia que me deslumbravam.

O meu Natal de menina começava quando, logo no início de Dezembro, meu pai trazia para casa a primeira ceira de figos. Figos secos, acamados uns sobre os outros que íamos tirando ao longo dos dias. Doces, doces… É que a época natalícia era esperada principalmente pelas guloseimas: rabanadas, sonhos, bolinhos cortados em forma de sinos, estrelas, pinheiros, enfeitados de chocolate e granjeia, bolos de frutas. E nozes e amêndoas e avelãs, pinhões, passas de uva, de ameixa, de pêra. Eu só gostava dos pinhões porque minha mãe me deixava enfeitar um bolo de chocolate, coberto, onde eu pacientemente espetava cada pinhão de forma a parecer um ouriço.

Só tive a minha primeira Árvore de Natal aos nove anos, quando mudámos para a casa nova. Normalmente, o Natal era passado na fazenda. Ali chegados, a azáfama começava. Os bolos eram batidos com uma grande colher de pau em terrinas de esmalte brancas e redondas, com um pé que se entalava entre as pernas para se poder bater a massa a duas mãos. As claras eram batidas em castelo com um garfo, só mais tarde com varas, numa travessa, também de esmalte, com uma barrinha colorida à volta. À mão, pois claro.

No quintal, o peru condenado amaciava a carne gorgolejando aguardente. De crista pendurada bico abaixo, balançava no coradoiro da roupa, sem tino, uma e outra asa no chão, segurando o corpo pesado. Motivo de galhofa para a miudagem na qual me incluía, sinto hoje dizê-lo.

Dentro de casa, uma toalha branca bordada a cores, com sinos e velas e azevinhos e estrelas, mais umas letras a dizer Bom Natal, Feliz Ano Novo, Boas Festas, cobria a mesa onde já estavam dispostos em tacinhas as frutas secas e os bolos. Num móvel pequeno ao lado do sofá, umas figurinhas de Presépio se ordenavam sobre pedras e musgo que proliferava junto ao tanque das avencas. Ali se punha o «sapatinho» para o Menino Jesus colocar uma lembrança a cada um, enquanto dormíamos.

Na Consoada, não havia jantar, era ceia. Meu pai contava-nos como era em sua casa, na «Metrópole», junto dos avós que não conheci: a mesa era mais parca, mas sempre de festa, com bilharacos em vez dos sonhos. Contava também que, em dias normais, a refeição da manhã era sopa em vez de leite; o almoço chamava-se jantar e à noite ceava-se. Costumes estranhos para nós que detestávamos sopa, como a maioria das crianças.

Depois da ceia, mesa arrumada novamente com as iguarias próprias, era invariavelmente colocada uma garrafa de vinho do Porto e alguns cálices. Para que, naquela noite mágica, também os nossos mortos viessem partilhar da festa da família.

terça-feira, dezembro 26, 2006

A fogueira








Natal é um nome mágico. Costela que sou de Ribatejano – se atender aos preceitos bíblicos da criação da Mulher – sinto mais esta região como estremenha, dada a proximidade e a atracção das gentes pelas terras da beira-mar.

Já adulta, encontrei aqui um Natal bonito. No largo grande da casa-mãe, diante do alpendre do antigo lagar de azeite, ao fim da tarde do dia da Consoada, os homens empilham raízes monstruosas de pinheiros, enquanto as mulheres fazem os coscorões e aprontam a ceia. Acende-se então a fogueira alta e enorme, que arde pela noite adentro, por todo o dia de Natal e só deve findar depois da segunda meia-noite.

Nestes últimos trinta anos, a fogueira uniu a família pequena, cada vez mais pequena. Morreu a Mãe que eu conheci e amei, primos e irmãos estimados deixaram o nosso convívio e fazem falta, muita falta.

Os que sobraram querem manter viva a fogueira, mas falta o calor dos que partiram sem volta, falta o vigor dos que a vida levou para o outro lado do oceano. As noites já não se prolongam nela a grelhar as carnes pela noite fora, a aquecer o vinho novo, a dar alento até chegar a madrugada.

São mais os velhos, do que os novos. Mas a fogueira ainda arde.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

O sentido das palavras

«Como as ondas do mar que vão e vêm

pela atracção da Lua

outras ondas se alteiam atraídas

por outras luas, satélites do rosto.

Enquanto umas de amor cobrem as praias

e as penetram de espuma,

estas não amam, não molham, não se esgotam.

Mudam de cor, apenas.

Vêm de dentro e sobem, num conflito

sem tréguas nem fraquezas,

deixando o rosto esfarelado e seco

como os desertos quando o vento sopra.»

António Gedeão



Sou uma mulher de palavras. E de palavra também, acrescento para quem me não conhece. Gosto de olhar as palavras escritas, gosto de as ouvir bem ditas, gosto de ver a beleza de algumas nossas que soam tão bem. Não terá sido sem razão que Velásquez chamou ao seu quadro «Las Meninas»…

Às vezes dou comigo a implicar com uma palavra, a tentar colher-lhe o sentido e logo desviar-me dela, porque me não convém. Desta vez foi o Norte. O Norte que é indicado pela Estrela Polar que mal lobrigo nos céus, o Norte donde nunca vem o sol e tem, portanto, pouco a ver comigo. Nasci no hemisfério sul e prefiro-o ao Setentrião. Depois, estou caminhando francamente para o Ocaso, não há norte a perder, menos ainda a procurá-lo neste meu percurso. Assim por que não tomar como referência a «estrela» do Ocaso, a Vénus que surge a brilhar no Poente ao cair da noite? Ora direi então que estou despoentada, quando o horizonte que me surge se queda fechado sem os montes que almejo, sem a planície serena ou as dunas que despencam sobre a praia quente, sobre o mar por que anseio…

Estamos em Quadra de Natal e eu gosto da Consoada. Quereria ter um livro para cada sapatinho, ter muitos sapatinhos pendurados na lareira de casa. Depois, para meu próprio gozo, ler e mimar cada um deles pela noite adentro. Mas já não há crianças que acreditem em sapatinhos a guardar prendas, e ainda bem, porque o país e o planeta que lhes deixaria, seriam um presente envenenado.

Mas sinto-me feliz por sentir ainda, perto de mim, corações a pulsar mais forte por uma surpresa pequenina, na magia duma Noite de Natal.

domingo, dezembro 17, 2006

Aluno sofre...!

«Eu não era sensível: era, segundo o professor de Português do liceu, uma besta. Lia as minhas redacções, fixava-me em silêncio um minuto, atirava lá do alto, lá do fundo, para o respeito da turma

- O número cinco é uma besta

e batia com a régua na secretária a sublinhar cada palavra

- Escrever é sujeito, predicado, complemento directo, ponto final e acabou-se, sua besta, anda a gozar comigo?»

António Lobo Antunes

Há outras recordações, felizmente.

Há outras referências, bem mais generosas, daqueles que moldam as mentes e as mãos de uma criança. Menos duras, mais pedagogicamente correctas, mais amáveis. Porventura nem sempre mais fecundas.

Ser professor é, antes de mais, ser intuitivo. Perceber, numa criança, onde estão as suas sensibilidades, nem sempre manifestadas da melhor forma, mas sempre à flor da pele. Depois, ser pedagogo, ser professor. O real problema é que estes dois palavrões (palavras de vinte e sete e quinhentos, dizia-se quando eu andava na escola e o dinheiro era caro em todos os sentidos) são apenas isso, palavrões que a massificação mais e mais dificultou, adulterou.

Vejo-me sentada ao lado do escritor nessa sala de aula. Não o conheço pessoalmente, que vivi os tempos de liceu noutras latitudes, porém há em comum o facto de termos ambos percorrido o mesmo número de anos nas lides da vida. Entrei na escola precocemente, por insistir em acompanhar meu irmão mais velho e, talvez por isso, também pelo interesse, quem sabe a submissão ou o medo, nunca provei o tacto da palmatória que repousava na gaveta central da secretária do professor. Da relação com os meus professores, ficaram lembranças de carinho, de atenção na sua maior parte, quando muito de distância em alguns outros. Se, já adulta, enfrentei algum mestre, hoje ponho em questão se não terei sido injusta.

Mas voltando ao liceu, lá vai meio século. Os nossos professores eram, antes de mais, homens e falocratas. Assim o demonstravam no tratamento distante e por vezes abusivo que nos reduziam a pó:

- As sopeiras são para os magalas! Rua!

- A menina estava bem era em casa a coser meias…

Para os rapazes, sacripanta e escaganifobético foram os nomes repetidos anos a fio, por um professor a quem devo a segurança da pena hoje, alguém a quem já tive oportunidade de louvar aqui e mereceu a minha estima profunda, o Amigo que acompanhei com carinho até ao fim dos seus dias.

A sua mão trémula, em fim de vida, letra já incerta, chegou a justificar: «a si, que sempre prezei e prezo como filha, eu devo a explicação que já antevê, como exímia professora de hoje: eu quis sempre prevenir os alunos contra possíveis descuidos que pudessem mais tarde trazer-lhes prejuízos escolares. E era daí, que nasciam as minhas exigências – prevenir “chumbos”, sempre nocivos.»

Voltando a António Lobo Antunes, entrevejo uma necessidade de afirmação que só poderia ter sido ultrapassada por afectos que faltaram à sua grande sensibilidade de menino. «…o professor de desenho geométrico insiste, numa fúria de que não entendo o motivo

-Vou reprovar-te, bandido

enquanto eu mastigo pastilhas elásticas desafiadoras. O professor dança nas perninhas curtíssimas

- Cospe isso, malandro

e continuo a mastigar, de olho nele, pronto a apunhalá-lo com o tira-linhas. Que estupidez o liceu…»

Os homens e os professores mudaram. As escolas também. Mal seria se assim não fosse. É o país novo na pujança da sua juventude. Inserido nas novas tecnologias, mais sabedor.

Resta lembrar-lhe que precisa de conhecer a «Cartilha Maternal» e não esquecer João de Deus.

sábado, dezembro 16, 2006

Saudade desta infância


(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.





quarta-feira, dezembro 06, 2006

Olhar em volta

«Por uma manhã de Setembro, límpida e serena, como às vezes são na nossa terra as manhãs de Outono, Jorge saiu a pé, a passear pelos campos. Errou ao acaso por bouças e tapadas, seguiu a estreita vereda a custo cedida ao trânsito pela sôfrega cultura das terras marginais do pequeno rio da aldeia. Depois subindo a uma eminência, parou a contemplar do alto o aspecto do feracíssimo vale, que suavemente se lhe abatia aos pés, e no fundo do qual se erguia, de entre veigas e pomares, a Herdade (…)

– Em flagrante delito de meditação poética, Sr. Jorge! Bravo! Já não desespero de te ver um dia fazer versos.

– Quem se senta no alto de um monte, depois de subir toda a encosta, pode fazê-lo simplesmente com o prosaico intento de tomar fôlego. Se isto fosse sintoma de poesia, então…»

Júlio Dinis




















Por que nunca paramos no meio do caminho, simplesmente para olhar o que nos rodeia, para sentir o cheiro dos eucaliptos novos? Eu sei porquê, todos temos pressa de chegar.

E refiro-me precisamente ao eucalipto porque é ele que altera a nossa floresta mediterrânica de pinhais e soutos e olivais. É ele que suga os parcos lençóis de água e ajuda à desertificação anunciada, mas exala um cheiro refrescante e leve (que me leva à «cortina» da Sacaála, às amoras…) em dias de calor intenso. Pois é, toda a medalha tem seu reverso: de um lado a degradação e o declínio, do outro a economia do país e a beleza, o odor, o atear dos sentidos.

Nos nossos passeios pela minha África, meu pai tinha por hábito parar sempre em cima das pontes. E saíamos todos para ver o rio. Lamacento e caudaloso, espraiando-se sorrateiro pelos capinzais das margens; parado e aquietado por uma barragem; límpido e alegre despenhando-se em cascata ou correndo ligeiro, negaceando as pedras lisas.

Parar sobre as pontes seria talvez o lugar mais seguro para simplesmente se olhar a paisagem em volta, para se encontrar o sítio mais aprazível para uma pescaria, um piquenique também. Sempre junto à água.

Na memória, as pontes sobre o Kolongo, o Kuíto, o Kuando, o Kussava, o Kurimahala, são as mais presentes. O Lucala, atravessei-o vezes sem conta sobre uma jangada; também o Kunene, em Vila Folgares (Capelongo), para uma caçada aos elefantes que não se concretizou porque as chuvas chegaram de sopetão, antes do tempo previsto. Tivemos de regressar a casa.

Eu também tive de regressar à terra que viu nascer os meus maiores. As minhas pontes, os meus rios, ficaram lá.

Eu, continuo aqui, num outro rio, sem água e sem magia.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Fim de Outono


«Eu vigio a minha permanência na terra,

leito eficaz para cada um engrandecer

diariamente. Não posso portanto permitir

que alguém, de quem não considera este clarão

diáfano necessário à compreensão,

queira incutir no espírito humano

a ideia de uma essencialidade colectiva

desenraizada daquele fundo com que cada um

se torna essencialmente em ocasiões únicas

o ordenador de rosas registadas por sinais.»

Fiama Hasse Pais Brandão








quinta-feira, novembro 30, 2006

Às vezes...


Ontem o Presidente da República divulgou a sua anuência ao referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez. A propósito, em relação a este assunto tão delicado, à forma como se fala nele nos órgãos de comunicação social, sinto-me incomodada. E às vezes sinto vergonha.

É um sentimento feroz que surge na hora menos adequada, quando nos sentimos seguros, cauterizados já por longos anos de poder sobre as nossas emoções. Da última vez foi aquela mulher da vizinha Espanha que me surgiu no noticiário da noite, determinada e firme na sua resolução de abrir uma clínica em Portugal para a Mulher Portuguesa proceder à interrupção da gravidez, agora que vai, decerto, ser aprovada em referendo.

Qual coruja atenta na noite, preparada desde o escurecer, contactos firmados com homens de governo, médicos portugueses, enfermeiros portugueses, empregados portugueses, para mulheres portuguesas. Senti-me o rato. O pobre rato que tem de sair a coberto da noite para prover à sua subsistência. Mas a coruja também está lá. E tem meios para sentir que alguém mexe por perto e ataca. E tem esse direito. Para ela também existe a lei da sobrevivência.

Sou mulher e vou, pela segunda vez, votar a favor, no referendo.

Mas não sou a favor do aborto. E não sou católica, apenas e simplesmente cristã. Para mim é inquestionável que a mulher decida sobre si própria, avalie da sua força para colocar no mundo uma criança mal-formada e da sua capacidade para a acompanhar nos anos subsequentes; sobre a sua coragem de gerar uma criança saudável para a entregar às instituições deste país que negam sistematicamente a adopção. Qualquer lar, qualquer casal hetero ou homossexual, qualquer cidadão, pessoas solteiras ou separadas, mais novas ou mais velhas, qualquer lar, repito, capaz de oferecer carinho e protecção, é melhor do que todas as instituições que temos.

Voltando ao aborto, é claro que sou contra, ninguém tem o direito de privar alguém de viver, se estiver são, se o concebeu. Só não sou contra as mulheres que o praticam. Não acredito que seja uma decisão tomada de ânimo leve, nem trauma ultrapassável para qualquer mulher, viver uma experiência semelhante.

Sou contra a educação que continua a não existir em Portugal. Sou contra a falta de formação de todos os que não conseguem educar as mulheres (e os homens!) portuguesas para a sabedoria primeira, para o conhecimento atempado de que NÃO É PRECISO CHEGAR AO ABORTO para se não ser mãe, se não quiser, se não puder.

Perde-se tempo nas escolas, nas igrejas, nas instituições que pagamos a preço de ouro, para se discutir sobre se deve ou não haver uma disciplina de educação sexual, quem deve dar essa disciplina, em que ano de escolaridade deve começar, em que minuto começa a curiosidade sobre o instinto primário de todos os seres vivos, a reprodução pura e simples.

Para mim, a educação sexual está aí, explícita, já nem só no cinema, mas diariamente na TV, nos anúncios, nas novelas, impressa nos jornais, nas revistas, nas paredes, nos placares de rua. Não se pode fugir a ela. Falta apenas complementar pela informação directa e urgente, tão cedo quanto possível, cada vez mais cedo, de que há as estratégias actuais mais diversas para se iniciar uma actividade sexual com segurança.

Recordo a «minha velha» escola que era anualmente invadida por delegados farmacêuticos oferecendo pensos higiénicos às meninas e conversando uma hora com cada turma sobre fertilidade e higiene, na presença professor de Ciências ou do director de turma; como se mostravam profícuos muitos desses encontros, numa descontracção que possibilitava perguntas e respostas posteriores concretas, a dúvidas dos adolescentes e pré-adolescentes!

Abram as escolas a profissionais de saúde, deixem que as farmácias façam serviço útil sem ser a expensas do estado, sem sobrecarregarem os alunos com mais horas na escola! Chega de áreas de projecto leccionadas por quem não sabe fazer para si um projecto de vida, de estudos acompanhados que o não são, de aulas de substituição que são um sofrimento para alunos e professores, de educação cívica que disso só tem o nome!

Leiam-se os bons autores de Língua Portuguesa, façam-se aulas de Poesia, olimpíadas de Matemática, conte-se a História do Homem e da Terra, ensine-se Língua Estrangeira, Desporto, Artes, praticando e exigindo trabalho aos alunos, também resultados aos professores. A estes, avaliem-nos, mas não coarctem, não reduzam, não abatam, não humilhem!

Às vezes sinto vergonha… de DIZER que sou professora.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Morreu um Poeta


Exercício Espiritual


É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia

É preciso dizer azul em vez de dizer pantera

É preciso dizer febre em vez de dizer inocência

É preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano

É preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora

É preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano

É preciso dizer Maria em vez de dizer aurora







segunda-feira, novembro 27, 2006

Kevee


«Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.»

Eugénio de Andrade



Os fenómenos da natureza transmitem-me sempre intranquilidade.

A chuva ansiada que cai sem pejo sobre os indefesos da terra, imparavelmente, em rajadas de vento sucessivas, soando em pingos grossos tombados das goteiras quando esmorece a sua força logo retomada, inquieta-me. Ouço a sua impetuosidade que só aceito por breve tempo; se contínua, sinto-a incontrolável e pressinto os danos.

O mundo em que vivo é pequeno, cada vez mais pequeno e respirar é preciso. Eu também sou um fenómeno da natureza no mesmo sentido em que me sinto por vezes, demasiadas vezes, cada vez mais vezes, fluir sem controle, esbarrando nos telhados duros, escorrendo nas estradas de asfalto, formando rios que arrastam máquinas, casas e gentes.

Sei que é inexorável, e desejável, o meu deslizar em socalcos de serra até à planície, a anhara que ladeia o meu rio, rio que lava as minhas pedras do jade mais fino, guardando em si o resplendor de um arco-íris.

Em sonhos vagueio erecta e só, abaixo da casa grande, sigo a vala que desce até à lagoa e paro antes de lá chegar. Para além do lago começa a mata, mas antes, à direita, a elevação das areias é nítida, as areias brancas donde flui a nascente de águas límpidas e o vale que se estende até ao rio. Ouço a voz dos séculos no suor dos homens que escavaram a mina, nos barcos rumando ao Brasil, não cheios de escravos mas de seixos luzentes, na pedra latina do nome do cota que não seria idoso.

Falto à verdade, eu não estou só. Comigo os seres de raça negra que me embalaram o berço, me limparam as lágrimas, me carregaram aos ombros, me ensinaram a falar com bichos e plantas, a respeitar os seres que me rodeiam, aqueles que me deram a graça, os que me esperaram em vão e os que esperam ainda que faça jus a esse nome que gravo na memória.

É por tudo isso que ainda sobrevivo.

quinta-feira, novembro 23, 2006

Quem não gosta do arco-íris?

«- Louco, você? Só porque consegue entender as árvores ou falar com as coisas? Bobagens! Loucos são os outros homens que perderam a poesia de Deus, que endureceram o coração e nem sequer podem entender os próprios homens. Esses são loucos.»

José Mauro de Vasconcelos



Já não rego as flores do jardim, que o meu jardim é desvario. Depois, a relva não esconde a sua preferência por outros amores, revela bem o seu derriço à carícia da água que lhe vem directamente dos céus.

Todavia sinto falta do arco-íris pequenino com que o sol me presenteia à sua despedida, ao fim do dia, no repuxo fino que faço sair da mangueira de rega. O mesmo arco-da-velha da minha infância, quando aparecia enorme nas nuvens escuras que traziam a trovoada e a chuva. Também o manto-de-deus porque perfeito como ele, redondo, redondo, e às vezes repetido, a dizer que Deus estava ali para proteger os meninos dos relâmpagos e trovões. Bem mais tarde, aquele deslumbramento ao vê-lo pairar por sobre as águas do Niagara, antes do sol-pôr.

Lobo Antunes disse numa entrevista recente que tem alguma dificuldade em falar da idade, porque cada um de nós tem a idade com que nasce. De acordo, incondicionalmente. Falou ele, senti eu. Há quem seja velho quando nasce, há quem seja sempre menino. Há quem cresça devagar e quem nunca envelheça. Há quem envelheça sem nunca crescer.

Há decerto uma idade ideal em cada ser que permanece para todo o sempre e aflora aqui e além, para lá das rugas, do olhar nublado, do sorriso ou do franzir do cenho. Também nas palavras. Independentemente dos anos contados, dos êxitos, das vicissitudes, das angústias, dos desejos alcançados, das saudades, dos anseios mais fundos nunca concretizados.

E é por isso que eu gosto do arco-íris. É a curva mansa e perfeita do esplendor da vida nos tons completos do universo. Os que o nosso olhar distingue e todos os outros que não vemos, mas estão lá, no espectro solar.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Mariazinha

Nada sei do futuro dos dias que virão.

Sei dos dias que já correram em flor de mágoas, frutos de amor ou sementes de esperança, incerteza, descrença. Também de espanto. Por cada dia que chega, os olhos se abrem e o mundo derrama neles nova luz, nem sempre ténue, nem sempre suave, mansa, como surge no alvorecer.

É que aí, nós não estamos acordados, cada vez mais lestos em prolongar o dia pela noite de luz mentirosa que despreza a da estrela-mãe. E, quando nos levantamos, o sol vai alto e fere a retina, grita aos sentidos o que não desejamos, queima e agride, tanto mais, quanto menos vamos estando capazes de suportar a investida, o golpe, o peso forte da natureza em mutação.

Já se foi o pigmento dos cabelos, o frescor da face, o brilho límpido do olhar, o sabor do palato. Ficou o fulgor da mente, a alegria do riso, a graça das tranças já não do cabelo farto, mas das lembranças ondeadas mas certas, enroladas de sonhos.

Eu vou estar sempre consigo, embrulhadas ambas nos lugares que vivemos noutras latitudes, no mundo outro que habitámos, que já não tem lugar nos tempos que escorrem, sem outro ensejo, nesse outro planeta apenas visitado agora em nossos devaneios.

Vamos continuar a seguir de mãos dadas atravessando as ruas, olhando as figuras de jade do bairro chinês, escolhendo as bonecas de missanga, continuando a cobiçar as figurinhas de porcelana dos doze signos, as enfiadas de tartarugas da longevidade. E a jarra de laca vermelha.

Escrevo estas linhas num dia em que recordo o pai que me gerou e o foi também seu e de meu irmão. Será octogenária à entrada do novo ano chinês e eu farei por si um brinde com o vinho do Porto que vai sobrar da mesa de Natal, onde em cada ano deixo aberta a garrafa e os copos para a celebração dos que um dia já partilharam a nossa Ceia.

Afinal acabo no futuro que desconheço. Mas apeteço. Enquanto o houver, mau grado as divergências que a vida regeu para nós, os lugares, os continentes, os gostos, as idades, a condição, nós permaneceremos lacradas de afecto, no desfolhar das «Mani di Fata», na celebração das caçadas, nos cacimbos secos à sombra das laranjeiras do quintal.


sexta-feira, outubro 06, 2006

De regresso

«Das coisas
Que competem aos poetas
Oh as casas, as casas, o valor do vento
Nada consta
Peregrino hóspede sobre a terra
Um quarto
As coisas
A cabeça
Onde só o silêncio é soberano…»


Ruy Belo










Ninguém nos ensina o alvorecer.

É preciso estar presente e sentir, ouvir, palpar, olhar as tonalidades do novo dia. Com o determinismo que os milénios nos ensinaram, sabemos que o sol aparece naquele mesmo horizonte, à direita da Estrela Polar que fenece.

Ir ao encontro do dia sobre o Atlântico é revigorante para uma alma escurecida já por uma saudade futura. Num repente, a claridade surge não se sabe donde, um momento após a escuridão total, subitamente, num abrir de olhos fechados há minutos.

É num momento assim que tudo se suspende em nós. Vagamos no espaço vazio, na paz e quietude que dura poucos minutos, esquecido o que fomos, o que seremos. Apenas e só o presente efémero.

Há que fazê-lo, o turbilhão vem aí. As guerras, as crianças maltratadas, a violência gratuita, o desemprego, a fome, a injustiça, a incerteza do futuro.

sábado, setembro 23, 2006

Deixa-me ser...



«Desta vez deixa-me
Ser feliz.
Nada aconteceu a ninguém,
não estou em parte alguma,
simplesmente sucede
que sou feliz
pelos quatro costados
do coração, andando
dormindo ou escrevendo.

O que posso fazer, sou
feliz...»

Pablo Neruda

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sexta-feira, setembro 15, 2006

Tranquilidade


«Somente depois de bem morto hei-de dispor daquela paz
Que sempre apeteci mas nunca procurei
Até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
Coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei
Que muito mais passei naquilo em que fiquei
Nem que fossem os filhos ou os versos
Que fiquei muito mais naquilo onde passei
Como passos na areia no inverno ou repentinas sensações
De me sentir de súbito sensivelmente bem
Encher o peito de ar e sentir-me vivo...»

Ruy Belo


Em primeiro lugar e sempre, o espaço.

Aí, o espaço que aceitei com humildade e encanto também, por diferente. O espaço outro, que mais e mais me foi faltando, já não tem a ver com lugares ou pessoas, está dentro de mim, ou não está.

O espaço que habito aqui por breve tempo é imenso, familiar, mas principalmente sereno. E multifacetado culturalmente. E alegre. Num virar de esquina, um sorriso e «hello!». Muitas vezes um véu esconde os cabelos e o trajar revela recato, mas o sorriso aberto destrói de imediato a impressão de severidade. «Hi!»

As pessoas parecem mais felizes. Olham os outros nos olhos com serenidade, a sinceridade que me falta aí. Portugal tornou-se snob recusando um olhar, um cumprimento, um sorriso espontâneo, mesmo a quem se conhece. Principalmente.

Estou sentada num espaço largo no Eaton Mall, há crianças educadas que riem das imagens projectadas num ecrã ao fundo, com situações breves e divertidas de «Kids and Pets». Não me impedem de tomar notas. Uma senhora idosa, de ar afável senta-se perto de mim com um chocolate quente e mais além dois asiáticos conversam e comem agilmente, usando dois pauzinhos.

Sorrio para dentro da minha solidão à espera do fim de tarde para o jantar com quem semeia flores no meu espaço aqui.


quinta-feira, setembro 14, 2006

Quem és tu?


O Binx é mesmo uma ternura.

Recebe-me com encostos mimosos nas pernas, vigia as minhas descidas ao quintal, responde à minha conversa (é um gato miador), comunica se quer comida ou rua.

Já me adoptou.


quarta-feira, setembro 13, 2006

Um dia em Chinatown


Hoje o céu cor de cinza deixava cair uma chuva de molha tolos que não impediu o veraneio dos turistas ou o negócio de rua dos vendedores, menos ainda a circulação ritmada e frequente de autocarros e eléctricos nas ruas largas da cidade, aberta a uma multiplicidade de raças, credos e linguagens que se não questionam.



Tons de Outono em St. Jacobs



Os pastores de Virgílio tocavam avenas e outras coisas
E cantavam de amor literariamente.
(Depois - eu nunca li Virgílio.
Para que o havia eu de ler?)

Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,
E a natureza está aqui mesmo.

Alberto Caeiro


sábado, setembro 09, 2006

Nascer do dia


«Mas, nesse caso, onde está a grandeza da vida?
Se estamos condenados à comida, ao coito, ao papel higiénico, então que somos nós?
E se só somos capazes disso, que orgulho podemos tirar do facto de sermos, como nos dizem, seres livres?»

Milan Kundera


quarta-feira, setembro 06, 2006

Espaço Azul

Há quem o ouça muitas vezes,

Há quem o ouça raras vezes,

E há quem o ouça

Uma única vez na vida.

Por isso vale a pena

Talvez tarde pela noite, quando o silêncio nos rodeia,

Escutar o pássaro da alma que mora dentro de nós,

No fundo, lá bem no fundo do corpo.

Michal Snunit



O medo é um sentimento poderoso que nunca consegui descrever e continuarei a sentir para sempre. Creio em relação a isto que o tempo vai amainando a sensação, e apenas porque o consigo racionalizar, assim foi sendo ao longo dos anos. Em mim, o medo que prevalece é o receio de estar só e não conseguir orientar-me. Aliás esta perturbação está presente com muita frequência nos meus sonhos. É assustador.

Navegar no meio do oceano (num transatlântico, claro!) ou planar sobre ele, não me assusta, antes me tranquiliza. Sinto o fremir, o ruído e, na primeira hora, o balancear. Todavia gosto de sentir-me a deixar o chão, gosto de observar os flaps das asas, ver os recortes dos continentes, mais e mais longe. Por largos momentos um avião deve tomar o sentido da corrente dos ventos, porque plana serenamente, sem o mínimo estremecimento.

Olho através da pequena janela oval a meu lado e vejo uma linha de horizonte marcada por um halo, a dividir o céu em dois: por baixo um azul cálido atapetado de nuvens, acima um tom puro e brilhante de azur. Logo a seguir, pequenas nuvens de fumo branco passam sobre a asa, mais e mais fumo, depois só nevoeiro. O avião plana e não bule.

Como se pode sentir medo?

De quê?

Da quietude?

Da intensidade do sentir?

Adiante, de novo aquele tom intenso, fundo, brilhante. Em baixo, pintura digna de registo pela máquina que não pude trazer comigo: um mar de veludo riscado a régua, com claras batidas em neve saindo em borbotões dum saco de pasteleiro.

Sobre o Novo Mundo, castelos enormes de algodão puríssimo. Mergulhar ali é entrar na eternidade.

sábado, setembro 02, 2006

sexta-feira, setembro 01, 2006

Espera

«O João dorme… (Ó Maria,

Dize àquela cotovia

Que fale mais devagar:

Não vá, o João, acordar…).»

António Nobre




Estou aqui, pousada na balaustrada.

Sobre o mármore, espero o vento outonal que enfeita o céu de algodão e varre as folhas cansadas de verde. E traz as rolas novas.

Não é verdade que o Outono só anuncia a tempestade. Com ele apenas chega mais frio. Mais frio e depois a neve. Os sabores mais fortes do que nos sustenta o corpo, os fumeiros, o odor do queijo, do mosto, o sabor do vinho novo. E as castanhas.

O afago doce das malhas, das camisolas de lã, as meias, os garruços, o cachecol enrolado que cobre a boca e as orelhas.

Venha então a neve. E os bonecos de nariz de cenoura. E o desporto que não sei contar, mas sei dos que dele sentem a volúpia.

Eu gosto do primeiro arrepio do Outono.

sábado, agosto 26, 2006

Escrever a vida

«O significado das palavras não tem só que ver com o que passa pelo seu conceito, ou mesmo pelas suas margens e é a sua ressonância emotiva, mas ainda pelo aspecto da sua grafia. Se eu transcrever de Mendes Pinto uma frase como «Vimos também h~uas barcaças em que vem hom~es e mulheres tãgendo em vários instrum~etos» e “actualizar” para «Vimos também umas barcaças em que vinham homens e mulheres tocando vários instrumentos» não actualizei apenas inocentemente a grafia de um texto (e já agora a sintaxe), mas roubei-lhe devastadoramente quatrocentos anos de vida. E isso obviamente tem um peso enorme no seu significado…»

Vergílio Ferreira



Se não tivesse desistido de viver há mais de quarenta anos, faria hoje 108.

A chamado de seus irmãos mais velhos, logo a seguir à Primeira Guerra, Angola o enfeitiçou para todo o sempre e ao lado de suas gentes construiu uma vida. Dela deixou relatos de 45 anos ininterruptos na terra que escolheu também para repousar.






O reportar-me à Gandavira é reportar-me à época mais difícil da minha vida. Senão vejamos:

Fui para uma casa onde se cometiam todos os latrocínios a título de abandonar Angola para não voltar. Liquidar. Um preto devia, era zurzido, estuprado, espoliado. Se achava a conta elevada para o que fiou, então nem é bom falar. O mínimo era a palmatória e o chicote, independente da multa que lhe era aplicada pelo que disse.

Depois era o Posto Administrativo que tinha de fornecer tantos homens válidos. Como era feito o angariamento do pessoal? Não era certamente com prédicas, elucidando-o da necessidade de produzir, fazendo-lhes ver que Angola não era o seu kimbo e que havia muitas necessidades afins à nossa espécie de que eles enfermavam e não conheciam.

Começava o angariamento pelo cipaio. O que era o Cipaio ?...

Era um indesejável no seu meio, um homem à margem dos outros homens. Um criminoso convicto, com a moral do latrocínio. Fugia do seu meio e ia pedir serviço ao Posto. Quanto mais carrasco fosse, mais convinha para o ofício.

Aviltaram-se, degradaram-se em relação ao Selvagem que também tem as suas leis, os seus costumes que respeitam com tanta devoção ou temor, consoante os casos, como nós mesmos, os Europeus, os brancos.

O ignorá-lo, tendo de viver entre eles e utilizá-los, é já grave isso; mas ir ao cúmulo de os maltratar pela simples razão de serem negros, sem uma razão sequer aparente, sem pelo menos o fazerem por piedosa mentira cria complexos que se repercutem longe.

Aconteceu, como sempre acontecia afinal, não falando já de latrocínios e violações de toda a ordem quando os agentes negros operavam, ter-se finado um preto, dois ou mais em consequência de maus tratos. Diziam, porque eu nunca vi.

Não me recordo de me ter rido nos primeiros dias, não me ri quando vi bater em pretos como nunca vi bater em irracionais, ou tão pouco me ri quando via uma mulher da minha cor banhada em pranto.

Ter que assistir impassível a tudo isto era sem dúvida mais pesado que os sacos de farinha e cevada com que alombava no quartel da Graça em Coimbra.


sexta-feira, agosto 25, 2006

Palavras

«Não sei porque Dona Luarmina chorou, quando lhe contei a história de meu velho. Se foi ela que me pediu! Eu lhe tinha avisado da tristeza dessa memória, mas ela insistiu. Foi só por isso que destapei as lembranças.

Meu pai se chamava Agualberto Salvo-Erro. Em tudo ele seria pessoa. Só um senão atrapalhava sua humanidade: meu velho tinha olhos de tubarão. Não que fossem olhos de nascença. Aconteceu-se quando, certa vez, ele saltou do barco para salvar sua amada. Mergulhou na fundura das águas e ficou dentro do mar mais tempo que um peito autoriza. Saíram os restantes barcos, em salvação. Contaram-se segundos, minutos, lágrimas, suspiros. Só ao fim do dia, meu velho apareceu na superfície. Já ninguém esperava que ele ressurgisse. Mas, para espantação e reza, meu pai golfinhou-se entre as ondas e gritou como se o céu inteiro lhe entrasse no peito. (…)

- Os olhos dele!

A partir desse dia meu pai se adentrou em si mesmo, toda a hora sentado na praia contemplando o horizonte. Passavam gentes vindas de longe para espreitar de longe o preto com olhos da cor do mar.»

Mia Couto


Os sentidos, adormecidos, nem sempre assomam por entre os dedos. Quando acontece, surgem em catadupa e nem dá tempo de traduzir em palavras o que vai dentro de nós. Ou brotam de manso, depois deslizam em torrente, por vezes em cascata, em cachoeira por entre as pedras roladas e afeiçoadas, caem no vale, formam rio caudaloso e desaguam no mar. Outras vezes serpenteiam pelos vales e perdem-se na chana, depois no deserto e infiltram-se nas areias fugindo ao mundo sequioso.

Quantas vezes é fogo, é magma que se derrama e é preciso conter para que não queime, para que não apague os verdes, para que não mascarre a paisagem e a torne um rochedo bruto e informe. Que tem a sua beleza, outra que não aquela que nos ensinaram, quantas vezes mais pura, mais firme, franca e leal.

É que a beleza, ou está dentro de nós ou, como a felicidade, nunca a encontramos. Ela está por toda a parte, escondida nas rugas de gordura dum pezinho de criança, como na secura dessas outras que trazem os anos; no esplendor verdejante duma primavera ou no ímpeto do tornado que se desloca em fúria; na grandeza do mar, na torrente da comporta que se abre, nos pedregulhos de lava cuspidos pela montanha, na queimada que corre pela anhara ao entardecer.

E sempre, mas sempre, na humidade dos olhos de quem entrevê ou entreviu um clarão de tempo feliz que não dura mais que um momento, ou uma dor pungente que já passou, mas se eternizam grafados em letra de forma. Por isso eu gosto tanto de palavras.

quarta-feira, agosto 23, 2006

Libertação

«Ceifeira que andas à calma, no campo ceifando o trigo
Ceifa as penas da minh’alma, ceifa-as e leva-as contigo.

Abalei do Alentejo, olhei para trás chorando
Adeus terra da minh’alma, tão longe me vais ficando…»





O mergulho na água morna, aquecida pelo sol inclemente no coração do Alentejo, apaga as inquietações mais fundas de um emprego instável, de um mundo inseguro e injusto. Principalmente injusto.





Ouve-se a solidão no vento que balouça as ramadas do único ulmeiro que ladeia a casa, no olhar do pónei que olha curioso o novo inquilino e nas nuvens galopantes que enfeitam o céu. De dia. Porque a noite traz o esplendor da Via Láctea, o caminhar lento das estrelas no manto escuro da lua nova.

Aqui não há senhores, nem há escravos.

Libertamo-nos no acto de nascer, mal nos cortam o cordão umbilical. A dependência vem depois e tem a ver com a sobrevivência do corpo. Mais tarde da alma. Tornamo-nos escravos da família, dos amigos, do trabalho, da religião, da droga, do sexo, do dinheiro. Do medo também.

E do Amor.