sexta-feira, julho 28, 2006

Estrelas

« - Comment! Berger, il y a donc des mariages d’étoiles?

- Mais oui, maîtresse.

Et, comme j'éssayais de lui expliquer ce que c’était que ces mariages, je sentis quelque chose de frais et de fin peser legèrement sur mon épaule. C’était sa tête alourdie de sommeil qui s’appuyait contre moi avec un joli froissement de rubans, de dentelles et de cheveux ondées. Elle resta ainsi sans bouger jusqu’au moment où les astres du ciel pâlirent, effacés par le jour qui montait.

Moi, je la regardais dormir, un peu troublé au fond de mon être, mais saintement protégé par cette claire nuit qui ne m’a jamais donné que de belles pensées. Autour de nous, les étoiles continuaient leur marche silencieuse, dociles comme un grand troupeau; et, par moments, je me figurais qu’une de ces étoiles, la plus fine, la plus brillante, ayant perdu sa route, était venue se poser sur mon épaule pour dormir.»

Alphonse Daudet
















Quando a noite desce e com ela chega a brisa forte que adoça o quente destes dias, saio para o jardim e gosto de olhar o céu. Já a aldeia dorme sem a inquietude dos carros que circulam, apenas o ladrar de um cão, do outro lado da estrada, acusa a chegada tardia do seu dono; são latidos de alegria.

Todavia o Homem determinou que a noite não entrasse nos casais, que o mocho não piasse no escuro, que as rãs deixassem de coaxar na ribeira, que as estrelas não brilhassem no firmamento. Perpetuou o dia com a luz artificial e a noite entristeceu.

Com as mãos em concha sobre o rosto, tento olhar as estrelas para além dos pinheiros altos e consigo situar com alguma nitidez a Ursa Maior; procuro para o lado onde sei o Norte e imagino a Menor com a sua cauda a indicar o Setentrião.

Que é da «minha» Estrela Polar? Aquela estrela brilhante que me ensinaram a imaginar cintilante entre as demais, a estrela fulgurante que guiava os mareantes quando, no meu céu equatorial do sul, eu aprendia a Cassiopeia, o Cruzeiro do Sul e o Orion com os Três Reis Magos?

Para onde vai, agora, a outra estrela polar de tantas crianças, a nossa Maria João Pires??!!

A infância é, sim, a Terra do Nunca.

segunda-feira, julho 24, 2006

Ainda a Língua Portuguesa

«Toda a gente gosta de saber, e muitas vezes pergunta, se existiu e quem era na realidade tal personagem romanesca. Mas nunca ninguém perguntou o que era na realidade uma pedra depois de ela ser estátua.»

Virgílio Ferreira



Acompanhar a adolescência de grupos de jovens de espírito inquieto, de que destaco o Quinzé, com ele outro José e um João, dos quais a inteligência, a argúcia e a sensibilidade deixaram marcas na minha (re)construção, em tempos de alguma má memória do meu processo de vida, terá sido um privilégio. Na arte, na economia e na saúde, eles brilham algures, ainda com o fulgor da juventude, a exemplo de muitos outros, alguns deles meus actuais distintos colegas de trabalho, que muito prezo.

Com emoção encontro esporadicamente Joaquim Sapinho, desta vez em entrevista ao Público dada a propósito dos seus «Diários da Bósnia», que não tive oportunidade de ver, mas que a crítica enaltece.

Da sua entrevista destaco: «Uma comunidade fortíssima é precisamente a dos judeus portugueses, marranos. E eu cheguei a Sarajevo e encontrei pessoas que falam português, não se pode imaginar a emoção que isso é. Tive a noção clara de que, quando a nossa língua desaparecesse em todo o mundo, haveria pequenas comunidades judaicas que continuariam a falar português»

Numa altura em que se comemoram 10 anos sobre a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, vem a propósito lembrar que a comunidade lusófona não nasceu há 10 anos, ela nasceu há séculos, quando os nossos navegadores demandaram o além-mar. Li, algures, que a China já deu a saber que gostaria que Macau entrasse como membro-observador da CPLP, a que não será estranho, decerto, o grande interesse económico que tal representa para esta potência emergente que se propõe reconstruir a linha mestra da economia angolana, o Caminho de Ferro de Benguela, que atravessa o país em todas as suas longitudes.

Parece que os membros desta Comunidade ainda não perceberam o óbvio: os países de língua portuguesa poderiam impor-se ao mundo, não pela violência, mas pelo desenvolvimento da sua economia – para a solidariedade – e da empatia natural dos povos, unidos já por tanta coisa bonita: artes, cultura, desporto, gastronomia, pela grandiosidade de um idioma comum. Assim tivessem a coragem de esquecer quezílias, assumir a sua condição incontornável de nações livres e autónomas e, principalmente, deixassem de olhar apenas para o seu umbigo.

Já o disse aqui e repito-o: Portugal não é só parte da Europa, é também, e principalmente, do Mundo Lusófono.

quinta-feira, julho 20, 2006

Felicidade...

«Fiquei, imóvel. Podia ser verdade, assim tão fácil, fábula em fecho feliz? Fiquei olhando o rosto de Luarmina, como se ela sempre tivesse estado ali, como se fosse apenas mais uma das noites de uma inteira vida. Todas as vezes que a gorda mulata despetalou flores, nesse «mar me quer – bem me quer», afinal, era já o meu amor que desfiava aquele gesto dela?
- Mas agora, Luarmina, me restou uma doença.
- Que doença?
- Você. Você, Luarmina, é minha doença.
- Eu prometo, Zeca, eu regresso depois, à noite, para curar de vez essa doença.
- Mas Luarmina, jura que você é mesmo essa mulher do barco!
Ela se cala. Cabeça baixa, murmura:
- Vou deixar a porta aberta. Assim você escuta o mar…
Escutando o mar adormeci. Mas não era eu todo que adormecia. De igual maneira que meu pai morreu em porções, agora eu caía no sono às partes, uma de cada vez. Primeiro, foi a memória que tombou em abismo, inexistindo. Como se o mar ensinasse, por fim, minhas lembranças a adormecer. Como se a minha vida aceitasse o supremo convite e fosse saindo de mim em eterna dança com o mar.»

Mia Couto

As noites em desassossego, perdida sempre em espaços desconexos, escadas, pedras, atalhos sem saída, dentro, fora de casas, quintais, ermos, altos, sempre altos, excessivamente. Subitamente um mercado imenso, ervas, licores, cheiros intensos, diferentes, incomuns, adocicados, picantes, cheiros coloridos, frutas, ruído, sons… eta, mulher bonita! O calor é desmedido e mistura no ar os odores que se desprendem das flores, dos frutos, das ervas de cheiro, da transpiração das gentes, dos perfumes.

Acordar e ouvir o dia que amanhece antes do sol no chilrar do ninho dos pardais, depois o gemer das rolas e só então o acender do sol com a alegria do melro vivo e buliçoso. Abrir a janela e ler o mundo no papel macio e brilhante. Ler que as pessoas mais velhas são mais felizes… Serão!

Em jeito de Mia Couto, impensar o futuro, despensar o passado e perambular nas veredas conhecidas buscando o prazer num tempo de faz-de-conta, o coração mansinho a passear os contentes da vida, a negacear os tristes de cada esquina de rua, encher-se de sangue novo e bater forte, eta, mulher bonita!

A felicidade, como a liberdade, não existe. Ela acontece e é preciso colhê-la em cada momento, aqui e além, como num campo de flores imenso e belo mas onde temos de escolher ao cortar os pés para uma jarra: uma já murcha, aquela tombada, uma pétala roída, outra queimada, enegrecida; as muito belas, as muito puras são esparsas, todavia há que as encontrar, elas estão ali. Os nomes abstractos, a beleza também, só se encontram dentro de nós e nem sempre aparecem. Os anos a mais dão segurança, pesam mais na gravidade, prendem-nos com firmeza para podermos caminhar olhando o céu e as nuvens e a lua e as estrelas, sem cair.

O meu tempo mais bonito, mais prenhe, total e imenso, acabou. Era o tempo em que o tempo passou ao lado, a História era eu só e eu era grande e poderosa. Meu Pai contou-me que se ia, da outra ponta do oceano, quando nascia a ponte que marcou a cidade grande e eu mal olhei porque construía em mim a primeira ponte para a vida; o Maio de 68, o L. Armstrong, que importa a Lua se outra cresce no meu ventre, o mundo era meu e grande, o tempo era eu.

Hoje sou feliz só porque olho para trás e não quero repetir o tempo.

Não seria capaz.




terça-feira, julho 18, 2006

Ao menino e à criança...

Deus é assunto delicado de pensar, faz conta um ovo: se apertarmos com força parte-se, se não seguramos bem, cai...

Mia Couto




sábado, julho 15, 2006

Educação...

«… Não sabes que é logo, às três e meia, que acaba o mundo?...

O Mourita filho que estava ao lado, a dar corda a um boneco de lata, suspendeu a operação.
O fim do mundo?... E ia a perguntar ao pai o que era isso; mas o pai tinha mergulhado de novo na leitura. Abriu a boquita para interrogar a mãe; mas a mãe começava a redigir a epístola… Ficou por isso calado, a matutar no caso.
E a matutar no caso se lhe cerraram as pálpebras e lhe descaiu das mãos, para a alcatifa, o seu boneco de corda.

E foi o Mourita filho levado nos braços duma criada gorda para a caminha de guardas. Despiu-o. Deitou-o e, aconchegando-lhe a roupa, repenicou-lhe nos lábios em flor um beijo amigo. Lá o deixou num sono quieto, de passarinho cansado.
E a Terra foi girando e rodopiando nos espaços desempedidamente, sem entrave, sem percalço. E a madrugada luziu, como na véspera. E o sol irrompeu do recorte dum monte, à hora prefixa dos repertórios.

Quando as oito da manhã bateram, a criada gorda entrou no quarto do Mourita com o leite do desjejum.
- Vá, menino, leva arriba. Aqui tem o seu leitinho…
O petiz sentou-se na cama e semiabriu os grandes olhos garços. Depois desviou-os da claridade da janela e, esfregando-os com as mãozitas fechadas, recomendou à moçoila:
- Ó Ana, vê se lá fora inda há Mundo…»

Augusto Gil


Quando vi estas camisolinhas penduradas numa corda dentro do celeiro antigo, lembrei-me daquele texto bonito sobre um rapazinho a quem o vento brejeiro arreliava soprando a folha de papel em que pintava, sobre a mó de um moinho, no alto de uma colina. E como o vento fala com as crianças – no tempo em que elas tinham tempo para estar com o vento – este lá lhe disse que só o deixaria em paz quando ele conseguisse pintá-lo. «Como, se não te vejo?» «Então como sabes que eu existo?» O pequenito pensou um pouco, olhou as velas do moinho a rodar, a rodar, e… «Ah, já sei! Desenho as velas do moinho, folhas das árvores a voar, roupa na corda a doidejar…»

Pois esta roupinha de criança escreve uma história recente, uma história que deve ser contada, uma história bonita e uma história repetida em muitas escolas decerto. Se não desta maneira, de outra análoga.

É a história de uma Educadora de Infância. Ela trabalha todos os dias do ano, de manhã e de tarde, como mandam as regras. Quando as crianças saem da escola, às cinco e meia, ela tem de ficar a arrumar o que as aulas deixaram fora do lugar, para que no dia seguinte, logo cedo, os seus meninos cheguem e não vejam desordem. Para além disso tem de fazer toda a escrita, por exemplo relacionada com a distribuição do leite às crianças, tem relatórios, outros trabalhos a fazer para além do tempo dedicado às crianças. E não tem a seu cargo um ou dois filhos, como qualquer mãe. Tem pelo menos quinze. Todos a exigirem dela a atenção que os pais não lhe dão, sendo solicitada em todas as horas, em todos os minutos do dia. Para além dos trabalhos que faz com eles, um briga, outro tem sono, outro quer ir à casa de banho, é preciso olhar pela alimentação de todos, pelo repouso de alguns, à hora da sesta.

Para a festa do final deste ano, esta professora solicitou dos pais, atempadamente, umas t-shirts brancas, para que ela as pudesse personalizar, decorar em casa (aos fins de semana, fora do seu horário de trabalho), e assim contribuir para todos sentirem aquele dia como especial.

Por isso estranhei e gravei aquela roupa pequenina numa casa em que não nascem crianças há muitos, muitos anos.

O insucesso escolar em Portugal acontece por falta de trabalho dos professores, por falta de empenhamento, é o que dizem. Já se perguntaram, Pais deste país, se em algum momento pararam para pensar na dedicação, no imenso esforço diário de um Educador de Infância? Alguma vez disseram às vossas crianças que o Educador com quem elas passam o dia é o substituto dos pais e por tal o devem respeitar e amar?

Ou é apenas o EMPREGADO a quem pagam para que fiquem com os vossos filhos?

Pois é. EDUCAÇÃO começa precisamente aí.


quinta-feira, julho 13, 2006

Eu sou do tempo...

Venho da terra assombrada
do ventre de minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.
Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar
com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.
Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder
.
António Gedeão
Eu venho de outros tempos, bem sabe quem me lê.
Por instinto, trato muito bem o cachorrinho bom com que me presenteou o meu velho amigo Índio. Na minha última postagem foi a ele que alimentei, mas os direitos básicos de um ser vivo devem ser preservados e a alimentação do meu cachorrinho mau impõe-se.
Como dizia no início, eu sou tempo em que a profissão de médico, juiz, professor, eram intocáveis no ponto de vista moral, estavam acima de qualquer suspeita. Tudo mentira, todos dançavam ballet.
A democratização do país trouxe as coisas melhores e propiciou as piores, mercê da massificação que se lhe seguiu. A classe dos professores foi uma das mais afectadas ao longo das últimas décadas, sendo a razão principal o facto de a ela ter tido acesso quem não tinha a menor sensibilidade para o exercício da profissão do magistério. A exemplo do que se vem passando com a classe dos médicos, dado que o acesso é garantido por médias elevadas, nem sempre por mérito próprio e por vocação ainda menos, nem os objectivos se prendem com o Juramento de Hipócrates. Mas isso são outros quindins, como aprendi a dizer por outras latitudes. Eu sou professora e é desta profissão que quero falar.
Os nossos governantes não podem esquecer – e parece que querem insistir nessa vertente – que somos pressionados, eu diria antes, coagidos, forçados, a facilitar o acesso dos nossos alunos às universidades que foram proliferando por aí. Acabou-se com o ensino profissional porque todos tinham de ser licenciados por uma qualquer universidade, era preciso mostrar à Europa que tínhamos muitos doutores. O país não tinha necessidade de canalizadores, mecânicos, electricistas, desenhadores, analistas, enfermeiros, regentes agrícolas, agentes técnicos, etc… só havia lugar para engenheiros, arquitectos, médicos, com um Dr. atrás. Agora temos Doutores, por extenso, daqueles que não precisam de saber a tabuada de cor nem de escrever meia dúzia de frases correctas na ortografia ou sintaxe.
Os professores foram obrigados pelo Ministério da Educação a passar os alunos, anos consecutivos, sem que a estes fosse exigido um mínimo de competência na arte da escrita e do cálculo. Eram definidos pelos professores objectivos mínimos, desses mínimos os essenciais, dos essenciais não constava saber o alfabeto nem decorar a tabuada porque era uma violência, bastava a assiduidade às aulas, o bom comportamento, o bom relacionamento, a empatia professor/aluno, as crianças só tinham de ser felizes na escola! Não se lhes podia dizer que ser feliz era cumprir com os seus deveres, que a escola era o primeiro emprego da vida, de responsabilidade, e a felicidade estava no sucesso da aprendizagem, era o prémio pelo esforço de cada um. É ao aluno que compete aprender aquilo que o deve entusiasmar – aí o papel crucial do professor – mas o esforço tem de partir dele, o professor não pode dar tudo sem receber nada em troca.
Eu sou do tempo em que os meus alunos adquiriam conhecimentos sem que eu perdesse tempo com grandes papéis, grandes relatórios, grandes projectos escritos e não tinha um horário de 35 horas, dava muito mais horas à escola! A planificação era feita, os alunos tinham conhecimento dos objectivos que havia a cumprir em cada período, as aulas eram de respeito e trabalho, e o resultado aparecia. Menos tempo fechados na escola, professores e alunos, mais qualidade de ensino e aprendizagem.
E não me venham dizer que é saudosismo, porque não se trata disso. É pensar com a cabeça. Os tempos mudaram, sim. As novas tecnologias vieram para simplificar, não para complicar. Proporcione-se formação aos professores naquilo que pode ser aplicado para facilitar a vida aos alunos e aos professores. Porque uns e outros têm, sim, de sentir-se felizes no seu local de trabalho. Todos sabemos que os professores responsáveis estão muito preocupados. Com os alunos, com o futuro da escola, com o seu próprio futuro. O governo tem de saber distinguir o trigo do joio e não pode, não deve, fazer pagar o justo pelo pecador.
Quero acrescentar por exemplo que há professores das escolas públicas do ensino secundário que têm vindo a fazer formação, já neste período pós-lectivo, para a implementação das EFA (Educação e Formação de Adultos) e para o RVCC (Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências) em Lisboa. Também formação sobre portefólios electrónicos em Braga. Aquela formação tem vindo a ser ministrada por elementos da Direcção Regional de Lisboa, que não sabem responder a qualquer pergunta colocada pelos formandos, quanto à distribuição de serviço a fazer, pois «não há enquadramento legal». Apenas sabem que esses professores deverão fazer este trabalho nas suas horas não lectivas, isto para aqueles que não ficarem em horários zero, é claro, porque esses passarão em breve a supranumerários. Além disso, estes professores têm ido em dias seguidos e alternados, a expensas próprias, pagando do seu bolso transportes, portagens, alimentação, dormidas, de que nunca serão ressarcidos, essa informação foi-lhes dada logo no primeiro dia de formação.
A título de exemplo, o governo do meu país dá chorudos subsídios aos Senhores Deputados só para se deslocarem de casa para o seu local de trabalho – mesmo os que residem em Lisboa – por que será que os Senhores Professores são tratados como lacaios?
Há por acaso escravatura em Portugal?

terça-feira, julho 11, 2006

Ser Professor

Minha Mãe, Minha Mãe, ai que saudade imensa
Do tempo em que eu ajoelhava orando ao pé de ti!
Caía mansa a noite e as andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares
Suspensos do beiral da casa onde nasci…


Guerra Junqueiro




O sonho de sua vida foi ser Professora.
Foi apenas Mãe.

Mãe e pedagoga sempre, mister que exerceu sobre sua irmã mais nova que ajudou a criar, sobre os seus filhos a quem ensinou as primeiras letras, sobre os filhos dos empregados, sobre as afilhadas também, a quem ensinava prendas domésticas.

Foi a minha mestra de vida. Tinha ânsia de aprender coisas novas, mas não se esgotava aí. Recordo, muito pequena, as lições que ela recebia em casa para criar paisagens sobre vidro com pratas coloridas e frisadas que se guardavam dos bombons e ela aplicava, contornando a tinta preta, eventualmente com técnicas semelhantes às dos vitrais. Nunca concluiu nenhum.

Dentro de nós há um tesouro imenso. Como uma velha arca, é preciso de quando em vez ali resgatar o que precisamos para nosso equilíbrio, para a compreensão do que nos vai cercando e envolvendo e enredando ao longo dos anos. Nós nascemos de um novelo que mãos hábeis teceram e matizaram e a que a máquina da vida avivou, depois desbotou cores, foi encolhendo e deformando.

Com ela aprendi que um professor é sempre um farol, mesmo quando a sua luz intermitente deixou de acender. Ele continua lá, no fundo do cabo, altaneiro. Eu estudei «Os Lusíadas» por uma edição fantástica que não voltei a encontrar, tendo em cada voltar de folha, do lado esquerdo, duas estrofes do poema; do lado direito, as mesmas, escritas em linguagem corrente e, em rodapé, todas as notas explicativas dos deuses, de cada figura de estilo ou linguagem. Era de minha mãe e tinha-lhe sido oferecido por um professor que ela verdadeiramente venerava, ainda hoje me não perdoo de o não ter comigo.

Eu fui professora por acidente, não porque tivesse sido um sonho de menina. Décadas cumpridas, terei deixado decerto algumas pegadas na senda que trilhei, com dedicação, com entrega, com amor, também com orgulho. Terei concretizado o sonho de minha Mãe.

Dos meus professores, tenho saudades. Dos que me amaram e já partiram, ficam as cartas e as lembranças. Um livro da colecção Manecas, a «Bela Adormecida» com uma dedicatória em letra elegante e firme, escrita a tinta azul “À I, como prémio da sua dedicação ao estudo” da minha professora da instrução primária; ela me entregou para a Língua Portuguesa e Latim, a um querido e já saudoso amigo, e ambos mantivemos ao longo da vida laços de ternura e admiração mútuas. Deixo alguns excertos de cartas que conservo na minha arca.

«Lembrar-vos é reentrar no longe do tempo e de Angola, e ligar, na lembrança, o então com o hoje. Mas lá, era a mesma terra, posto que grande; cá, são diferentes as terras, posto que pequenas as distâncias. Vejo-a sempre como aluna estimável e amiga, no pólo já distante da minha idade, que me vai empurrando.»

«…Dirijo-me assim, discriminadamente; não, porém, no afecto e na amizade, que todos merecem, plena e inteira. A vossa carta, I, vem cheia de amizade, que muito nos toca e muito sentimos. E mais ainda, por a sabermos antiga e a vermos preservada e até reforçada, como se não interposta por alguns anos decorridos.»

«… Mas este almoço, para mim, não reuniu apenas dois amigos: ele trouxe uma antiga aluna, prezada sempre e sempre querida; e um antigo colega, sempre brioso e brilhante, com quem tive o prazer de partilhar tarefas e aprender lições e experiências ricas e úteis. À I, que sempre prezei e prezo como se fosse filha…»

É preciso tempo, é preciso distância, para descobrir a serenidade, a generosidade, a excelência de um Professor. Quem olha para trás e não viu, é porque não soube aprender. Para mim, ser Professor, continua a ser uma honra, mau grado as indignidades que actualmente incorrem sobre a profissão. No fim da minha carreira, queria sair sem mágoa. E quero ter sido um farol. Pela dedicação, pela hombridade, pelo sofrimento.

Porque o mundo está em mutação, um Professor tem de mudar muitas coisas, mas não pode deixar de ser um farol.

Ali. Firme. Solitário. Majestoso. No nevoeiro, a guiar os mareantes.

domingo, julho 09, 2006

Marcas

Penso na morte
Mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores
No abdómen ensanguentado doutros-corpos-meus
Na concha húmida de tua boca em cima dos números mágicos
Anunciando o ciclo das águas e o estado do tempo

A memória dos dias resiste no olhar de um retrato
Continuo só
E sinto o peso do sorriso que não me cabe no rosto
Improviso um voo de alma sem rumo mas nada me consola

É imprevista a meteorologia das paixões
Pássaros minerais afastam-se suspensos
Vislumbro um corpo de chuva cintilando na areia

Até que tudo se perde na sombra da noite… além
Junto à salgada pele de longínquos ventos
Al Berto


A fotografia é uma arte maior a que nem todos têm acesso. Uma máquina topo de gama não transmite sensibilidade, encanto, delicadeza, subtileza, argúcia, a qualquer imagem.

Colher da natureza o belo em cada palpitar de vida, em cada olhar, em cada desabrochar; marcar o sonho ou a solidão, o abandono, a violência, o desespero, a esperança ou o êxtase, também a incúria; surpreender o vento no debruçar da folhagem contra o céu azul ou registar a tempestade nas nuvens escuras sobre o mar encapelado é mister de excepção, de excelência.

Só um espírito observador e arguto encontra o momento exacto de cada ângulo certo, fixa um pormenor, uma porta, um muro, um tronco seco, uma pedra, uma pétala, uma folha, uma onda, tira ilação dum desenho esparso, aparentemente desconexo e fixa uma sucessão de imagens de que se pode inferir uma mensagem, uma relação oculta, quiçá fortuita.

Estas imagens surgem numa mesma cidade, num mesmo local de passagem de energia - gás, electricidade, esgotos, garagens - num mesmo registo de desenho a negro.








Imagens de Cpicard

sexta-feira, julho 07, 2006

Mulata


Há dias em que me apetece carpir e dizer como o poeta «o dia em que nasci moura e pereça». Como é que tantos anos volvidos continuo a ser contida, continuo aquela viuvinha-de-rabo comprido que tinha asas mas não conseguia voar alto, porque tinha uma cauda belíssima, com duas ou três vezes o tamanho do corpo, a cauda bonita que lhe tolhia os movimentos. Meu pai dizia para mim em momentos seus de tristeza – e de saudade, quem sabe! – que uma pessoa não deveria nascer de ninguém, deveria ser colocada pela divindade sobre uma pedra, no meio dum rio, de uma anhara deserta, num rochedo à beira mar.

Eu era pequenina e não entendia; hoje compreendo como é forte a marca deixada pelos nossos maiores, como ela se impõe e atravessa connosco a vida. Nem sempre ajuda quando se trata de olhar diferente o mundo que nos ensinaram. Temos de ver com os nossos olhos, afagar com as nossas mãos, aspirar o odor do mundo misturado com o sabor do sal das nossas lágrimas. E risos.

Relendo as suas memórias, vejo-o a contar histórias de «cangonja» recordando sempre com saudade a mãe daquela outra I.

«O transporte era a tipóia a uns 200 km mais para o interior na selva virgem por veredas de pretos. A 27 de Outubro de 1920 surge a ocasião (…)

Se o não estava ainda, devo ter ensandecido então.

Aquele meu irmão delicado de corpo e alma, que não admitia o contacto duma impureza no meio do campo onde nasceu - e a impureza é necessária aos vegetais que nos nutrem, tendo de ser devolvida constantemente... - com um quico na cabeça e com um fato de riscado, uma mulher daquela cor e uma palhota por habitação... Mas era ele, era o meu irmão, a atestá-lo estavam os meus olhos, os meus ouvidos, o meu coração.

Mas eu enganei-me, os meus olhos não viam, como continuam a não ver a vida, e eu continuo a enganar-me sempre.

O exterior não é nada em tudo! Aquela mulher era boa, a casa um mimo e o meu irmão tinha o requinte mais requintado por dentro como abandonado o exterior. A casa era farta, asseada, vivia-se para o paladar sem desprezar o estômago, trabalhava-se gozando, e estes homens curtidos por estes sóis de África eram mais homens, mais humanos, sabiam viver e respeitar-se, respeitando.»


quarta-feira, julho 05, 2006

O vento e as rosas


Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las…
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos…

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze – quanta flor! – do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

Camilo Pessanha

terça-feira, julho 04, 2006

Para o Rapazito

Mandei-lhe uma carta em papel perfumado
e com letra bonita eu disse ela tinha
um sorrir luminoso tão quente e gaiato
como o sol de Novembro brincando
de artista nas acácias floridas
espalhando diamantes na fímbria do mar
e dando calor ao sumo das mangas.

Sua pele macia - era sumaúma...
Sua pele macia, da cor do jambo, cheirando a rosas
sua pele macia guardava as doçuras do corpo rijo
tão rijo e tão doce - como o maboque...
Seus seios, laranjas - laranjas do Loje
seus dentes... - marfim...
Mandei-lhe essa carta
e ela disse que não.

Mandei-lhe um cartão
que o amigo Maninho tipografou:
"Por ti sofre o meu coração"
Num canto - SIM, noutro canto - NÃO
E ela o canto do NÃO dobrou
Mandei-lhe um recado pela Zefa do Sete
pedindo, rogando de joelhos no chão
pela Senhora do Cabo, pela Santa Ifigénia,
me desse a ventura do seu namoro...
E ela disse que não.

Levei à Avo Chica, quimbanda de fama
a areia da marca que o seu pé deixou
para que fizesse um feitiço forte e seguro
que nela nascesse um amor como o meu...
E o feitiço falhou.

Esperei-a de tarde, à porta da fabrica,
ofertei-lhe um colar e um anel e um broche,
paguei-lhe doces na calçada da Missão,
ficamos num banco do largo da Estátua,
afaguei-lhe as mãos... falei-lhe de amor...
e ela disse que não.

Andei barbudo, sujo e descalço,
como um monangamba.
Procuraram por mim
"-Não viu... (ai, não viu...?) não viu Benjamim?"
E perdido me deram no morro da Samba.

Para me distrair
levaram-me ao baile do Sô Januário
mas ela lá estava num canto a rir
contando o meu caso
às moças mais lindas do Bairro Operário.

Tocaram uma rumba - dancei com ela
e num passo maluco voámos na sala
qual uma estrela riscando o céu!
E a malta gritou: "Aí Benjamim !"
Olhei-a nos olhos - sorriu para mim
pedi-lhe um beijo - e ela disse que sim…

Viriato da Cruz

domingo, julho 02, 2006

Amizade é assim...

«Je ne pouvais rien voir avec indifférence;
Mes yeux étaient frappés d’un papillon nouveau:
Cet insecte, disais-je, est sorti du tombeau,
De sa cendre féconde il tire un nouvel être;
La nature à tous deux nous permit de renaître (…)

(…) J’allais me pénétrer des rayons de l’aurore;
j’allais jouir du jour avant qu’il pût éclore:
j’étais pressé de voir, pressé de me livrer
au plaisir de sentir, de vivre, et d’admirer.»

Saint-Lambert























Posso dizer que não tive adolescência. E prefiro a simplicidade desta frase, a adjectivar uma palavra tão forte, imensa.

Passei sem transição da infância à idade adulta mercê de condicionalismos endógenos, com dor. Mas a infância ficou intacta e permanece nos encontros mais ou menos espaçados, em que ela emerge com a cumplicidade dum oaristo.




Na primeira imagem, eu e o Tonando não fazíamos ainda parte dos vivos, chegámos depois. Olhando para a segunda, fora do tempo e do espaço, vejo a melancolia dos olhos lindos de meu irmão e a Teté, a amiga mais velha que era preciso copiar nas maneiras, na serenidade, na docilidade, na placidez. Três anos é uma grande diferença quando se tem oito, dez anos, quando o espírito não se ocupa dos mesmos anseios.

Morávamos nessa época numa casa recém-construída na cidade alta, quando os eucaliptos ainda chegavam perto e se ouviam os sapos à noite, entre as chamadas frequentes do quartel a que chamávamos Bateria - alerta!...alerta está! - e o Tonando ficou connosco a finalizar o ano lectivo pela mudança de residência dos pais para o Lobito. Foi o que melhor me aconteceu na adaptação ao lugar ainda ermo, com uma casa aqui e além, os correios que se viam ao longe, por entre o campo de cosmos onde colhíamos as flores por abrir, colocando lágrimas nos olhos e correndo junto de minha mãe para preocupá-la e rir depois.

Os dois conseguimos junto de sua avó Micaela uma amoreira enorme para se plantar no quintal, já cheia de folhas, muitas folhas, e pronta a desfazer-se em amoras. Acontece que trouxéramos do colégio umas pequeninas lagartas de bicho-da-seda para apreciarmos em casa o seu desenvolvimento. Minha mãe exigiu que se fizesse a experiência fora de portas e com isso apenas conseguimos levar a bom termo uma borboleta que pôs centenas de ovinhos sobre uma folha de papel branca, onde fazíamos rodinhas com um lápis para podermos contá-los.

Para minha mãe, estava terminada a experiência; para nós, meu irmão incluído, não! Perante a irredutibilidade da decisão materna, havia que contornar o facto. Colocámos então os ovos, bem protegidos, dentro de uma caixa de sapatos, tapada, e escondemo-la debaixo da cama onde dormiam os dois rapazes. O quarto de meu irmão tinha uma janela onde entrava o sol pela manhã. Ora as lagartas entretanto nascidas, precisavam de sol e ar para se desenvolverem convenientemente. Devidamente alimentadas com as folhas de amoreira e arejadas depois de montada uma escala de vigilância, um dentro do quarto, outro do lado de fora da janela para que não fôssemos apanhados, de mínimos fios negros se fizeram amarelinhas e riscadas, enormes, gordas. Para que tal se processasse nas condições devidas, mudámos de caixa e cada um de nós estava permanentemente alerta para as investidas de limpeza ao fim de semana.

Em breve começaram a tecer casulos nos cantos da caixa, no meio, onde podiam. Nós abrandámos então a vigilância, pois não havia necessidade de alimento nem sol e, crianças que éramos, a caixa caiu no esquecimento. Chegou o malfadado dia de limpeza e a dita foi de imediato confiscada, com o sermão do costume, desta vez para os três.

O pior veio depois: os bichos-da-seda, muiiiiiiiiiiiiiiiiiiitos bichos-da-seda, tinham saído sorrateiramente da caixa, ido à procura de mais espaço para tecer os seus fios em tudo quanto era canto debaixo da cama, das mesas-de-cabeceira, da estante, até dentro do guarda-fatos se encontraram casulos!

A amizade é isto. Conquanto tenha seguido outras veredas da vida, recusando a guerra de África após o fim do curso e só regressado após o 25 de Abril, o Tonando vive comigo nestas histórias, relembradas hoje e sempre na amizade da família, cimentada ao longo das décadas, desde o fundo dos tempos.


sábado, julho 01, 2006

Enlacemos as mãos

«Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado.
Mais longe que os deuses.»

Ricardo Reis


Prezo muito a amizade, aquele sentimento forte que mereceu de Cícero um tratado. Nas minhas lides de estudante pesquisei e verti prosa, de Pátroclo e Aquiles a Garrett e Herculano; neste últimos, vivendo embora ideais e glórias em tempo igual, a estaca não pegou.

Da infância me vieram ligações que nunca esmoreceram, mau grado as distâncias, os enlaces e desenlaces, os desamores, as tragédias partilhadas, os sonhos desfeitos, as glórias vãs alcançadas. Sobram os anos, as cãs transformadas em neve, o prateado dos cabelos (onde é que eu li isto ontem..?) o olhar mais baço, mas os sorrisos permanecem em cada encontro, em cada neto partilhado, em cada florescer.

Às vezes, o fio da meada enrola-se nas mãos que o tecem, enrola e não deixa criar vida, torce em nós que não desfaço, fere as mãos e não desata. E eu sofro porque as minhas raízes dormem já o sono sem volta, resta-me o chão que as amizades adubam.

Em menina, bem menina, me encantei por uma outra de olhos de vidro e cabelos de ouro, bem longe da imagem que o espelho reflectia de tranças e olhos negros em tez morena. O encontro foi proporcionado pelos irmãos mais velhos de ambas. Eu só lhe vi os caracóis cor da flor dos milharais, ela recorda hoje o vestido de patinhos e folhos que eu usava. Nunca estudámos no mesmo colégio, colhemos novas amizades, enlaçámos outras, superámos distâncias entre reencontros, cresceram juntos nossos filhos.

Dos quatro, a vida e a morte já separaram. A nós que ficámos… enlacemos as mãos!