domingo, janeiro 26, 2014

VIDA




De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra.



Mia Couto







Bebo com sofreguidão as palavras que conseguem esfumar dentro do pensamento todos os credos, todos os medos, todas as sensações desagradáveis que a civilização lança sobre os corpos cansados da vida que já não dominam.



Todos os esforços não serão vãos, se houver encanto que chegue para olhar de frente o que nos espera quando as experiências se acumulam e um passo mais pode não ter a firmeza da expectativa em que se apoiava. Por outro lado, a mesma experiência nos diz que tudo se resolve com o passar dos anos, que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem.



E o tempo tem muito tempo. Ele acrescenta-se, sobrepõe-se, quantas vezes a dificuldade está apenas no facto de não se saber aceitar o tempo certo da mudança, porque ela ocorre devagarinho, por dentro e por fora, é suave na sua inexorabilidade.



E é bonita. Os passos são mais lentos, é mais lento o acordar, o levantar, só o pensamento acode descontrolado na medição dos tempos, o hoje e o ontem brigam mas logo se aquietam, o hoje é mais fácil, sempre mais fácil, cada vez mais fácil apesar da nostalgia do passado, que não é mais do que isso.



Amar é igual, a entrega é igual, apenas o jeito difere, quando se sabe amar de verdade.

quarta-feira, janeiro 01, 2014

A PRIMEIRA HORA




Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções

para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade, Dezembro/1997.



Desci ao jardim, na primeira hora do ano, a perguntar à neblina breve que pairava, qual a diferença entre as outras noites e esta que é tão festejada pelos homens. Da aldeia, apenas ao longe se viam clarões e ruídos do fogo preso da cidade, um ou outro rebentamento de foguetes mais perto - a que não consigo acostumar-me, mau grado os anos passados sobre outros sons idênticos que ainda vibram cá dentro, tinindo de brevíssimo temor.

A neblina adensou um pouco mais, desceu sobre a estrada de alcatrão e pintalgou-se colorida com os faróis que passavam. Os cães, calados, dormiam enrolados sobre si com as correntes ao lado, pousadas sobre o cimento frio, e um ou outro gato passava de manso pelos muros da vizinhança. A temperatura nem feria neste inverno rigoroso, mas a fogueira seria bem-vinda para encantar a noite, para dizê-la diferente, abrir sonhos e fantasiar imagens, segredar crepitações saídas do ventre dos troncos e raízes, encher o espaço de monstros retorcidos vomitando labaredas.

O ano novo é uma falácia, nem novo nem diferente. A chuva e o tempo invernosos seguem sem alteração, as roseiras esperam pacientes a poda, o chão cobre-se de folhas que o vento arruma a seu bel-prazer, a magnólia mantém fechados os casulos até chegar a primavera para deixá-los então abrir e vestir-se de flores claras. Os pardais não bulham, o cuco não canta, menos ainda o melro, as rolas passam mas não arrulham. Só o pisco se aproxima sem medo, e raramente.

E os homens se deixam enganar.