quarta-feira, setembro 29, 2010

Encruzilhada


O lobo recebe cada momento individualmente. E é isso que para nós é tão difícil. Para nós, cada momento é deferido interminavelmente. Cada momento tem um significado que depende da sua relação com outros momentos e um conteúdo que é irremediavelmente assombrado por esses outros momentos. Nós somos criaturas do tempo, os lobos são criaturas do momento. Os momentos para nós são transparentes. São aquilo que procuramos quando tentamos possuir coisas. São diáfanos. Para nós os momentos nunca são completamente reais. Não existem. Os momentos são fantasmas do passado e do futuro, os ecos e antecipações do que foi e do que poderá ser.

Mark Rowlands,  in O Filósofo e o Lobo

 
Abrir os olhos à claridade das manhãs e descer depois as pálpebras para ordenar os pensamentos como quem conduz um rebanho encosta acima, colina abaixo, para o repouso no pasto verde da planície ao longo do regato que corre. Como aqueles desenhos da professora da escola primária, no quadro de xisto negro, como o conto suave de Trindade Coelho.

A idade pousa como um abutre sobre a cabeça, finca as garras entre as espáduas, anula o movimento dos braços e o resto do corpo passa a boneco desarticulado. É o caminho de todos os amimais do planeta, de um ou outro modo o fim é inexorável. Mas o animal-homem tem outra força, outras defesas, a razão que o elevou acima de todos os outros dá-lhe a mobilidade de escapar, não ao fim, mas à tragédia deste tipo de sofrimento. E os abutres afinal preferem as presas já inertes.

Afastar o zumbido das abelhas, deixar que a chuva nos encharque de braços abertos, correr para o regato, o rio, o lago, mergulhar na onda antes de quebrar na praia, apenas olhar o mar batendo nas rochas, tudo são caminhos a percorrer. Ficar parado é que não. Ficar à espera do predador revela pouca inteligência e o mais ínfimo animal sabe esconder-se. Se estiver atento. Se estiver à escuta. Se souber ouvir a natureza quando os próprios meios falham. Há sempre um grito, um piar, um voo, um galho seco no chão a avisar. A vida está sempre do nosso lado, deste lado, basta sentir, basta saber olhar.

Bem sei que é difícil lutar contra os mais fortes, principalmente se estão dentro da nossa casa, mas a união faz a força e deveríamos gritar bem alto as injustiças de que somos alvo. Não sei se a Europa é já uma família, mas se pretende sê-lo realmente, tem de assumir todas as responsabilidades, não pode haver filhos tratados com desigualdade na sociedade que se deseja e por que sempre lutámos. Afinal, parece que fomos regulados por igual quando se tratou de unir obrigações para erguer a banca que agora nos afunda sem remissão.

Há outros caminhos que é preciso abrir com as armas que temos e são valiosas. Há caminhos abertos há séculos e actualmente mal cuidados. Também duvido da expressão «dar emprego». Está provado à exaustão que ninguém dá nada a ninguém, parece que temos de viver da caridade dos outros. Por que não tentar olhar em volta de maneira diferente?

quarta-feira, setembro 22, 2010

Quietude



A obra de arte inacabada ou mutilada, o esboço, o fragmento. Mais do que nunca isso nos fascina. Porque o que mais importa numa obra de arte é o que ela não diz. É o não dizer que hoje sobretudo se pode dizer. O fragmento ou o inacabado acentua a voz do imaginário, antes de ser a do verdadeiro silêncio. E o silêncio sem mais é o nosso modo de falar. Ou seja, a forma única de a razão ter razão.

Vergílio Ferreira,  in Pensar

 
Uma lua branca olhou-me serena e interrogadora e um brilho de prata tremeluziu mais longe aquietando a minha solidão. A noite quieta disse que tudo permanece, o caminho aberto, os caminhos, abertos aos passos ainda firmes, os cães ladrando longe e perto, um ou outro carro fazendo rodar as sombras, primeiro devagar depois sumindo com o som da máquina.

Outra vez os cães.

Outra vez a lua.

A lua igual, parada, à espera, a olhar de frente. Até quando?

Até quando o implacável girar dos astros lhe desfaça o sorriso, lhe retire a claridade, meia-lua, lua minguante, e se vire de costas, a renovar-se.

Como eu, como as primaveras, deixando-se cortar para voltar inteira, assim o lembram os poetas.


sábado, setembro 11, 2010

Retiro


Torno a pisar, com a emoção da primeira vez, este reduto ibérico da insubmissão e da esperança, e junto honradamente à soma do que senti então e sinto agora, num preito que talvez simbolize outros preitos, a gratidão permanente de quem, desde que dura o fascismo peninsular, aqui mandou diariamente o espírito em peregrinação retemperar as energias da resistência. Sim, há também santuários miraculosos da rebeldia. Sítios sagrados, onde a máscara rugosa da natureza é o rosto severo da própria liberdade.

Miguel Torga,  in Diário XIII - Covadonga, 3 de Setembro de 1962

Fotografia de Fernando Costa

As palavras que usamos no nosso quotidiano, aquelas que nos surgem em momentos mais intensos, aquelas que parecem caídas não sei de onde, se memórias de leituras esconsas, se herdadas de memórias de infância, primeiras palavras ouvidas, ainda sem capacidade de modular a voz para as repetir, as que parecem sopradas nos dedos que escrevem, as que se engolem com as lágrimas e se dissolvem cá dentro, as palavras não conseguem dizer tudo.

E se dizem, falseiam a realidade que não é, porque o real é imaginário, depende de motivações que nos tolhem ou exaltam o que o corpo sente em momentos de euforia, de dor ou inquietação, em momentos severos de uma escuridão sem clarões, de uma lucidez sem névoa, em cavalgadas de sonhos desfeitos. Nem sei onde já li que «cada homem tem o corpo de um homem e o coração de um deus», assim, tal e qual.

Então a tristeza invade-nos porque nada se faz como queremos, como desejamos, como nos cultivamos, imersos nos anos que galgámos, na raça a que pertencemos, nos genes que nos passaram e moldaram o carácter, a forma de ver e sentir o mundo, os outros, nós próprios divididos entre a sociedade que nos tolhe o coração, que não a razão.

A ausência dos que nos querem bem, os homens e os bichos, as ausências que fazem iluminar a saudade, aquele meio-termo entre alegria e tristeza, que nos faz sentir sós. Que nos faz sentir que as palavras dizem mas os olhos dizem mais, o gesto é mais inteligível. Porque nos parece tão fácil dizer que a terra é o centro do universo. Então não é tão real que o sol é que roda à nossa volta em cada dia?


sábado, setembro 04, 2010

Intercâmbio



[...]Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

Era no tempo do visgo
que a gente punha na figueira brava
para apanhar bicos-de-lacre e seripipis
os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires
que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.

Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.

Ernesto Lara Filho, in «Infância Perdida»



Fotografia da Web

Há pedaços de vida que encantam momentos, pedaços pequeníssimos de papel recortado em fina serrilha, colorido, desenhado em figuras preciosas, veneráveis, graciosas. Os selos, as estampilhas fiscais, os selos de Assistência, sempre verdes, que não tinham valor, tal como mais tarde os selos de Povoamento.

Desde muito cedo me assumi, a exemplo de meu irmão, coleccionadora de selos. Isso dava direito à recolha de todos os envelopes das cartas chegando pelo correio – no tempo em que se escreviam cartas – e também o direito a pedir, eventualmente numa ou outra casa de comércio ou repartição, a alguém conhecido, se podíamos retirar aqueles pedacinhos coloridos, antes do papel de embrulho ser atirado para o lixo. Mais tarde, a corrida aos envelopes de primeira tiragem, mas isso é outra história. Coleccionar selos significava um trabalho minucioso: primeiro mergulhar num recipiente com água os pedaços de papel e esperar que a cola se desfizesse e deixasse separar os selos sem ferir a serrilha, o que os tornaria imprestáveis. Secá-los depois ao sol, sobre jornais, e pôr de parte os repetidos para serem trocados entre amigos, guardando os mais perfeitos em pequenos envelopes brancos, assinalados com o nome do país de origem, eram afazeres prazeirosos que constituíam horas de entretenimento e auto-aprendizagem.

Os selos de Angola e Moçambique eram lindos, com pássaros, flores, borboletas, conchas, figuras indígenas diferentes de cada região. Mas eram sempre os mesmos e o passo seguinte foi encontrar correspondentes na Europa onde eram soberanamente apreciados, como percebemos bem mais tarde. Para nós, receber selos de países europeus era uma conquista invejável, pois chegavam às nossas mãos envelopes enormes carregados de novidades, países que fomos aprendendo a conhecer e a situar, quando mal conhecíamos a primeira língua estrangeira, deliciados com o remetente «Ton ami français de Nantes». Andorra, Liechtenstein, Mónaco, Nederland, Deutschland, England, Helvetia, faziam-nos correr ao Atlas da capa azul de João Soares.

Outros tempos, outras ocupações de criança, outras latitudes, sem a sombra inquietante, perversa, monstruosa, voraz, traiçoeira, aviltante, destruidora, que persegue os meninos de hoje. Decididamente, fomos mais felizes.