quarta-feira, maio 31, 2006

Quitandeiro

O sol abriu esta manhã esplendoroso e eu resolvi aproveitar os tempos. Pese embora este plural, refiro-me ao clima e ao tempo de que disponho. Concretamente, fui lavar roupa. Mãos mergulhadas ma espuma morna, sorri ao ruído saudoso do esfregar da roupa nas mãos, misturado com o tilintar da pulseira de família que uso.

Nunca consegui atingir aquela perfeição de ruído que me embalou a infância. A técnica instintiva da Lavadeira, aliada à prática quotidiana dos anos que não contava, davam-lhe o requinte que nunca igualei. A voz do esfregar nas mãos era linda e a orquestra das pulseiras de metal que desciam pelos punhos, completava o conjunto.

A Lavadeira tinha um nome próprio, é claro, era Eulália, mas era tratada por Lavadeira e que me lembre nunca protestou. Não sei se minha Mãe teria tido alguma relutância em tratá-la pelo mesmo nome de minha avó materna, o que é certo é que lá em casa foi sempre Lavadeira e a única que tivemos até ao dia de sua morte. A seguir veio a Isabel, já não era nova e também muito dedicada; com que alegria recebeu nos braços a bebé da sua menina que tinha nascido no Puto(Portugal)!

Voltando à Eulália, ela era minha comadre, pois eu e meu irmão fomos à igreja do Canhe baptizar-lhe a Ana Maria, sua segunda filha. Tive sempre pouco contacto com a pequenita dado que o Adão, pai da criança e marido de direito da Eulália, não a entregava facilmente aos cuidados de sua mãe, quer pela frequência dos encontros desta com outros filhos do seu homólogo, quer pela inclinação aberta de Eulália aos prazeres de Dionísio.

O José, mocinho esperto e atrevido, era o mais velho e foi criado connosco até à idade da escola, que Adão não descurava a instrução dos seus filhos. Minha Mãe adorava o Zé que tinha sempre resposta pronta e, além disso, fazia-lhe os recaditos dentro de casa, pois sabia onde estava tudo: “Zé, traz a fita métrica; baixa o rádio que está muito alto; vê se vês o meu chapéu, se a água está a ferver para o patrão fazer café...” E o garoto tudo lhe fazia de boa vontade, sabendo bem que obtinha dela todas as guloseimas. E também tinha por ela um carinho muito especial desde pequenino. Teria uns três, quatro anitos, quando enfrentou corajosamente um dos quitandeiros habituais da casa que entrou apregoando:

- Quitandêro mia siô...ô...ô...ra! Teim côvi, cinôra, banana... e teim candimba (coelho)!

Pousando o tabuleiro cheio de frutas e legumes sobre as floreiras da entrada que ladeavam a escada, cheias de fetos e sardinheiras, o quitandeiro falou em umbundo para o Zé, que estava sentado a brincar nas escadas. Resposta imediata do menino:

- Com quem é que estás a falar? Comigo? Eu não falo essa língua de cão. Estás a ver a minha mãe? Ela é branca, foi ela que me criou e ensinou-me a falar português. Eu não sei falar a tua língua.

O homem riu da graça do pequeno. Não sei hoje se não se teria sentido chocado na sua negritude. Era habitual lá em casa. Passava nos dias certos, trazia a quitanda recheada de tudo muito fresquinho, muito mimoso, e a senhora às vezes, no Natal, dava roupa velha do patrão.

Era o Quitandeiro...



terça-feira, maio 30, 2006

A Terra

Ele caminha para nós como um Deus sobre o mar. (…)

O Árabe olhou-nos simplesmente. Pressionou, com as mãos, os nossos ombros, e nós obedecemos-lhe. Estendemo-nos. Não há aqui raças nem línguas, nem divisões… Há este nómada humilde que coloca sobre as nossas espáduas as suas mãos de arcanjo.

Quanto a ti que nos salvas, Beduíno da Líbia, não te apagarás da minha memória para todo o sempre. Nunca lembrarei o teu rosto. Tu és o Homem, e apareces-me com o rosto de todos os homens ao mesmo tempo.

Surges imbuído de nobreza e beatitude, grande senhor que tem o poder de ofertar a bebida. Todos os meus amigos, em ti, caminham na minha direcção e a partir deste momento não tenho no mundo um só inimigo.

Tradução livre de um excerto de Saint Exupéry, in «Terre des Hommes»




Há dias em que subitamente me percorre uma lucidez que fere.

Quem sou, o que fui, o que me tornei. O que os outros me vêem, pois se eu própria me olho ao espelho e me desconheço. Por vezes sorrio e encontro-me. O esgar da boca transforma as pregas das faces, erguem-se as maçãs do rosto, descem os sobrolhos, os olhos cerram-se e eu estou ali. Tornei-me adiada, conformada, confirmada, adequada. O que eu fui, apagaram-me, apaguei-me, tecla delete. O que eu sou… é decerto o que eu me sinto e só tem um nome: estranha, para não dizer estrangeira, alienígena.

Queria ser o Principezinho e não só impacientar-me com as pessoas grandes: voar com as aves de migração, pousar num deserto, guardar ovelhas em caixas de papel, ver flores plantadas nas estrelas, preocupar-me em defender as rosas, fazer amizade com as raposas … e, quando nada mais houvesse para remediar neste mundo absurdo, ter uma serpente amiga para regressar a casa.

Eu sou dum signo da terra. Quero ir para a Terra.

domingo, maio 28, 2006

Queimada

Abre Waterland e, desta vez, é facilmente envolvida pela escrita poética, pelas evocações de infância, pela força omnipresente da paisagem do Nordeste inglês, feita de rios, canais e pântanos, de terra permanentemente invadida e reclamada pela água. Cedo irá aprender que no País das Águas a que acaba de chegar, a terra é que invade e reclama o espaço da água, é a escassez de terra em clima ameno que leva os homens a construírem diques e barragens, prolongando mar adentro o território habitável que a inóspita selva do interior lhes recusa.

Helena Marques


Não, não desisti das evocações de infância, só que os dedos nem sempre respondem ao querer do cérebro e, mesmo este, nem sempre quer. Este calor de Maio, demasiado intenso já, situa-me em finais de Agosto, numa outra latitude.

Sem uma aragem, o capim seco da anhara crepitava com o calor, ao sol do meio-dia. De casa, todos tinham ido a uma queimada, para os lados do rio Colongo, participando num gebo aprazado naqueles saudosos fins de tarde, entre meu pai e os outros sèculos da região.

A caçada prometia. Em casa, as mulheres aguardavam. A mim, sem esse estatuto ainda, era-me interdito participar. Razões, mais que sobejas: o fogo era traiçoeiro, o calor era muito e eu não aguentaria a caminhada a pé. E depois, não eram actividades próprias para uma menina...! A revolta contra esse princípio dera pouco a pouco lugar ao comodismo e já nem protestava.

Mas vivia com intensidade esses acontecimentos que tinham lugar uma, no máximo duas vezes por ano. Mal podia esperar elevar-se, lá para os lados da serra, o fogo da queimada que crescia e caminhava no horizonte e já imaginava as peripécias depois contadas pelo serão adiante, já que em tempo de férias havia sempre familiares ou amigos lá por casa.

Eles chegavam então, ao fim da tarde: cansados, suados, queimados do sol e do vento, de espingarda ao ombro e fraldas de fora, derreados, mas felizes. Logo acorria junto de meu pai e meu irmão (na foto). As cartucheiras pendiam nas ancas, ao peso das perdizes e patos que eu me apressava a desprender das argolas.

Mais de meio século passado, num longo, e por vezes doloroso, percurso de existência, nem sempre a alma aceita vaguear por espaços e sentires guardados bem cá no fundo, sem que doa.

Porém, dor é sinal de vida.

sábado, maio 27, 2006

Luandino

«Escrevo-te da Montanha, do sítio onde medram as raízes deste livro. Vim ver a sepultura do Alma Grande e percorrer a via sacra da Mariana. Encontrei tudo como deixei o ano passado, quando da primeira edição destas aventuras. Apenas vi mais fome, mais ignorância e mais desespero. Corre por esses montes um vento desolador de miséria que não deixa florir as urzes nem pastar os rebanhos. O social juntou-se ao natural, e a lei anda de mãos dadas com o suão a acabar de secar os olhos e as fontes. Crestados e encarquilhados, os rostos dos velhos parecem pergaminhos milenários onde uma pena cruel traçou fundas e trágicas legendas. Na cara lisa dos novos pouca mais esperança há. Ora eu sou escritor, como sabes. Poeta, prosador, é na letra redonda que têm descanso as minhas angústias. Mas nem tudo se imprime. Ao lado do soneto ou do romance que a máquina estampa, fica na alma do artista a sua condição de homem gregário…»

Miguel Torga


Pois é, nem tudo se imprime. E, por vezes, o desespero é tão grande, é tal o sentido de impotência por se ver a realidade tão distante do que idealizamos, que se perde a voz e o alento.

Luandino deixou de «sentir» para sua própria defesa. Depois de ter sido preso e humilhado pela PIDE, pela simples razão de manifestar-se a favor da independência da terra que sempre considerou sua, a ela regressou mal aquela se concretizou, em 1975.

Labutou no terreno pela reconstrução do país novo, foi presidente da Radiotelevisão Popular de Angola, dirigiu o Instituto de Cinema e foi membro fundador da União dos Escritores Angolanos onde exerceu funções de secretário-geral, desde a sua fundação a 10 de Dezembro de 1975, até 1992.

Mas os ideais por que lutara no MPLA morreram com Agostinho Neto. Talvez. Conheci famílias inteiras da geração anterior à minha, já nascidos em Angola, que lutaram como professores, médicos, apaziguando misérias mesmo após a descolonização, em condições inenarráveis, gente que a Angola dedicou toda a sua vida. Foram assassinados, ultrajados, trucidados por vinganças, incompreensões e egoísmos. Que ainda grassa, explora, escraviza.

Talvez cansado, talvez desgostoso, mortificado, Luandino sentiu-se impotente. Regressou a Portugal em 92 e afundou num mosteiro algures numa serra, em Vila Nova de Cerveira.

Parece que recomeçou a escrever, dez anos depois.

quinta-feira, maio 25, 2006

Prémio Camões 2006

(…)

– Manos

Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
– Luanda onde está?


Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
– os panos pintados
garridos, caídos
mostraram o coração:

– Luanda está aqui!

Luandino Vieira


A José Luandino Vieira foi atribuído o prémio mais alto que distingue os escritores de Língua Portuguesa – o Prémio Camões – e eu não poderia deixar de o referenciar aqui, porque afinal este é um lugar onde faço questão de divulgar sempre uma pontinha do que há de bem escrito em Língua Portuguesa.

Porém Luandino, pseudónimo que adoptou em louvor à sua cidade natal de adopção, pois nasceu em Portugal, algures perto de Fátima, recusou o galardão.

É injusto, dirão aqueles que pensam nos cem mil euros do prémio, se distribuídos pela miséria que grassa na «sua» Luanda, na terra imensa a quem ele dedicou a sua vida e a sua obra. É justo, dirão aqueles que conhecem o seu percurso de vida e que sabem que um homem como ele, não se entrega, não deixa de lutar, não esquece. Mesmo septuagenário.

É que ele sabe, ele tem a noção correcta da sua escolha. Lutou pelo MPLA, passou anos no Tarrafal, foi a força da sua escrita que fez encerrar a Sociedade Portuguesa de Escritores após a decisão de atribuir, em 1965, do Prémio de Novela ao livro «Luuanda». E não é o primeiro na recusa deste prémio, outros o fizeram antes para demarcar as suas fronteiras.

É que ele sabe, como outros sabem, que isto não passa de um prémio de mentira, de fachada, de política. Não atribuem agora o prémio a Luandino pelo valor da sua escrita; é principalmente porque escolheu ser angolano, porque escolheu ficar em Angola, porque pôde ficar em Angola, porque é respeitado em Angola. E porque Portugal precisa. Agora.

Então, se Luandino escolheu, ele lá sabe, e bem mais do que eu.

terça-feira, maio 23, 2006

O Mais Belo Poema

Minha Mãe
Tu me ensinaste a esperar
Como esperaste nas horas difíceis
Mas a vida
Matou em mim essa mística esperança
Eu já não espero
Sou aquele por quem se espera…

Sou eu minha Mãe.
A esperança somos nós
Os teus filhos
Partidos para uma fé que alimenta a vida.

Somos as crianças nuas das sanzalas do mato
Os garotos sem escola a jogar a bola de trapos
Nos areais ao meio-dia
Somos nós mesmos
Os contratados a queimar vidas nos cafezais
Os homens negros ignorantes
Que devem respeitar o branco
E temer o rico.

Somos os teus filhos, Mãe
Dos bairros de pretos
Com fome e com sede
Com vergonha de te chamarmos Mãe…

Agostinho Neto







Nota: Todas estas imagens foram copiadas do site Sanzangola

quinta-feira, maio 18, 2006

Camboiola, o pastor


Enfrenta com muita força a morada terrestre;
Mesmo que todas as coisas se ergam contra ti,
Enfrenta-as com muita força.
Guarda-me no teu coração


Poemas ameríndios (trad. Herberto Hélder)




Camboiola era o pastor dos bois, o mais antigo da casa. Seria velho, mas não é essa a ideia que me ficou dele. Sempre enfeitado com bordados nas roupas que vestia, vinha frequentemente, ao fim do dia, junto de minha mãe mostrar os pontos que inventava e levar mais linhas. Tudo lhe servia: grossas, finas, muito, pouco, de preferência bem coloridas, o que era preciso, era matar o tempo do pasto. Usava uns cintos muito bordados e coloridos, aos domingos envergava um casaco de galões a que ele acrescentava mais cor, era um daqueles casacos que se vendiam das roupas de fardo que eram importados da América, teria pertencido a um militar. Dias, semanas, meses, anos, o Camboiola tinha com ele o gado mais escolhido, era o pastor mais atento, sabia das doenças que chegavam, do tempo em que as vacas iam parir, dos garrotes que era preciso tranferir para o outro pastor, o Catiavala.

Lá para Setembro, com as primeiras chuvas, o Camboiola trazia tortulhos, enormes, carnudos - o Kema - que era óptimo para assar na brasa e comer temperado com azeite, vinagre e pimenta. Outros, ainda em bola fechada, para guisar com galinha, muito tomate e gindungo. Pirão de farinha de milho a acompanhar. Uma delícia.

Pouco apreciadora que sempre fui de comida, é agora que mais recordo estas coisas, não sei se pelos “enta”, se pela saudade que me rói. Bifinhos de tchissóvio na brasa, com kema grelhado e batata nova cozida. Ementa para ser levada à televisão como verdadeiramente regional, duma província que foi portuguesa em África. Nós, os Portugueses, sempre fomos uns poetas: em Angola, sempre o desejo da Metrópole, sinónimo de civilização, cultura, pureza de língua… trinta anos depois, o hábito não chegou para ser monge.

A poesia, essa, ficou. Mais a saudade, palavra bonita entre as bonitas do português. Só por isso valeu a pena nascer portuguesa. Só a alma de português de hoje não chegou para manter vivo o desejo da cultura dos povos que dominou durante centenas de anos. Quem para ensinar a língua portuguesa aos angolanos, quem? É o fogo que deve manter-se aceso, é o sinal da cultura que lá deve ficar, mas nem isso fomos capazes de fazer. Desenvolver a nossa cultura, projectá-la e desenvolvê-la em paralelo com os povos que estão abertos a isso e que connosco partilharam tanto, não. É mais fácil deixarmo-nos curvar pela Europa e virar costas às nossas gentes que tudo nos pedem. Será que não vêem que para estes somos importantes e para aquela somos importunos? Os pés fincados na Europa, sim, mas o corpo virado para diante, para o mar! Qualquer dia já nem poesia temos...

segunda-feira, maio 15, 2006

Queda dos anjos

«Concedida a palavra e feito o silêncio da curiosidade na sala, ergueu-se o morgado de Agra e orou deste feitio:

- Sr. presidente! Os conselheiros dos antigos reis de Portugal, homens de claro juízo e ciência bastante, cortavam os abusos do luxo com pragmáticas, quando os vassalos se desmandavam em trajos, regalos e ostentações ruinosas do indivíduo e, portanto, da cidade. O senhor rei D. Sebastião, que santa memória haja, promulgou justas e rigorosas leis sobre o uso das sedas.

E, naquele tempo, Sr. presidente, Portugal ainda se banqueteava com a baixela de oiro do Pegu: ainda as paredes das salas nobres estavam colgadas de gualdamecins e razes da Pérsia. Era o Portugal, já não robusto nem entusiasta; mas ainda sopitado das embriagadoras delícias dos reinados de D. Manuel e D. João III. Nas Ordenações Filipinas, liv. 5º, t.82, parág. 4º e seguintes, foram incluídas as principais leis da reformação da Justiça de 27 de Julho de 1582.

Lá se vê quão salutar era a vara férrea da lei no castigo dos contumazes em proveito da comunidade. (Um deputado boceja contagiosamente: outros bocejam; e o presidente de ministros tosqueneja.)»

Camilo Castelo Branco


Nós não tivemos uma Revolução Francesa. Somos portugueses, só vivemos a nossa Revolução de Abril. E sangue, só o vermelho dos cravos.

Sempre que ouço falar da nossa revolução pela liberdade, vem-me à memória uma canção que meus filhos trauteavam (era repetida vezes sem conta naquele período revolucionário), de que não sei o nome nem o autor, talvez o Ary. Os seus versos cantavam uma papoila a crescer livre na sua cor, uma criança sonhando ser livre para não combater (Nem mais um soldado para Angola!), uma gaivota voando livre com o coração cheio de paz. Era uma melodia que entrava no ouvido e era bonita como um cravo vermelho.

Nós somos diferentes e, se procurarmos bem dentro de nós, somos diferentes pela positiva e disso sentimos orgulho. Só não sabemos dizê-lo, é isso. É como dizer «amo-te». Há que soltar o que temos dentro de nós, erguer a pá de Aljubarrota e dar cabo dos castelhanos que temos dentro de casa. Basta uma pá e uma mulher. Sem homens com armas de guerra. Que baste a nossa ironia, mas que arrase.

Somos um povo inteligente e devemos exigir que os nossos representantes máximos na política nos respeitem e sejam responsáveis. Responsáveis e competentes. Excluam do hemiciclo os que vão para a política porque não conseguem emprego no final dos cursos e ali pousam porque têm um pai influente. Deixem apenas os mais capazes, os que encaram a política como o seu mister; reduzam o número de deputados para metade. Mais: aumentem-lhes o ordenado para o dobro, porque o merecem, porque representam a nossa vontade, porque defendem os nossos interesses, porque servem com dignidade os seus concidadãos, porque elevam o conceito de política, porque honram o nosso país.

Mas retirem-lhes as mordomias que os fazem sentir diferentes e superiores aos outros trabalhadores (como é? – 12 anos de trabalho+40 de idade = reforma; e eu tenho as mesmas habilitações académicas (mais do que alguns que lá estão), 64 de idade+35 de trabalho e recusam-me a reforma?). Já não há nobres, já não existe sangue azul, está cientificamente provado. Há, porém, nobreza de sentimentos, de civilidade, educação, superioridade pela capacidade de trabalho, de liderança e de decisão.

Ali, reside a responsabilidade máxima. Não deve, não pode haver transgressores. Quem prevarica, tem que ser punido.



sábado, maio 13, 2006

Tons de Matisse

«A novidade, a sua enorme ousadia, nunca houvera uma mulher médica na Madeira, empolgou os dois Vaz de Lacerda, vencendo mesmo as masculinas reticências de André. As criadas, pasmadas, comentavam entre si, em voz baixa, o espanto de uma menina solteira, bem-educada e de boas famílias, pensar em estudar coisas tão impróprias, tão feias, ver todas as partes do corpo, gente nua, até!

Correndo, correndo, a novidade deu a volta à Praça da Constituição, abafou os tímbalos, os tambores e os clarinetes e regressou ao pequeno grupo que abordava, agora, mais calmamente, a dificuldade das matérias do primeiro ano. Quem lhes apareceu com os ecos do escândalo foi o cónego Nicolau Villa, alto, robusto e escuro como um mouro. Benedita imaginava assim, embora muito mais jovem, o Othelo de Shakespeare. O cónego curvou-se diante de Benedita com a elegância mundana que a entrada tardia para o seminário não lograra anular e que os anos não quebravam: “Prima Sra. D. Benedita como está? Notícias dos pais? E os seus estudos, André?” E virando para Catarina Isabel o seu olhar penetrante: “Então, senhora D. Catarina, matriculou-se em Medicina? Os meus parabéns. Já vai sendo tempo de as mulheres serem tratadas por mulheres.”»
Helena Marques
E vai sendo tempo de olhar e respeitar os animais, não só porque eles são animais, mas, principalmente, porque nós também o somos. E compreendê-los. E partilhar com eles as suas brincadeiras, dedicação, alegrias e tristezas, interrogações também.

Num fim de manhã, eu havia subido aos quartos e sentei-me na cama a ler o final do livro «O Último Cais» de Helena Marques. Embrenhada com as personagens pela Ilha da Madeira, mal dei pela subida do bichinho que habitualmente me acompanha pela casa. Mas desta vez estava inquieto. Não lhe prestei atenção e passarinhou pelo quarto com as patinhas a matraquearem na madeira do chão, depois parou. Como me visse impávida, resolveu lançar um leve «huuum…», e desviei a atenção do livro para ele.

«O que foi?» Perguntei. O cãozito, que não tem mais de um palmo de altura, estava no tapete de pé, parado, a olhar para mim. Quis regressar ao livro, mas ele, inconformado, repetiu o chamado mais prolongadamente. Arreliada com a insistência, voltei de novo a minha atenção para ele e fui ralhando: «Mas o que é agora? O que quer sua excelência afinal?»

Então correu para as minhas pernas, puxando-me as calças e rosnando, como faz habitualmente quando está muito excitado e quer partilhar a sua alegria. Levantei-me, voltei a perguntar o que queria e ele começou a descer as escadas, parando para que eu o seguisse, o que fiz, claro. Levou-me até à cozinha, depois ao quintal e desceu as escadas para cave. Só aí ele ergueu a cabeça para o céu.
Fiquei estupefacta! Os beirais estavam pejados de andorinhas que chilreavam e lutavam por um espaço para descansar àquela sombra ainda estreita.

Voltou a subir as escadas, corria e olhava para eles e para mim como quem espera uma resposta.

— São passarinhos, Matisse, são passarinhos que trazem a Primavera!
As andorinhas estavam de passagem, em migração para locais mais acolhedores decerto, pois no fim do dia desapareceram como tinham surgido.

Que pena! Que pena não alegrarem sempre esta casa com os seus chilreios!

quinta-feira, maio 11, 2006

É preciso chuva para florir...

«Peço-te que cases comigo perante África, sob o rumor e a bênção de um embondeiro; e que caminhemos descalços sobre a alegria das coisas simples, que sejamos um do outro até o crepúsculo dos dias se fechar em nós, até mesmo que as pernas nos tremam com o peso da idade e a porta da nossa casa se transforme na fronteira mais distante, e arrastemos, vacilantes, os pés até chegarmos junto dela; que não haja nostalgia daquilo que já não podemos fazer, nem saudade, nem melancolia, porque somos o princípio e o fim um do outro, e assim nos completamos cumprindo a vida e a nós próprios. O mundo somos nós…»

Eduardo Bettencourt Pinto

O mundo somos nós. Só esta frase foge à poesia da escrita, só esta frase é real, verdadeira, palpável.

Tudo o que se escreve está para além do nosso entendimento porque nós queremos dizer o que nunca poderemos compreender porque o que não vivemos, naquele lugar, naquele espaço, naquele tempo, naquela Primavera ou Estio. Porque os Invernos devem ser esquecidos para bem do porvir, mau grado a beleza da neve quando sobrevoa e cai sobre os telhados e campos, quando a brancura desce sobre os cabelos, quando o olhar murcha marejado e o riso vinca ainda mais as rugas da face.

O mundo, o nosso mundo, somos nós que o construímos consoante as estações flúem dentro do espírito mais que do corpo. É preciso amor para poder pulsar / é preciso paz para poder sorrir / é preciso chuva para florir, assim diz a canção.

E a chuva é o símbolo da minha terra de nascimento. Chove nove meses em cada ano, o tempo de construir uma vida nova. Ninguém imagina Nova Lisboa sem chuva, como Luanda sem Marginal, como Lobito sem Restinga, como Moçâmedes sem o Namibe. Como qualquer destas cidades sem acácias. Acácias rubras.


Em Nova Lisboa a estação das chuvas tem início em Setembro e prolonga-se até Maio. A última acontecia normalmente, anos a fio, no dia da procissão de N.S. de Fátima, que conduzia a imagem desde a Sé, subindo a Av. 5 de Outubro, contornando a praça Norton de Matos, seguia a avenida, virava no jardim Salazar e algures por aí, antes da chegada à Igreja de Fátima, desabava uma chuvada mansa de despedida.

Porque a chuva em Nova Lisboa é intensa, forte, tocada a vento, incontornável com guarda-chuvas ou gabardines; anunciada por trovões assustadores, as nuvens sobem negras no horizonte e num ápice se desmancham em torrentes avassaladoras a que é preciso escapar e depois, apenas aguardar. De repente cessa, o céu abre-se num azul vibrante e sob os pés acende aquele odor a terra molhada que vivifica todos os seres.

No horizonte uns resquícios de nuvens adquirem tons de púrpura inigualáveis acolhendo ainda o resplendor do astro-rei já mergulhado a alumiar outras longitudes.

terça-feira, maio 09, 2006

Descontinuidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei-de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive)
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinicius de Moraes



Eu não sinto dor. Hoje não sinto dor e não há qualquer razão para me sentir infeliz; quando muito, desinfeliz. Dizem as boas regras que duas negativas dão resultado positivo, quer na área da matemática, quer no que toca à linguística (nem sempre), à história das palavras, ao jogo que nos leva a dizer coisas aparentemente incoerentes. Por que não descoerentes? Se quisermos, poderemos encontrar diferenças entre estes dois aparentes sinónimos, um deles ainda não registado nos nossos dicionários. Incoerente é certamente todo aquele que não se rege seguidamente por determinado comportamento que levaria os outros que o acompanham nas suas ideias a esperar um registo que não acontece em determinado momento. Mas de seguida ele retoma a sua coerência. Numa altura determinada ele foi incoerente e regista-se o facto.
Ser descoerente é cortar repentinamente com a ligação que percorre o pensamento de alguém e nunca mais retomar o fio de Ariadne, é abandoná-la na ilha. E não porque se esqueceu, apenas porque a sua descoerência assim o determinou.

Anos oitenta. Tarde invernosa de Novembro, escura de nevoeiro que entristece a aldeia, enevoa o espírito e desliga-o de tudo o que é real.
- Já bacoraste, mãe!
- Claro. Não consigo perceber o que se passa com este parvo deste gravador... ou comigo, sei lá!
- Pois é, mãe, não tens vida p'ra isto...
- Meu filho, por favor, não vais sair com esse casaco vestido, pois não?
Sorriso jovem, de filho. Piscadela de olho ao companheiro ali ao lado, à espera. Corrige a posição dos botões do gravador, volta-se. Já está. Compõe-se. Agora os botões do casaco.
- Olha só, não fica baril? Assim velho e surrado é que tem requinte...! Tchau, está quase a to... caaaaaaaaaaaaaaaa… r.......
Outra vez frio. Escuro. Silêncio...

...Queevè...è...è! Ei, Minina Queevè!

Olhos de espanto. Interrogação. Algazarra lá fora.
- Patrão matou jacaré. É...é. Anda ver!
- Mentira...
- É...é. Verdade mesmo! Corre!
Chegada arquejante junto ao círculo onde confluíam todos na redondeza: cozinheiro, lavadeira, criados, serventes, mulheres, garotos. O João e eu, claro.
- O'ngando inê...ê...êne!
- Haca!
- Hum...hu. Avôiô...ô..!
Meu pai sorria, satisfeito, a língua a brincar com o capim seco na boca. Botas altas enlameadas, rosto afogueado, cabelo colado à testa. Mas ar de festa.
E festa foi. Para todos. Carne branca de réptil, manjar de deuses para os indígenas. Para recordação, um cheiro que durante três dias empestou tudo em redor. Pestilento e nauseabundo.

E a pele. É verdade, tenho de não me esquecer de a estender ao sol, quando o houver. Com esta humidade toda, enche-se de bolor.
Veio, foi, voltou. E aqui está intacta. Desafiando tudo, enrolando tudo o que sobra das vidas que ficaram, no seu rolo escuro dentro do papel pardo, no armário húmido.
O que eu quero lembrar, só o que eu quero lembrar...

sábado, maio 06, 2006

Bulgária

«Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como Sampetersburgo – entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre, que aqui escrevesse, ao menos ia até ao quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de Estio, viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância nos entulhos do Cais do Sodré. E nunca escrevi estas minhas viagens nem as suas impressões: pois tinham muito que ver! Foi sempre ambiciosa a minha pena: pobre e soberba, quer assunto mais largo…»

Almeida Garrett



Num outro canto do mundo, debruçada para o mar Negro, a Natureza é una na sua diversidade: o mesmo azul no céu, a mesma explosão de flores em cada árvore, o mesmo entardecer em cada silhueta de catedral.

Só a tradição dos homens nos traz alguma originalidade, e ainda assim, idêntica nos seus anseios: sempre os desejos, sempre os feitiços, sempre o espírito a inventar-se para concretizar sonhos. Para os materializar, enfeites em tons de branco e vermelho para cada novo florescer, escola com nome de menino grande – Saint Exupéry –, arte em ânsias de infinito.

Mais prosaica a sesta do urso com seu dono na sombra dos pinheiros floridos e, para matar saudades de casa, o almoço de jaquinzinhos…








terça-feira, maio 02, 2006

Epístola



À menina Iria Augusta

Vamos entrar nos 17 e com mais um serão 18 e assim continuará a vida através dos séculos. Salve !!!
Agora nós: - Diz-me sua mãe que a menina tem vontade de escrever àquele a quem respeita como pai, mas que não sabe o estilo, não sabe como ele gosta e daí o seu retraimento. Belo: até aí está muito bem.
Ora nós outros, seres conscientes e responsáveis, que assumimos na totalidade a responsabilidade de nossos actos, ainda os condenáveis pela sociedade onde vivemos, porque temos um raciocínio são, nada fazemos inconscientemente, tudo obedece a princípios definidos e confessáveis a Quem estiver à altura de os compreender...
Vamos agora definir o ser humano, dividi-lo em três partes para uma menina, para quando Ela tiver necessidade de escrever àquele que respeita como pai:

1º - Alma: - É tudo o que é de grande, de construtivo, de Belo.

2º - Espírito: - É tudo o que é sagaz, humorístico, mordaz, analítico, psicólogo, descriminador, em suma, o abarcador de todos os temas.

3º - Coração: - É tudo o que consta de Piedade, Amor, renúncia, comiseração e tolerância, e é ainda ele o senhor absoluto do ódio, e sem coração não há consciência.

Menina Iria Augusta: Registei-te como minha filha, dei-te o nome que tens em recordação de minha Mãe e de uma filha que teve sempre chorada, sem coacção exterior ou consulta, abusando contra terceiros segundo eles, e fi-lo com duas partes do meu todo, com a Alma e com o Coração, deixando o Espírito no olvido, que agora procura a desforra. Coitado, está em minoria.
Se fosses minha filha de facto, e, ainda de Direito como és, terias assunto e estilo em qualquer das partes de per si, aliadas ou em conjunto, sem necessidade de o mandar perguntar.
Dispensa no entanto aquele que tu respeitas como pai qualquer esforço e de qualquer natureza ou estilo para lhe enviares uma carta.
Outrossim, o teu pai de facto anseia sempre pelas tuas notícias, no primeiro, no segundo ou no terceiro, com a aliança de duas ou as três em conjunto, como as sentires no momento, são sempre esperadas a todas as horas, a todos os momentos, e sempre bem-vindas.
Com as três partes em conjunto, com duas aliadas por qualquer dos lados e com cada uma separadamente, te abraça às onze e meia do dia 2 de Maio o

Eduardo