sexta-feira, abril 25, 2014

OS CRAVOS MURCHARAM



Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exatamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
 
E do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.

Jorge de Sena (1967)








quinta-feira, abril 17, 2014

GOSTO DE JOGAR




Não, Pedro: aí é que nós pensamos e sentimos de forma realmente diferente. Tenho medo de uma coisa que tu não temes: que, depois de conhecer a liberdade, depois de ter viajado e vivido em países livres, não me volte a habituar a viver de outra maneira. Tenho medo que a liberdade se torne um vício, enquanto que agora é apenas uma saudade.
Miguel Sousa Tavares, in "O Rio das Flores"






Minha mãe não gostava de jogar às cartas. Talvez não gostasse de perder, não soubesse perder, como nunca aceitou perder o seu filho estremecido.


Meu pai dizia que fazia bem jogar porque se aprendia a perder. Lá está. Eu recordo os serões na fazenda, minha mãe fazendo um crochet qualquer, uma renda em volta de um pedaço de pano para colocar na cesta do pão. Jogávamos à sueca, meu pai sempre meu parceiro, meu irmão com a tia Mariazinha ou com o primo Timóteo que tomava conta da fazenda, depois de levantada a mesa do jantar. Não era canasta, como jogavam as amigas de minha mãe, tão pouco king, menos ainda bridge como os senhores bem. Com o meu irmão jogava ao crapaud, ou à bisca de nove, quando éramos vários miúdos jogávamos ao burro em pé. Aprendia-se a fazer contas de cabeça, era ver quem contava mais depressa no fim dos jogos.


Mas estes pedaços de saudade que constam no fundo das memórias vieram a propósito de perder qualquer coisa. E ninguém gosta de perder, convenhamos. Ninguém gosta de perder principalmente os entes queridos, os amigos, até os apenas conhecidos do cinema, da TV, dos livros, aqueles a quem nunca dirigimos a palavra mas que nos marcaram por algum motivo.


Só estes são perdas de facto, tudo o resto não tem a mínima importância. A vida ensinou-me a olhar pare dentro de mim com alguma lucidez e dei conta de que afinal nunca perdi nada. De todos os que se foram e de quem sinto saudade, sinto-a precisamente porque todos pincelaram a minha vida de algum modo, deram  cor e vida e alma ao quadro que sou. Tenho a certeza de que ninguém pegou no pincel em vão – as cores que se perderam correspondem àquilo que, decididamente, não me ajuda a viver.




quarta-feira, abril 02, 2014

PRIMAVERA FRIA




E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anónimos.

Rainer Maria Rilke




A Primavera chega em passos de frio molhados de vento.

Nem há querer que supere a fragilidade cada vez mais densa cada vez mais intensa, essa grande tempestade que cresce e altera o horizonte em sucessivas paisagens de claridade e de nuvens, de cinza, de azul e magenta, em cada dia repetidas, em cada dia diferentes, opacas, translúcidas, verídicas, imaginadas, sempre sentidas.

Foi ontem que me incomodei com a política deste meu país injusto, foi ontem que me insurgi contra a chuva que molhou a roupa já seca, foi ontem que chorei a morte do meu cão delicado, dedicado. Mas o ontem já acabou e o hoje continua injusto, mais injusto, a chuva não desiste de molhar os campos e as almas, que entretanto florescem e gozam a luz mais tempo e sabem que o frio tem os dias contados. E o gato mostra habilidades e gostos que o cão não possui, é mais travesso, menos humilde, mais tempestuoso nas demonstrações inequívocas de dedicação. Outros modos, a mesma intensidade.

Lutar contra o inexorável não faz sentido. Os dias passam de manso, marcando o tempo com fios de prata a modificar o semblante, ponteiros de prata dizendo as horas que nem sempre sentimos, os fios no rosto traçando mais fundo os sorrisos, as lágrimas mais prestes para dar aos olhos o brilho perdido, a voz mais rouca.

E a respiração mais pesada, menos afoita, o sentir cá dentro mais fundo, mais pausado. 
Como os passos.