quinta-feira, novembro 29, 2007

Amargamente

«Gabriel Garcia Marques referiu-me, muito ofendido, que lhe tinham suprimido em Moscovo alguns trechos eróticos do seu maravilhoso livro Cem Anos de Solidão.

– Isso foi muito mal feito – disse eu aos editores.

– O livro não perde nada – responderam-me; e percebi que o tinham cortado sem má vontade. Mas podaram-no.»

Pablo Neruda




Acidentalmente.

Encontrei esta noite Maria João Rodrigues, no Clube de Imprensa, no Canal 2, a defender com galhardia a importância da União Europeia no mundo actual (obstinado em dominar pelo poder económico e político) no que toca principalmente a Educação e a Cultura – contra uma outra ideia de decadência.

Curiosamente.

«La Consistencia de los Sueños» é uma exposição que encerra as comemorações dos 85 anos de José Saramago, o Prémio Nobel, o nosso primeiro Nobel de Literatura, e tem um título que não é escrito em português.

Esta mostra, que lhe retrata a vida desde a infância e adolescência através de milhares de documentos, fotografias e variado suporte informático em cartas, traduções, críticas literárias e todos os seus livros, mesmo os primeiros poemas do escritor, não é escrita em português.

A exposição que deverá chegar a outros continentes, que permite divulgar quem foi o homem, o intelectual e o activista político e social que é José Saramago não é escrita em português.

Lamentavelmente.

Eu sei que o Prémio Nobel de Literatura 1998 causou muitos engulhos aos portugueses: a sua escrita de um fôlego só – eu, que venero Eça e me enterneço com Lobo Antunes – o seu activismo político, o seu radicalismo, o seu iberismo.

Mas há o homem: Português. Dorido. Frontal. Determinado. Lutador. Ganhador.

Há o Escritor fecundo que foi crescendo e nos deixa uma obra memorável.

Não sei se merecemos estar na União Europeia. Espanha merece.

O Ministro da Cultura de Espanha esteve presente.

A Ministra da Cultura de Portugal não esteve presente.

Deve ter marcado cabeleireiro.



terça-feira, novembro 27, 2007

As Horas









«Parece, de súbito, que não está na sua cama, mas sim num jardim incrivelmente viçoso, de um verde mais do que verde: uma visão platónica de um jardim simultaneamente simples e misterioso, sugerindo, como todos os jardins sugerem, que, enquanto a velha de xaile dormita no banco de ripas, qualquer coisa viva e antiga, uma coisa que não é nem benévola nem malévola e exulta apenas na continuidade, entrelaça e une o mundo de quintas e prados, florestas e parques. Virgínia move-se pelo jardim sem poder dizer-se que anda: flutua nele, qual pluma de percepção, incorpórea. O jardim revela-lhe os seus canteiros de lírios e peónias, os seus caminhos de saibro debruados a rosas cor de creme. Uma donzela de pedra que o tempo se encarregou de amaciar ergue-se na beira de um tanque cristalino e medita de olhos postos na água. Virgínia desliza pelo jardim como que impelida por uma almofada de ar; começa a compreender que existe outro jardim debaixo deste, um jardim do mundo subterrâneo, mais maravilhoso e terrível do que este e que é a raiz de que nascem estes relvados e estas pérgulas. É a genuína ideia de um jardim e está longe de ser tão simples quanto é belo.»

Michael Cunningham



sexta-feira, novembro 23, 2007

Guerra perdida?



Antes de entrar no remanso do fim-de-semana, dei com um desafio «que anda por aí» e de que já tinha dado conta: abrir o livro que tiver mais perto na página 161 e transcrever a 5ª frase inteira. Não participo, por norma, nestas correntes, mas passei agora pela APC e ela limita-se sugerir a continuação da brincadeira a quem achar por bem fazê-lo.

Acedi.

Como quem não quer a coisa, deito mão ao livro que tinha aqui ao lado, em cima da mesa, procuro a página apenas para ver se a frase me passaria algum sentimento, impressão, alguma sensação que me tocasse. Aconteceu.

Era como que uma guerra perdida de antemão, algo de indefinível. Isto diz Pablo Neruda em «Confesso que Vivi».

Não li o antes nem o depois, mas acendeu aquele sentimento indelével de que algo se vai passando de inexorável no nosso tempo presente que prenuncia uma luta que quer começar mas ainda não teve início, a batalha que se quer travar mas tarda em reunir armas e munições, gentes, vontades; mais do que isso, empenho, entusiasmo, força, desafio. E depois, quero dizer, antes, medo, mas medo a sério da guerra em que todos seremos o inimigo.

De alguém forte, mas tão forte, que só todos os povos aliados da Terra poderão fazê-la recuar.

É a ferocidade de uma Natureza ferida, continuamente agredida e desonrada na grandeza que sempre disponibilizou para nós, na prosperidade que nos concedeu ao permitir que nos servíssemos dela, na beatitude do seu equilíbrio.

Temos pouco tempo para a conquistarmos de novo.

Cada vez menos tempo.



terça-feira, novembro 20, 2007

Ironias...

«É por isso que a liberdade de expressão (e, em geral, as dos direitos humanos) na China não é um problema chinês, mas algo que nos diz respeito a todos. A China, onde se realizarão no próximo ano os Jogos Olímpicos e onde, segundo a Amnistia Internacional, são executados por ano entre mil e oito mil pessoas, tem neste momento presos centenas de jornalistas, internautas e activistas dos direitos humanos. »(...)

(...) «A China gastou, em 2006, 19 mil milhões de euros em investigação de tecnologias de censura da net. E está já a exportá-las para outros países. Esperemos não vir a descobrir à nossa própria custa que, quando um homem não é livre, a liberdade de todos os outros está em risco.»

Manuel António Pina


Ler é um atentado à nossa integridade emocional. E nem digo ler um manual de filosofia ou uma grande obra de um escritor conceituado, um qualquer prémio Nobel. Felizmente basta-nos ler o que sai da pena leve de um simples fazedor de crónicas, daqueles seres como nós, companheiros semanais que até nos olham com bonomia do fundo da página, de cigarro na mão politicamente incorrecto.

Politicamente correcto, Manuel António Pina, na última página da Notícias Magazine, traz-nos a Grande Muralha da China, uma das maravilhas do mundo, e com ela nos acena sentindo nós a dor dos operários que a construíram sabe-se lá com que coacções – a palavra do presente.

Sou coagida a acordar para o que tenho entre mãos, este computador que até tem um IP que eu desconheço e a Microsoft conhece, mais a Google que controla o diário que não tenho mas poderia ter, mas sabe dos meus desabafos e conversas íntimas com os meus filhos e parentes, amigos e amigas, que conhece as minhas passwords para entrada nas minhas contas bancárias, que tem afinal o segredo dos meus segredos.

Ler tudo o que nos aparece é presentemente um desassossego. Estava eu decidida a deixar de comprar uma determinada marca de comida para o meu cachorro, porque tinha sido confrontada com os horrores praticados sobre animais em experiências feitas pela empresa que é detentora da marca, e eis que o animal adoece sempre que mudo de marca de comida. Horrorizada com as actividades da Yahoo! fornecendo às autoridades chinesas informações particulares sobre um jornalista que o conduziram a uma prisão injusta, eis que reparo que a Google e a Microsoft se prestam a actividades semelhantes.

Eu não vivo sem computador, sem um motor de busca.

O meu cachorrinho morre com outra marca de comida.

Tenho de optar: dou de presente o computador no próximo Natal e passo a cozinhar para o cachorro ou fecho os olhos à evidência.

sexta-feira, novembro 16, 2007

Comportamentos


Não vale a pena no fundo planearmos coisa nenhuma para a nossa vida. As nossas vidas serão sempre mesquinhas se elas se incluírem dentro do restrito tempo e dentro do restrito espaço em que nossas vidas podem desenvolver. Elas só são grandes, quando nós incluímos, juntamente com a vida dos que viveram antes de nós e juntamente com a vida daqueles que são nossos contemporâneos, a vida daqueles que virão depois de nós.

Agostinho da Silva




Parece que os outonos se desdobram, cada vez mais frequentemente, em primaveras serenas, cheias de beleza nos dias sossegados, sem vento, só a temperatura lentamente a trocar as voltas.

Até as rosas permanecem, quase pondo em questão aquela outra de el-rei trovador – «Rosas em Janeiro?» – que consagrou santa uma rainha no nosso Portugal ainda menino, recém-nascido para a língua portuguesa. Na lucidez dos dias que correm, santa seria, não pelas rosas que ao calor do regaço se fizeram pão, mas pelos sorrisos ao senhor seu rei, que em trovas de amor cantava loas às suas aias.

Mas o cair de chuva faz-me falta. O que mais fortemente marcou a minha infância foram as nuvens escuras troando, riscando o céu de luz, aglomerando-se diariamente em castelos no horizonte, pela tarde, e as cordas de água que se soltavam pesadamente, em torrentes, os arco-íris enfeitando os céus e logo depois aquele ar limpo, de sol outra vez, deixando o brilho e o cheiro da chuva.

O tempo mudou e os tempos mudaram.

Nas flores, nos amores, nas trindades que já não tocam nos sinos da aldeia.

O progresso trouxe as máquinas que dizem as horas, que fingem os amores, que fabricam as flores sem perfume. E trazem a morte mais cedo pelas estradas onde rolam.

O tempo mudou e os tempos mudaram.

Nós também temos de mudar.

quarta-feira, novembro 14, 2007

Conscientemente


Conscientemente escrevo e, consciente,

medito o meu destino.

No declive do tempo os anos correm,

deslizam como a água, até que um dia

um possível leitor pega num livro

e lê,

lê displicentemente,

por mero acaso, sem saber porquê.

Lê e sorri.

Sorri da construção do verso que destoa

no seu diferente ouvido;

sorri dos termos que o poeta usou

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;

e sorri, quase ri, do íntimo sentido,

do latejar antigo

daquele corpo imóvel, exumado

da vala do poema.

Na História Natural dos sentimentos

tudo se transformou.

O amor tem outras falas,

a dor outras arestas,

a esperança outros disfarces, a raiva outros esgares.

Estendido sobre a página, exposto e descoberto,

exemplar curioso de um mundo ultrapassado, é tudo quanto fica,

é tudo quanto resta

de um ser que entre outros seres,

vagueou sobre a Terra.

António Gedeão



sábado, novembro 10, 2007

Desencanto


«Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi...
Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.

Para atingir faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...»

Mário de Sá Carneiro



O ar que corre manso na beira-Tejo não é o mesmo que ajuda a levantar voo a viuvinha-de-rabo-comprido nos capinzais do Queve, o meu rio. Aí, a quietude é mais perigosa porque há sempre dois olhos à espreita nas águas barrentas da lagoa, há por ali um sáurio quieto a colher o sol, escondido na cama fofa, ao lado do areal onde os ovos chocam no calor dos trópicos. Só o odor pestilento nos alerta para a iminência de um golpe de cauda repentino, que deita ao chão a presa, logo abocanhada em pressa a afogar no pantanal.

Como trocar esta segurança pelo mistério apelativo de uma recordação bem funda no tempo? Só o papel aceita tudo: o vagar no longe do horizonte imenso, numa solidão que não é, numa angústia que é prazer, o mergulho do corpo inteiro na água tépida, o cabelo sem cãs colado ao rosto, a alegria insana da inocência.

Apagar na tecla os dias sem retorno, nunca saciados, viver saltando a corda, afoita, contando as voltas, uma, duas, três, apanhar-lhe o ritmo e entrar nos saltos, depois jogar ao ringue, correr nas escondidas e bater no coito. Como tudo se alterou no fluir do tempo, dos anos, da comunicação, dos contextos, da semântica das palavras!

Eu quero nascer outra vez. Quero sonhar em navio escondida, levantar manhã cedo e correr à proa, ver abrir as ondas, sentir o infinito do mundo, encher o peito de maresia. Quero olhar os golfinhos e seguir com eles nas ondas, afuselada na esperança dos dias que não chegaram, na fé da força que me legaram, na firmeza do rumo que tenho dentro.

Quero voltar a ser criança e não ter medo.




segunda-feira, novembro 05, 2007

O Paraíso


A propósito de Rojas Giménez, direi que a loucura, certa loucura, anda muitas vezes de braço dado com a poesia. Assim como custaria às pessoas equilibradas serem poetas, talvez custe muito aos poetas serem equilibrados. No entanto a razão ganha sempre a partida, e é a razão, base na justiça, que deve governar o mundo. Miguel de Umamuno, que estimava muito o Chile, disse certo dia: «O que não me agrada, é esse dilema. Que é isso de pela razão ou pela força? Pela razão e sempre pela razão».


Pablo Neruda



Equilíbrio é tudo aquilo que facultou ao homo erectus a evolução, até se tornar o mais temido entre os animais e quase sempre pelas piores razões para o reino a que pertence. O aguçar da inteligência que os levou ao trono, mercê das leis da sobrevivência, a lei natural, deveria ter aperfeiçoado cada vez mais a sensibilidade, aquele sexto sentido que desperta em nós o alarme, sempre que sentimos no outro o temor pela nossa investida. Cada vez mais donos do mundo, cegos pelo poder, olhamos o nosso umbigo, mais e mais afundado em gordura, separado da natureza que possibilitou o nosso esplendor.

Não é sem razão a metáfora do paraíso perdido, após a colheita da maçã pelo primeiro homem. Não no sentido que a nossa religião lhe dá, completamente absurda porque contrária à lei do criai-vos e multiplicai-vos. Só mesmo a incultura pode alimentar o mito. Mas sendo do conhecimento dos homens a mais comezinha certeza de que colher uma maçã os pode expulsar do Paraíso, sabendo que há outros pomos quiçá mais suculentos, não parece digno o Homem de hoje usar a coroa da inteligência.

Plantar um eucalipto em vez de um sobreiro, usar um papel em vez de plástico, reciclar em vez de desperdiçar, replantar em vez de destruir, amar em vez de vilipendiar. Em vez do pássaro-lira dentro de uma jaula, usar uma gaiola bonita com um pássaro de porcelana. E colocar ao lado duas pequenas gamelas coloridas para fingir de bebedouro. E o pássaro?

Deixar que voe e encante os meninos na escola, deixar que

les vitres redeviennent sable

L’encre redevient eau

Les pupitres redeviennent arbres

La craie redevient falaise

La porte-plume redevient oiseau

tal como escreveu Prévert.

No fundo, no fundo, há sempre um Deus para nos expulsar do Éden.



sábado, novembro 03, 2007

S/ título


DSC02256, upload feito originalmente por cibele pinto cardoso.

S/ título


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S/ título


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