quinta-feira, maio 28, 2009

Pássaros


Si l'oiseau ne chante pas
c'est mauvais signe
signe que le tableau est mauvais
mais s'il chante c'est bon signe
signe que vous pouvez signer
Alors vous arrachez tout doucement
une des plumes de l'oiseau
et vous écrivez votre nom dans un coin du tableau.

Jacques Prévert




Nada a fazer. Há dias em que o meu canário cá dentro não canta, como diria o menino do Meu Pé de Laranja Lima. Não canta, não voa, mantém-se alheado na sua tarefa de alisar as penas. Posso acenar-lhe com a melhor alpista, com a mais fresca folha de alface, põe a cabecita de lado a olhar-me com aquele olho redondinho e brilhante. Não come.


Então cresce em mim aquela força de Prévert, a vontade imensa de pegar num lápis, desenhar uma gaiola bonita e colocá-la cuidadosamente entre os ramos de uma árvore frondosa, com a porta aberta. Talvez entre por ali um passarinho. Um peito-celeste ou um bico-de-lacre, por exemplo. Também poderia ser um pisco-de-peito-ruivo, daqueles que fazem vénias a agradecer se lhe deixam comida no muro e reclamam estridentemente da chegada do gato ao seu território. Se aparecer algum, pego numa borracha e apago cuidadosamente cada barra de grades da gaiola e deixo o passarinho pousado na árvore, como fez o Jacques.


Mas é preciso que uma ave se chegue e cada vez mais os grandes passarões não deixam que elas povoem os espaços, porque o pouco que sobra no mundo que temos mal chega para eles. «Eles comem tudo e não deixam nada». E também não se deixam apanhar, as gaiolas são só para os mais pequenos.



segunda-feira, maio 25, 2009

Consciência


Sonhar que sonho, agora?

Tempo já sem amor,

Ou dele envergonhado,

Tudo é pecado,

Mesmo imaginar.

A vida insiste

Mas a hora é triste.

Crepuscular,

Cansada,

A durar por durar,

Apenas mede

Esta desgraça

Humana,

Baça,

Quotidiana,

De quem da própria sombra se despede.

Miguel Torga




Assalta-me cada vez mais frequentemente o desejo fugaz de pegar o fio de Ariadne e caminhar ao encontro de espaços e tempos percorridos no labirinto da vida. Parar numa curva da estrada batida, naquela ponte em que o rio levou o tabuleiro na grande chuvada da noite, naquela pedra lunar pregada no alto da serra a ver das perdizes coloridas e das galinhas do mato pintadas.

Parar e olhar para o futuro, sem provar a água do Bengo ou escutar de Coimbra o canto.

Parar apenas e sentir o latejar da terra, ouvir os sinais de mim e habitar o mundo. Com determinação, agarrar o medo e concretizar os devaneios afinal pousados na minha mão como uma dádiva, um dom, uma bem-aventurança. Guardar os sonhos de olhos abertos e não os que assaltam as noites, algures num lugar, na cidade ou no campo, numa gare, comboios passando, comboios perdidos, autocarros em sentido inverso, alguém falando, comunicando, a noite caindo devagar e eu só. É tarde, procuro um transporte, regressar a casa porque estou longe, muito longe e é preciso ir. Há desassossego, ansiedade; não choro ou desespero. Nada disso. Há gente que não me diz nada mas que me fala, me atende, me recebe. Eu olho e não fico. Volto a sair. Quase sempre ao anoitecer, sinto o dia a terminar e a inquietude aumenta.

Os sonhos da noite pesam como no tempo real e raramente perduram na memória quando não magoados, quando não repetidos. Acordar é sempre pousar de um voo, sacudir as penas e procurar a sobrevivência, a inserção no ciclo da vida. Um elo na cadeia. Nem melhor, nem pior. De preferência, consciente.


quarta-feira, maio 20, 2009

Mudam-se os tempos...


Mas não desistas ainda. Tens tanto ainda que amar. Olha a vida e sorri. E não te perguntes para quê. Porque o mais extraordinário dela é justamente não ter para quê. Saber para quê, é dar-lhe uma finalidade conclusa, limitá-la, fechar-lhe o seu excesso. Pensa assim que o seu absurdo é a sua maior razão.

Vergílio Ferreira


Meu pai que Deus haja – utilizando uma expressão bonita caída em desuso – dizia sabiamente que Deus se encarregava de confrontar os homens, no fim da vida, com situações de tal modo assombrosas que os levava a aceitar com resignação a irreversibilidade da morte.


Pois as gotas vão caindo devagar.


Numa revista de grande tiragem, li esta semana um artigo de duas páginas, encimado de grandes letras, ilustrado a grandes desenhos, que me colocou reduzida a mera nota de banco dentro da grande instituição bancária que é a sociedade em que estou inserida. O artigo era bem simples e prosaico: o casamento. Ou antes, o presente que se deve oferecer no casamento tout court, como hoje é entendido, contrato entre homens e homens, homens e mulheres, mulheres e mulheres. Nada daquele dia longamente ansiado, o primeiro voo do ninho paterno, a celebração de um início de vida a dois, o enfim-sós.


Nada disso. Aquilo a que chamarei o negócio do casamento, nunca indevidamente, porque o casamento é sempre um negócio, por deprimente ou pejorativo que possa parecer o termo aplicado. Neste caso, o cálculo de um investimento monetário na ordem dos 125 euros por pessoa, com lucros esperados capazes de suprir às fantasias de um casal já instalado na vida comum, sem necessidade, portanto, de ofertas de peças decorativas ou utilitárias para a casa. Muito menos presentes de valor afectivo. O retorno deveria cifrar-se em notas de banco ou cheques, em sobrescritos fechados, e o volume dos mesmos augurava bons lucros. Tudo corrente e habitual.


O ponto relevante do artigo era então a falta de vergonha de quem ocupou um lugar de 125 euros, desfrutou do repasto e da visibilidade mediática do acontecimento e entregou um envelope vazio ou, com algum despautério, nem se dignou fazê-lo. Pior: uma tia anciã teve a coragem de bordar um relógio a ponto-de-cruz e oferecê-lo aos noivos!


Sem outras considerações, este é o espelho da nossa crise, sem saída à vista porque arrasa a educação para os valores do humanismo, reduzindo tudo a transacções monetárias, ao mesmo tempo que aceita como normalidade o facto de se iniciar uma nova vida desde logo acima das reais possibilidades.


Para além de quem assina o artigo, há também uma «directora pedagógica» a dizer dos costumes actuais, a estabelecer a norma.


Para que conste, não aceito convites de casamento.


sexta-feira, maio 15, 2009

Repousante repetir o rito...rrrs!


«– Eh lá Gonçalo, és?

O pastor desatou a rir.

– Houlá Rosária, eu mesmo! Guarde-te Deus, pimpona!

E logo a voz fresca da rapariga lembrou:

– Não te esqueceu a moda, rapaz!

– Isso esquece ela…! Ouviste Rosária? – Se outra fosse que ma tivesse ensinado…

Neste meio tempo já o Gonçalo tomara a manta e o marmeleiro para ir ter com a Rosária. Mas primeiro perguntou:

– Boto pela ponte ou é tu que vens, ó cachopa? »

Trindade Coelho




Nada mais voltou a ser igual depois das rosas.


Eu nem gosto tanto delas, mas é a cor, o veludo, a perfeição, a arte das pétalas, também o perfume, como aos insectos atrai, assim me deslumbra.


Cresci entre flores, a saber olhá-las, dizer-lhes o nome e fazê-las partilhar das minhas brincadeiras, tanto tempo sozinha. Apertava com dois dedos meninos o fruto arredondado das alegrias-do-lar debaixo das laranjeiras, junto à varanda, que se enrolavam em forma de lagarta depois de espargir pintinhas pretas em redor; apertava os olhos dos cosmos nas faces para fingir de lágrimas, batia os tubos longos da chuva-de-ouro, ainda fechados, na testa, para ouvir estalidos e soprava-lhes para tocar – por isso na Madeira lhe chamam «gaitinhas». Usava as pétalas de cor para pintar as unhas e fazia pulseiras e colares de corolas de flores de que já não recordo o nome. Cuidar das flores pela manhã cedo, regar em fim de tarde, foram rituais na minha infância.


É, pois, repousante, repetir o rito no fim da vida, ainda que seja apenas cuidar de um parapeito.


Eu tenho sempre uma janela florida, mesmo quando lá fora o vento leva as folhas, a geada queima e a tempestade troa.


Porque eu tenho uma janela com o sol da manhã.


quinta-feira, maio 07, 2009

Silêncio


Pedra a pedra construo o meu poema
e é nele que dos dias me defendo.
Nada sei de emoções manipulo morfemas
e nas cidades sinto a solidão dos campos.
Humano mesmo se demasiado humano
não peço ou posso privilégios de poetas
e desconheço a carne cerebral de que careço nos
sonhos que me semeiam as semanas
cingidas de cidades sossegadas

onde só o silêncio é soberano

Ruy Belo



Olho devagar o tempo e sei que não quero voltar atrás.


Como se em cada hora o mundo se enleie de prazer, se desfaça em desânimo ou simplesmente adormeça e eu mantenha a capacidade de sentir por todos os poros invadir-me o silêncio duma solidão merecida. Aquela solidão que me preenche a vida e me dá este olhar manso, capaz de ver os homens acordarem a tempo para reconsiderar sobre a sua missão na Terra.


Foi ontem que me atulhei de sonhos, me lavei em lágrimas, me desfiz em ânsias. Os sonhos verdadeiros continuaram sonhos, redondos e doces, os outros não cresceram ou foram pisados, comidos, apodrecidos pelo bolor da humidade e do esquecimento. As lágrimas não resolvem coisa alguma e as inquietações desmedidas abrandam com o passar das estações, lavadas pelo caminhar inexorável das horas, dos dias um atrás do outro.


Tudo, mas tudo, o que tomei por certo, correcto e verdadeiro na minha construção como pessoa, se desmoronou já depois da casa coberta. Foi o tempo das chuvas, foi o cacimbo agreste, foram as queimadas, foram as tempestades, foi o rio que subiu as margens, as lagoas soçobraram e a vala deixou de correr límpida e lesta. Um dia, o vento levou as telhas e as paredes quedaram-se nuas.


Ser feliz ou infeliz é uma coisa tão vaga que não chega a ter sentido. A felicidade é algo tão etéreo, adejante e breve como uma borboleta, daquelas a quem dão o nome de efemérides porque não duram mais do que o tempo de uma rotação da Terra. Mas uma borboleta é sempre uma borboleta e há-as lindíssimas, de asas coloridas e caprichosamente desenhadas. Algumas têm asas enormes e deslocam-se com a brisa em movimentos irregulares, ondeantes, levíssimas. Quando pousam e se deixam olhar, são fascinantes. Têm um corpo esguio e atento naquelas antenas longas e delicadas, de ponta enrolada.


Pois a felicidade é talvez isso. Pedaços de vida curta e breve. Quando surge é um deslumbramento de asas enormes. Procurá-la, é tolice. Ela simplesmente acontece. O erro humano está na avidez, a necessidade de a possuir, reter, guardar, prender. Só os abraços devem ser intensos, sem tempo cronometrado. Há os abraços que permanecem, mas um abraço é uma entrega mútua, ninguém é abraçado se não abraçar também.


É uma palavra bonita, bonita como uma borboleta.


domingo, maio 03, 2009

Repensar


Temos todos duas vidas:

A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,

E que continuamos sonhando, adultos num substrato de névoa;

A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,

Que é a prática, a útil,

Aquela em que acaba por nos meter num caixão.


Na outra não há caixões, nem mortes,

Há só ilustrações de infância:

Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;

Grandes páginas de cores, para recordar mais tarde.

Na outra somos nós.

Na outra vivemos;

Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;

Neste momento, pela náusea, vivo na outra…

Álvaro de Campos





Nada é para sempre.


Nem a vida que vivemos, nem os sonhos que sonhamos, nem a tristeza em que afundamos quando implodem os muros que nos sustentam. Depois do estrondo, da poeira que nos cobre, a chuva cai de manso e escorre deixando sulcos, rugas, estrias, limpa a cor dos cabelos e humedece o chão. Fertiliza.


Então os contentamentos crescem de manso por entre as pedras e deixam um rasto ténue de cor, como um sorriso, É o milagre a que damos o nome de natureza, onde o verde desponta de um grão de pó, a borboleta emerge esplendorosa de um ovo seco, onde o espectro solar acende no fundo da tempestade.


Mergulhar na natureza, nas raízes do tempo, na noite, é lenitivo para as inquietações do espírito, também quando as dores são reais porque se reflectem no corpo já gasto. E quando não há forma de fazer sentir aos outros que os grandes problemas que afectam o mundo e cada um em particular, não é nada do que o mundo global noticia sobre a grande finança que leva os países à falência.


É simplesmente saber dividir o que já temos e chega para todos.


Para todos sermos um pouco mais felizes.