terça-feira, outubro 27, 2009

Ah, minha Dinamene!


…Não sei se o que escrevo tem raiz a raiz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.

Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli




Gosto de ver chegar o sol depois da chuva que deixa tudo lavado.
Sorriem as gotas brilhando sobre as pétalas, as folhas, a relva, mas falta-me o cheiro do calor da terra e o céu também não é igual; sinto as nuvens mais leves, o horizonte sem linha.
Nesses breves instantes assola-me a ideia de que preciso de voltar a encontrar o chão que deixei e vive comigo, misturado nas ilusões que mantenho a dormir e nos sonhos que eternizo acordada.
Cresceram as silvas, as canas encheram as margens do rio, mas a casa está de pé. Nas janelas ainda as cortinas de renda antiga cobrindo os parapeitos largos, na janela do meu quarto a pedra de mármore rachada onde pousava aquele vaso de avencas sempre viçosas, crescendo constantemente em cabecinhas enroladas, como que envergonhadas de tanto viço.
Quem sabe os livros ainda nas estantes do quarto dos pais que contornavam a secretária grande para formar o escritório. As portadas das janelas pintadas de verde musgo, as portas altas, com bandeiras de vidro por cima, o tecto de tábuas de tom dourado todas marcadas dos nós da madeira de pinho, a minha cama de ferro a fingir-se coberta de verdete, as maçanetas e as barras a pedirem solarine, o mosquiteiro branco…
 «Acordo e vejo que nem um breve engano posso ter…»

terça-feira, outubro 20, 2009

Caldas da Rainha



«No Café Central, enquanto a bica não chega, tento fixar o olhar nos unicórnios de Júlio Pomar, que cavalgam a parede oeste em fundo azul-marinho, baixo-relevo, sem espessura, por onde a vista navega até ao oceano e às personagens míticas que o habitam. Com delírio febril interrompo a quietude dos bichos mitológicos, assim plantados desde o ano de 1955, conforme reza o quadro. Vejo-os correr livremente pela praça. (…) Reponho no quadro os irrequietos seres mitológicos, devolvendo à Praça da Fruta o ambiente próprio de uma manhã de domingo do mês de Maio: festiva, colorida, com legumes, flores, frutos e tudo, mas sem unicórnios, que só existem em misteriosos livros de mitologia, e no velho quadro de Júlio Pomar.» 


Carlos Querido in «Praça da Fruta»





Nasci em África, onde passei a infância e a juventude, olhos postos na Europa dos meus maiores, na «Metrópole» onde morava a civilização. Assim mesmo, a civilização. O prosseguimento dos estudos, o bem-falar, o bem-escrever, os escritores que descobria; os vinhedos, os olivais, os soutos e os pinhais; os moinhos, os castelos, os lugares onde se desenrolavam as histórias da História que aprendi na escola.

Naquela época – e já foi há muito tempo – não havia televisão, não havia quem imaginasse por nós as histórias que líamos grafadas no papel, e assim a nossa mente elaborava os cenários com uma dimensão à medida dos nossos desejos, aumentados à lupa pela saudade dos nossos pais.

Quando o encontro aconteceu, as expectativas não foram goradas, mas o tamanho das coisas passou a ser real. O abraço foi quente e permanece o encanto. Ainda hoje tem chama, ainda hoje me afaga, me perturba, me enleva. Mas a cidade que então me acolheu, cansou-me: não era a Lisboa que os meus sonhos acalentaram, e só o tempo me ensinou a amá-la. É, ainda hoje, a «minha cidade» entre todas. 

De África me ficaram as memórias, empoladas de saudade; da Europa a realidade que me envolve, mais anos já passados de presença do que ausência. O que me rodeia é cada vez mais próximo e gosto de ver o olhar dos outros a pousar delicadamente nele. Gosto de os ver afagar a sua região, dar-lhe as mãos, apontar-lhe as cores, os sabores, como quem lambe uma cria, como quem desvenda a sua forma de amar.

Caldas da Rainha tem muita História. E histórias bonitas contadas pelos seus.


terça-feira, outubro 13, 2009

Conforto entre Muros


“A classe eclesiástica não significa a realização de uma crença; é ainda uma multidão de desocupados que querem viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira, como se compreendia outrora, é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado vindo ser deputados a 2$500 réis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres, e das casas arruinadas; é a ocupação natural das mediocridades; é o usufruto da burguesia. Ora como o Estado, pobre, paga tão pobremente que ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais a filhos como uma fatalidade”.

Eça de Queirós




Ler uma página intensa de escrita é como sentir-se a escalar um muro alto, cavalgar um obstáculo, galgar uma muralha antiga e depois seguir as palavras despenhando-se, nem sempre ordenadas no espaço, no tempo, mas sempre precipitando-se com fragor, troando, rolando umas atrás das outras, algumas pisando, magoando, matando, ou simplesmente correndo mais leves, amortecidas pela grama, suaves compondo um desenho novo.


Tudo parece actual porque a história se repete e os homens não aprendem. Falam da liberdade mas não se libertam das amarras com medo de afrontar o oceano, continuam Velhos do Restelo, quiçá sonhando as navegações dos outros, mas incapazes de darem as mãos e entrarem juntos no barco. E os poucos que partem, já não querem regressar, receosos das areias movediças que ladeiam os rios da sua pátria.


Dos que deixaram longe a força da mocidade caminhando frontal e temerária, segura dos seus passos, palmilhando a areia sem temor das dunas, contornando as árvores na floresta insegura, ou civilizadamente cruzando os ares e os mares ou os caminhos de asfalto, pisando, rasgando, conspurcando, poluindo, a sabedoria da idade adulta moderou os excessos, cientes já da insegurança subjacente em cada passo, cada encruzilhada, cientes das dificuldades na construção das pontes, cientes da impossibilidade do regresso à casa paterna.


Já deles os cabelos perdem a cor, a suavidade do toque, ou simplesmente deixam de estar. A pele escurece juncada de manchas, de estrias, as veias crescendo através dela, os ossos alterando o molde perfeito inicial. Nem há como fugir a isto, salvo adoçar o tom e o gesto, encher-se de cor e de música, manter o brilho do olhar, carregar-se do espanto da infância. Resta-lhes a hora final e, à boca da urna, deixar então o voto expresso.


Matar só porque (e quando) se tem fome.


quinta-feira, outubro 08, 2009

Noite molhada




«Il me faut retrouver le seul territoire salutaire, mon seul refuge, l’écriture. Il me faut le transporter, hors d’atteinte du hasard, hors des avatars de ses rencontres. Il me faut lentement y égrener mes pensées, pour leur éviter de tomber dans l’à-pic vertigineux de l’angoisse. Alors seulement, mes rêves pourront être sereins.»
Malika Mokeddem



A chuva caindo devagar, os beirais soando na noite, trazem até mim os rostos que me adoçaram a infância. A face escura do meu Velhote, enrugado pelo sorriso permanente, os olhos perdidos nas pregas fundas, os dedos tamborilando a tigela de esmalte azul debruada a um tom mais escuro, branca por dentro. «Ca senhora catito» (minha senhora pequenina) era o seu bom dia para mim em cada manhã na fazenda.

E eu aprendi a sorrir com ele.

A tigela era o convite para irmos buscar juntos ao armazém as batatas para o almoço, à horta as cenouras e os nabos, a hortaliça para a sopa. Colher os morangos, depois. Vejo ainda nas suas mãos um rolo de folhas de couve muito apertadas e, com uma faca longa e fina, afiadíssima na pedra ao lado da vala, cortá-las para o caldo verde, a minha única sopa desejada, servida fumegante e regada – já no prato – com azeite.

Olho o céu pesado que me afaga e parece que a noite nasce da escuridão daquele rosto sempre doce, como um manancial de quietude e generosidade. Tantos anos volvidos depois que o perdi, tantas vezes recordado pelo carinho de nós, pela dedicação a minha mãe, pelo mimo de ensinar-me a comer por sua mão, no seu braço, entre as laranjeiras do quintal.

Choro a dor de não os ter por perto, os tais rostos de quem não recordo mais que ternura e humildade, riso e bonomia. Tenho hoje a certeza que velam por mim onde quer que estejam, são eles a força que me faz sentir única e exalam aquele desejo morno de regressar, em cinzas, um dia.


sábado, outubro 03, 2009

O Reflexo

«Cresci para a língua portuguesa desde muito cedo e arrastei-a comigo, com a pintura, como um bicho amigo, até hoje, sem ter nenhuma das credenciais da erudição em línguas. «Escrevi, amei e até cri», a memória de Fernando Pessoa, devassada mas autêntica. A arte que escolher a cada momento inclui sempre a nossa língua – o ser com ela.»

Rocha de Sousa




O encontro com as Artes se faz atravessando uma porta belíssima de bronze, ilustrando-as desde a Música até à Imagem, da autoria do escultor José Aurélio, que disponibilizou, para a sua terra natal, um espaço da herança particular para uma galeria de arte a que deu o nome de Armazém das Artes, espaço este sendo utilizado, em décadas anteriores, como armazém de vinhos, depois de ter laborado como serralharia, onde se produziam os mais diversos objectos metalúrgicos, no início do último século.



Para além desta porta, um conjunto de obras da autoria de José Aurélio, abrangendo várias épocas e fases do seu percurso de escultor, constitui o núcleo permanente de escultura do Armazém das Artes, assim como uma colecção de peças de máquinas raras dos primórdios da era industrial, para além da exposição de outras obras de artistas renomados, representativas da arte contemporânea portuguesa.



E foi com alguma surpresa e muito gosto que me deparei com uma esplêndida e harmoniosa peça de fotomontagem de Rocha de Sousa, o artista plástico multifacetado, de quem aprecio – por maior e melhor conhecimento – a obra literária, e que tenho a honra de ter como comentador assíduo dos meus humildes escritos por aqui. Deixo as imagens que pude registar, com uma saudação especial para o pintor-cineasta-escritor.



Alcobaça, para sempre guardiã de Inês (e Pedro),A Castro de António Ferreira, La Reine Morte de Henri de Monterland.


quinta-feira, outubro 01, 2009

A luz de Alcobaça

O Outono pousa quieto nas tardes de luz mansa a prolongar o dia.

Revisitar os lugares de eleição, tantos anos tão perto, é como abrir o livro de cabeceira, acariciando as folhas amarelecidas do tempo e do uso, reler as páginas de excelência aqui e além anotadas e descobrir sempre novas palavras, palavras belas e muito nossas.


Alcobaça tem uma serenidade própria, é uma cidade feita de simplicidade imponente, carregada de História, vestida de chita. Tem o condão de me surpreender a cada reencontro.


Portugal está aqui inteiro, largamente representado. E é muito bonito.