sábado, julho 21, 2012

RESPIRAÇÃO

 
Às vezes sinto-te entre o sol e o papel,
às vezes oiço-te quase respirar
nas tranquilas coisas repousadas,
mas sempre estou a procurar-te.

Não te detenho nem fiel te sou,
às vezes, simplesmente, sem que o queira,
e de tanto te querer, já o sou,
roda rodando no meu pulso,
ao lento baile em que a visão começa.
António Ramos Rosa

 
Parece que o mundo se detém quando estou de frente ao mar.

O areal alonga-se com o olhar até ao rochedo alto que recebe do outro lado o rio, os passos seguem ao longo da praia e o mar vem apagar as marcas deixadas. Há uma solidão aprazível que também apaga dentro de nós as marcas que não se escreveram sobre a areia da alma, que a reverberação da luz sobre a água inquieta, o vento suave não deixa ver, não deixa sentir.

Assim, sento-me na duna e repouso o olhar pelo longe, as ilhas nítidas no horizonte claro, a vastidão da água num atropelo de sentimentos e sensações inefáveis de uma saudade curada, de sonhos que não são concretizáveis, sonhos desenrolados como as ondas junto à praia, uma e outra vez repetidas, nascendo umas desfazendo-se outras, com a sabedoria dos séculos.

É aqui que me sinto em casa. Na minha casa de dentro, onde ninguém impõe regras porque tudo acontece com o determinismo do sol que nasce e se põe em cada dia novo, das marés que pulsam ao apelo do planeta que nos enfeita o céu, das chuvas que se derramam em lágrimas, dos cacimbos que geram a saudade do planalto, dos invernos de ondas brancas que pintam de cal as terras as árvores e as casas.

E é aqui que ouço todos os segredos do mar e do vento, nem sempre coincidentes com as previsões meteorológicas.

sábado, julho 14, 2012

CAMINHOS IMPÉRVIOS



Na minha terra
há uma estrada tão larga
que vai de uma berma à outra

Feita tão de terra
que parece que não foi construída.
Simplesmente descoberta.

Estrada tão comprida
que um homem
pode caminhar sozinho nela.

É uma estrada
por onde não se vai nem se volta.

Uma estrada
feita apenas para desaparecermos.
Mia Couto in «Tradutor de Chuvas»

 
*       Segue um caminho estreitíssimo, da largura de um pé, entrando pela mata, mulheres negras esguias, quindas largas de milho sobre a cabeça num equilíbrio inimitável, crianças às costas, rumo à clareira onde as pedras redondas que afloram do chão esperam os bagos gordos do milho humedecido que há-de tornar-se em farinha macia.
*        
Sentadas, enrolam os panos no centro das pernas afastadas e entoam uma cantiga repetida como se em desgarrada, perguntando uma e respondendo outras em coro, numa melopeia indecifrável, mas soando agradavelmente ao ouvido. Em fundo, as batidas do pilão na pedra marcando o ritmo, outras sacudindo já quindas rasas, atirando ao ar o milho partido, para separar as partes do grão que depois resultam em farinha mais e menos fina.

Os bebés dormem nas sombras próximas em camas de panos enrolados, sombras de árvores ou sombras improvisadas com as quindas despejadas, e novas e velhas cumprem o ritual do trabalho comum. Não raro uma avó encarquilhada entrega a mama ao pequeno que chora, para o acalmar ou adormecer, enquanto a mãe termina a tarefa a ser cumprida.

O mesmo trilho se alonga a caminho do rio, passagem das mulheres para a pesca colectiva em certas épocas do ano, para os homens de zagaia na caça combinada – o gebo – para os bichos em fuga da queimada que os percorrem assustados, as patas, os cascos seguindo os caminhos marcados, que a astúcia do homem evita então pisar. O mesmo caminho do rio onde o gado lambe o sal ao final do dia, onde as rolas se juntam às dezenas para o único tiro de caçadeira – esse gavião que não desce dos céus, apenas troa e fulmina. Ainda e sempre o caminho que bordeja a vala, que sobe à nascente onde a água brota da areia branca e fina da gruta recatada, ladeada de pequenos fetos.

Esses os caminhos da minha terra, as rotas infindas de pessoas e bichos onde tudo acontece, a vida e a morte, poeirentos no cacimbo, enlameados nas chuvas, veredas de todos os sonhos, encantos e pesadelos. Caminhos de areias ainda de África onde era preciso não ter estado, não ter pisado, não ter nascido.