segunda-feira, dezembro 29, 2008

Boas Entradas!

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…[…]


Augusto Gil






E a noite fez-se. Mais uma igual a quase tantas nestes últimos mais de trinta anos.

O que são trinta anos numa vida a beirar os setenta? São aprendizagem, aprendizagens de amor e de raiva, de saudade e de dor pelos que deixaram de estar presentes porque já não voltam, de saudade e de esperança pelos que estão ausentes e esperamos que voltem.

Enquanto ainda somos nós.

O dia é igual a tantos outros mas a noite nunca é a mesma. Em cada ano há uma estrela mais, um fulgor a menos, são alegrias que mentem, são desamores que não se escondem, são pequenas ternuras felizes. Os velhos, cada vez mais velhos, os novos cada vez menos novos, aprendendo a vida, quantos bem longe da fogueira familiar onde o gato esquivo se achega sem temor.

Aqui não há neve, mas há frio e geada.

Mas o ano está no fim da rua e a Primavera logo ao virar da esquina.



Feliz Ano Novo!

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Feliz Natal

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastouEsse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga


O sol corre baixo no alpendre, rasando o grelhador que espreita por entre os troncos das roseiras já sem folhas, braços esqueléticos oferecidos à geada das noites longas.
Assim manda o tempo de Natal, os dias curtos para dar de comer ao gado, para cuidar das couves para a Consoada, para os doces de abóbora e as filhós. O termómetro sobe e marca mais baixo a humidade; o casal idoso da casa defronte inicia o passeio curto, que permitem as suas pernas alquebradas pelo reumatismo de tantos invernos já contados. Na cidade, a preocupação é outra: as compras, os presentes, os enfeites para a árvore, as luzes, as bolas de cores brilhantes, as roupas para estrear.
As datas são o esteio dos homens na procura e marca da sua identidade. A Natividade, festejada em Dezembro ou Janeiro, celebra a família cristã e a dádiva, simples partilha do que cada um pode dispensar do que tem, sem ostentação. Os Reis Magos, porque reis, trouxeram ouro, incenso e mirra e à manjedoura; os pastores, ofertas humildes de mel e frutos para o Menino.
Este Natal aparece-me marcado por duas mulheres que interpretam o Natal à luz de uma tonalidade que me fere os olhos, tal a intensidade com que me chegou. Uma delas é senhora de um reino de fadas que resiste e persiste, tendo a seu serviço na casa quatro centenas de empregados. Passando uma imagem de rigor e respeito pela crise que assola o seu reino, esqueceu a necessidade de ajuda ao consumo interno e mandou que se comprassem as ofertas, para os seus estimados súbditos, na China, onde o trabalho de crianças possibilita a preservação da sua assinalável fortuna pessoal. A outra cumpre judiciosamente o seu dever na Magistratura num outro reino que é o nosso e retira o direito ao Natal em família a uma menina de seis anos, entregando-a sinistramente a um desconhecido.
Hoje vou ajudar a acender a fogueira. Vou ajudar a manter o fogo pela noite adentro. Vou escutar o que me diz a sabedoria das chamas.

Feliz Noite de Natal!

domingo, dezembro 14, 2008

Tempos diferentes


«Certas palavras podem dizer muitas coisas;

Certos olhares podem valer mais do que mil palavras;

Certos momentos nos fazem esquecer que existe um mundo lá fora;

Certos gestos, parecem sinais guiando-nos pelo caminho;

Certos toques parecem estremecer todo nosso coração;

Certos detalhes nos dão certeza de que existem pessoas especiais...»


Vinícius de Moraes



É o Inverno a chegar devagarinho cá dentro, a entrar de manso nas frestas de um sorriso que se apaga em dor, das dores mais ternas que a saudade vai abrindo. Nem só do que é real, tão só a realidade de um azul que não existe quando aparece entre as nuvens que por breve tempo deixam o ar menos severo, aquele azul que me ensinaram a dizer azul e que eu sei que não é cor alguma, é apenas o que parece. Ainda assim a chuva cai e lava os telhados, bate nos vidros e eu queria que tombasse sobre mim como naquelas praias quentes deixadas longe. Naquelas latitudes onde a natureza é mais forte do que nós e desgasta mais.

Eu gosto do clima europeu. Das estações que se sucedem regularmente a espaços curtos, que nos deixam respirar e ter esperança porque breve outra se acende sem nos esgotar de sequidão. Sem nos queimar de raios, sem nos afogar em lamas, sem nos arrastar em torrentes. Tudo é mais leve e mais sereno, o frio já nem sinto, o vento sopra mas não levanto voo, o sol brilha e aquece o que sobra de alento, as manchas escurecem nas mãos, derrama-se o espanto no silêncio das horas.

As horas mansas que o tempo do Advento dantes enchia de figos secos as mãos, a boca, os bolsos. O tempo das rabanadas e dos sonhos escorrendo de calda de açúcar e canela, o tempo dos cheiros, dos contos, dos desejos, dos sentidos sentindo.

Agora um sabor a amargo, a fé do rito a cumprir, nem som, nem músicas. A esperança está na fogueira alta, frente ao lagar que foi, do moinho da azenha que já não mói o trigo nem descasca o cereal dos arrozais que nunca conheci. O fogo que atrai na voracidade com que se alimenta, que se jorra em luz, se desfaz em cinzas que guardam as histórias secretas de cada um de nós.

Nasci da água, sou terra chã, vivo do ar e ainda hei-de fazer-me em fogo.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Abrir a Janela

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
É um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro


O meu rio cá dentro nem sempre tem o caudal necessário para que a corrente deslize naturalmente por lugares quietos ou mais acidentados. Simplesmente a água esvai-se, a terra absorve-a toda. Depois é preciso que chova torrencialmente, dias a fio, porque entretanto uma represa surgiu e é preciso mais força para derrubar o dique.

Nem seria necessário dizê-lo, parece que tudo chove e se desfaz em humidade que persiste entranhando-se nos livros antigos, cobrindo de bolor as luvas guardadas há anos na caixa antiga, roendo os ossos dos velhos. No paredão antigo de pedra, o musgo aparece alto, a despertar os tempos de menino, no seu encalço para enfeitar o presépio, lá onde o sol em Dezembro não dá alimento ao musgo. Lá onde se corriam as cortinas para cumprir os rituais desajustados do longe, construindo a manjedoura que não havia, porque o gado dormia em cercados abertos pela manhã para o pasto livre nos campos. Lá onde deveria deitar-se o menino deus pretinho e nu sobre a relva fresca, à sombra duma mulemba, duma acácia ou duma cazuarina, sem burro e sem vaca.

O lá não existe, nem aqui, nem lá. Chove em toda a parte e perdeu-se o azul, desvaneceram-se as cores do arco-íris do cinzento carregado de chuva, a névoa instalou-se e cai granizo agora. Ouço-o, batendo nos vidros. Vejo-me na rua a olhar as mãos cheias de pedrinhas brancas, metendo-as à boca, sorvete prenda do céu raríssima. Vem um sorriso cá dentro, do tamanho da menina. Da janela olho então o branco salpicando a relva e ornamentando a preceito o cascalho escuro onde o melro proletário, o bom trabalhador, virá pela manhã cumprir a sua tarefa.

Quero só lembrar que a janela está fechada e tem um vidro. Duplo, dizem. Mas não tenho a certeza de que seja verdade, que seja vidro, sequer.