terça-feira, junho 27, 2006

Fui ver o campo...

«A décima nona era então o primeiro encontro.

Foi, porque a consciência dos débitos começa pelo uso das palavras. Ou melhor dizendo. Aconteceu quando se chegou à conclusão de que aquele encontro não poderia continuar a ser merenda. Porque merenda, como se disse, sempre lembraria o tempo das ceifas, por exemplo, quando a dor de macaco tanto apertava o rim, que apetecia uma pessoa morder as espigas que segava, Zulmirinha. Lembrava a era do trabalho sem hora, de sol a sol, o calor a dar nas abas do chapéu de uma pessoa como uma bofetada de luz. Praganas, carrapichos, sementes traiçoeiras, munidas de um bico de agulha ou de patinhas mordentes que se enfiavam nas roupas à procura da pele, para aí depositarem o seu veneno e raivinha de erva. Quem não guardava a memória viva dessa comichão, senhora Valentina? …»


Lídia Jorge


Eu fui ver o campo. O campo a menos de um quilómetro do local onde moro, o campo que viu crescer quem eu acompanho e me acompanha nas sendas da vida há várias décadas. Em cada Verão me encontro com a sua e a minha infância entre as árvores copadas, os muros de pedra, o viço das flores, a represa na vala, os patos que se multiplicam na frescura das ervas altas da beira de água.

Quando chega o Inverno, tudo entristece. A humidade no chão e nos muros, os choupos sem folhas, os verdes queimados pela geada, as roseiras nuas e o frio, o frio que se infiltra na minha alma saudosa dos trópicos, o frio que entra e permanece.

As temperaturas mais amenas, a estrela-rainha passando mais devagar no seu caminho do céu, fazem renascer, em cada ano, a vida oculta nos troncos secos, nos bolbos enterrados, nas sementes secadas ao sol. As heras marinham pelos muros e troncos, as glicínias ostentam seus longos cachos de lilás, os agapantos suas cabeleiras brancas e roxas, as hortênses dominando tudo, derramando-se pela relva sem pudor.








segunda-feira, junho 26, 2006

Bissonde

«Naquela roça grande não tem chuva
É o suor do meu rosto que rega as plantações
Naquela roça grande tem café maduro
E aquele vermelho-cereja
São gotas do meu sangue feitas seiva.
O café vai ser torrado
Pisado, torturado
Vai ficar negro, negro da cor do contratado.

Negro da cor do contratado!
Perguntem às aves que cantam
Aos regatos de alegre serpentear
E ao vento forte do sertão
Quem se levanta cedo? Quem vai à tonga?
Quem traz pela estrada longa
A tipóia ou o cacho de dendém?» ...

António Jacinto


Eu não gostava de ir ao mato de calças compridas. Por aquela época usavam-se umas calças pelo joelho, ditas «à pescador», mas que surtiam o mesmo efeito das saias e era assim que me vestia. Isso levantava protestos em casa, pois não protegiam dos picos das plantas e das ferroadas de bichos; depois, as minhas pernas andavam sempre arranhadas, com cicatrizes pouco estéticas, que meu pai tentava remediar esfregando-as com seiva de um cacto ranhoso que eu detestava – o hoje tão apregoado Aloé. Lá razão na sua teoria, ele tinha. Só que eu não abdicava da minha e ela prevaleceu sempre. É que eu, de pernas à mostra, podia vigiá-las de quando em quando com um simples olhar e, mal lobrigava um reles bissonde a iniciar a sua caminhada para as altas esferas, logo me precavia.

Às vezes, nas nossas caçadas às perdizes pelas tardes soalhentas, meu pai, a certa altura, desatava a correr e ia dizendo «espera aí, mulherita, espera aí», com a voz um pouco acima do tom. Ei-lo atrás de uma moita a descer as calças à pressa, já invadido pelas célebres formigas gigantes que entretanto picavam todas a um tempo... Ora bem, era disto que eu me defendia. Não queria dar oportunidade às guerreiras de subirem em silêncio e na obscuridade, para depois do ataque me ver humilhada a arrear as calças hic et nunc!

Numa ocasião destas, em que meu Pai se escondia atrás de uma das tais moitas, eu corri até uma pequena clareira de terra vermelha livre de bissondes e, olhando em redor, vi a uns metros uma árvore carregadinha de loengos. Era em Setembro. As primeiras chuvas tinham caído e rescendia a terra molhada. Rebentavam tortulhos por toda a parte e os mabocos iam aparecendo. Afadigada a colher loengos, esqueci o bissonde, os lagartos, as cobras...

Entretanto meu Pai chegou com o cão aos pulos em seu redor e a sua conversa risonha. O meu entusiasmo de apanhar fruta logo esfriou com a sua voz de repente alterada e imperiosa num «Segura o cão! Não saias daí!». Deitei a mão à coleira do Piloto, um perdigueiro dócil mas possante, que tinha bem mais força do que eu. Vendo o dono pôr a arma à cara e farejando o perigo, procurava soltar-se. Abracei-me ao seu pescoço e aguardei o som do tiro que logo surgiu para meu sossego e liberdade do cão.
Era uma Buta (Surucucu), uma cobra enorme – em grossura, pois não tinha mais do que um metro de comprido – que havia sido ali atraída pelos vermes de alguns cogumelos já apodrecidos. Descuidada a olhar para o alto, eu quase a ia pisando e sua picada era mortal.

domingo, junho 25, 2006

A flor mais bonita

Posted by Picasa
Para a nossa Selecção... ela merece!

sexta-feira, junho 23, 2006

Natureza

«Ao deslizar no espaço encontrei uma paisagem deslumbrante
como as pinturas medievais: as varas de sabugueiro
brancas
nas mãos dos cesteiros, as colinas orvalhadas.
Torres esfumadas e as austrálias sobre penhascos
que não eram estranhos para quem vinha a cair
da muralha vasta da consciência permanentemente
alheada.
Parras vermelhas num vale avassalador com a largura
do mar e o movimento da passagem ondeante da
verdura
sob essas latadas vermelhas. (…)»

Fiama Hasse

Há sim uma grande majestade na natureza.

Se a velocidade da noite que vivemos por algum momento se suspende, a natureza acorda em cada folha, em cada desabrochar, em cada murmúrio na esteira do húmus que cobre o chão que pisamos, no pinhal escuro da noite sem vento… que o vento assusta-me.

O vento traz sempre consigo o sopro de alguém irado, como a brisa acolhe o cicio de um afecto ignorado ou o bálsamo da maresia propala o sonho do amor que nunca fenece e se eterniza na água que não se esgota porque não pode ser bebida.

Se o vento clama, se o mar se agita, se a terra treme ou jorra lavas é porque há escravos e o acto de nascer é o acto mais puro de liberdade. O acto físico e simbólico do corte do cordão umbilical. A escravatura nasce depois. E o Homem é o grande fazedor de escravos.

Nós somos parte da natureza e caminhamos para a extinção porque não sabemos conviver com aquela de igual para igual. Usar o próximo dentro dos limites de cada um, sem ferir, dando e recebendo tudo a que cada qual tem direito.

A propalada racionalidade tirou-nos a capacidade de diálogo, a competência do Amor.

quarta-feira, junho 21, 2006

Flor de mãe


«- Ai, flores, ai flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?
Ai, Deus, e u é?

- Ai, flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?
Ai, Deus, e u é?»



Cortar o cordão umbilical é sempre o princípio de tudo. O nascimento de um novo ser acontece aí, na primeira aspiração de ar, no primeiro sopro, no primeiro vagido, no primeiro grito.

Da força do cordão advém tudo o que acontece depois.

É um botão de flor a abrir, depois do espreguiçar das folhas verdes no caule.

A minha rosa floriu, preciosa! Nasceu de uma lágrima a que o arco-íris deu todas as tonalidades e o sol da terra secou.

É da cor das pérolas mais puras, é brilhante e nacarada. A sua corola esconde o ouro do seu pólen, a riqueza do seu coração. Os espinhos são a sua defesa.

Ei-la.


segunda-feira, junho 19, 2006

Homenagem



À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...

E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...

Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.

Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...

Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...

Com passos feitos de lua,

Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...

Alda Lara

sexta-feira, junho 16, 2006

Chotocota



Hoje escrevo para o outro lado do oceano, onde residem os meus amores, a minha raiz mais forte, mais funda, e o meu fruto mais novo, mais suculento.

«Quem quer ir mais eu ao Huambo?» - Lembra-se, tia?... (E a caça aos caranguejos no Morro da Cruz?…)

Havia sempre voluntários, era ir e voltar, só comprar pão fresco e alguns petiscos.

Os preparativos em casa já tinham começado de véspera. O leitão, depois de amanhado, era bem raspado com uma lâmina, após o que meu pai se encarregava de enfiá-lo num espeto enorme feito de eucalipto. Enchia-se então a abertura da barriga com cebola picada com alho, e azeite, e vinagre, e vinho, e vários condimentos, abertura essa que minha mãe cosia com agulha e linha. Finalmente era todo esfregado com uma mistura de sal e manteiga, ficando até ao dia seguinte suspenso entre duas cadeiras.

Manhã cedo, o forno aceso na cozinha-velha, aquecendo até ao meio-dia. Depois de limpo, ficando sempre algumas brasas de lado, ali rodava o leitão por um mínimo de duas horas, sendo frequentemente pincelado com um molho de salsa atada, depois de mergulhada em água com sal, para que a pele ficasse estaladiça, sem queimar. Das vísceras e algum sangue fazia-se um grande tabuleiro de arroz que ia também ao forno. Entretanto preparavam-se os bolos doces e a bola de carne, especialidade de minha mãe, que não podia faltar para o lanche. Mal saía o leitão, entravam os bolos.

A noite chegava e era preciso ir cedo para a cama; o dia seguinte ia começar antes do raiar do dia. Que azáfama, que excitação, que entusiasmo, como é que eu não pude saber que a felicidade estava ali? A alegria começava com as viagens, na carrinha Peugeot da minha infância (com os faróis ainda dentro da grelha) que tinha um toldo atrás, onde nesses dias as crianças tinham direito a viajar, com a tia Mariazinha responsável, a nossa companheira de brincadeiras e cantigas.

A ida ao Chotocota (significava quente), no Lubiri, o pico mais alto de Angola, constituía sempre um acontecimento. Era um monte altíssimo, com mata na sua base, mas que terminava em pura rocha. Na sua falda brotavam águas termais, escaldantes em determinados sítios, e recordo que, quando chegávamos, bem de manhãzinha, ainda fumegavam no meio do nevoeiro. Era sempre um dia longo, um dia inigualável. Bebíamos canecas de água ao longo do dia e trazíamos pelo menos um garrafão cheio para casa. Água, água corrente e morna, quente, poder estar na água um dia inteiro; pelo meio, excursões até à serra, ir às perdizes, enfim, sempre um dia em cheio!

O caminho para o Chotocota foi, sempre, pouco mais do que um atalho, onde mal passava um carro. Anos mais tarde, o traçado da estrada de asfalto que ligava Nova Lisboa a Luanda fez desaparecer o nosso lugar idílico, onde havia um jango enorme e as tais lagoas e fontes de água quente. Já adulta, encontrei no seu lugar um fundo e desajeitado tanque em cimento cheio de água transparente e azul.

Perdera-se completamente a magia da minha infância...

quinta-feira, junho 15, 2006

China



«O filho do caseiro novo é que lhe fez aquilo. Devagar, muito devagarinho, chegou-se a ele e – zás!: espetou-lhe a estaca nas costas. Depois ergueu-o e, de barriga para ao ar, deixou-o ali suspenso, a espernear ao sol.

O menino era mau de natureza. Furava os olhos dos passarinhos e cortava as pernas aos saltaricos quando podia. Mas, no caso de Bambo, portou-se assim porque a Joana Angélica lhe encheu primeiro os ouvidos. À noite, na fiada, tanto disse e ladrou dos sapos, do coxo e das feitiçarias que o pequeno, pela manhã, mal deu com Bambo na horta, varou-o de lado a lado. E o pobre não teve outro remédio senão morrer trespassado na ponta do pau, a servir de espantalho às lavandiscas.»
Miguel Torga

No cacimbo os dias caminhavam sob um céu sem nuvens. O sol escrevia naquele um arco ligeiramente mais baixo, não esquentava as sombras, não aquecia as noites. Era o tempo do milho, das queimadas, das férias, dos passeios e piqueniques pelos arredores.

A época das chuvas trazia outras tarefas ao quotidiano da fazenda. O gado pastava gostosamente durante o dia, pastores bem atentos às nakas de milho para que o gado não apetecesse o seu verde mimoso e pujante. Pelo fim da tarde era o regresso a casa e o complemento habitual de enormes colheradas de sal espalhado ao longo do estreito caminho do rio. Não acontecia todos os dias, funcionava como a guloseima esperada, porque os animais corriam para ele e lambiam deliciados as pequeninas pedras brancas no chão térreo.

Só depois recolhiam aos currais, feitos de troncos grossos de árvore, bem encostados uns aos outros, de altura suficiente para que de fora apenas pudessem aparecer algumas pontas. No período forte das chuvas, era necessário mudá-los frequentemente, aproveitando sempre um dos lados dos mesmos, para facilitar a tarefa que tinha de concretizar-se durante as horas de ausência do gado no pasto.

Quando as vacas pariam, ficavam uma semana fora do curral para protecção dos vitelos. Muito raramente, acontecia uma vaca recusar-se a alimentar a cria porque tinha os úberes excessivamente cheios, sentindo dor. Era necessário forçar a sucção e, durante uma ou duas noites, deixava-se o animal amarrado a uma árvore pelos chifres, de modo a que não pudesse afastar de si a cria.

Recordo como se fosse hoje a inquietação que se gerou numas pequenas férias em que, vezes seguidas, apareciam mortas, e só parcialmente comidas, as crias que ficavam de fora. Seguiram-se pegadas, fizeram-se esperas, leão não era, talvez uma chita, hiena não podia ser, a chuva contínua retirava nitidez ao rasto. Mas os casos repetiam-se uma e outra vez. Nada.

As aulas obrigaram ao regresso à cidade e esqueci o assunto. Era na altura nosso cozinheiro o Massumba, que costumava ensinar-me o umbundo que nunca aprendi. Ficaram-me os cantares sobre a ervinha sensitiva que crescia com as primeiras chuvas e que toda se fechava ao toque da nossa mão: Sô uafa, nhô uafa, ô lirè éri é? - o teu pai morreu, a tua mãe morreu, por quem choras tu?

O Massumba tratava-me por Ca sinhora catito (a senhora pequena) e era meu amigo. Foi ele quem me trouxe um dia, de uma queimada, um raposinho que a mãe, na fuga, deixara cair da boca e que tinha poucos dias. Criei-o a biberon e ficou um lindo bicho, o Pocky. Só que em casa todos tinham medo dele, até os criados, e o meu pai forçou-me a entregá-lo ao Jardim Zoológico onde havia outros companheiros, pois em casa teria de permanecer acorrentado.


Ambos havíamos criado também um cão pastor cuja mãe tinha morrido atropelada. O China foi o meu grande companheiro da infância, como ele não voltei a ter nenhum, mas como ficou de grande porte, acabou por permanecer definitivamente na fazenda. Grande, adulto, eventualmente revoltado por se ver afastado longos períodos de quem o havia criado, tornou-se a «fera» que desfazia os vitelos pela calada da noite.

Bem mais tarde tive a terrível notícia. Meu pai abatera a tiro o meu amigo. Ter-lhe-ei perdoado alguma vez?

segunda-feira, junho 12, 2006

O rio que eu sou

Admiro a tecedora porque tem consentido
que a assemelhem à poesia.
Mesmo com os cílios a perturbar-lhe
o movimento dos fios e os dedos
tocados por uma estranha resignação
ela tece os caudais líquidos
que escorrem na sensibilidade do poeta
desde que era criança…

Fiama Hasse Pais Brandão




O registo da escrita nasce muitas vezes na suavidade das manhãs sem sono. As madrugadas frias em que o calor da cama é menos doce sem o reviver de sonhos que já nem são, porque já o foram. Na solidão dessas manhãs mal despertas ainda, antes do chilrear dos pássaros que acordam antes do dia abrir, eu desperto e perpassa nos meus pensamentos a doçura da infância, na saudade dos que não vivem mais e que foram o nosso esteio na vida, os que fizemos sofrer e ser felizes connosco.

Tecer a vida é tecer os sonhos também, é desfazê-los inúmeras vezes porque não podemos controlá-los ou não fossem eles devaneios da mente.

A fazenda, onde meu pai labutou grande parte da sua vida em África, era plantada à beira Queve e eu recebi desde o berço essa graça pelos nativos. Quevee, menina Quevee, assim era chamada com carinho por quem me quis bem, por quem sempre me cuidou e acarinhou desde que me lembro de mim. Foram eles que me ensinaram o que é a ternura e a doçura do trato, que os anos me fizeram perder há muito, para que pudesse sobreviver. E é dessa delicadeza, dessa suavidade, dessa simplicidade de quem está de bem com a vida, de quem dá porque ama e só por isso, que sinto hoje saudade.

Há dias, por acidente, fui parar à Sanzangola à procura do poema mais lindo de Agostinho Neto, de que tive um disco cantado sentidamente por Rui Mingas. Era um velho single que trouxe comigo no regresso de Angola, tinha também o Monangambé e o Carro de Bois. Resta-me a capa, que o disco desapareceu há anos como por encanto. Pois foi ali que encontrei estas imagens lindas de «mim», que me deliciaram, me comoveram, e que partilho com quem pousar por aqui.

Este é o rio da minha aldeia, este é o rio onde voei à beira-rio, quando me sentia uma viuvinha-de-rabo-comprido, vergando os capinzais da margem com o peso da minha cauda negra e brilhante, quando desejava no íntimo ser java, cruzar aos céus e descer nas águas a meu bel-prazer.

domingo, junho 11, 2006

Paraíso perdido


«No momento oportuno, apareceria de fio e cruz de ouro, mas apenas quando algum importante negócio exigisse. Com a grande vantagem de a cruz servir de porta para quase todas as religiões. A sua preferência no momento se dirigia para a Igreja Católica, pois esta, em vias de reconciliação com o regime, começava a recuperar muitos bens patrimoniais confiscados anteriormente pelo Estado.
Sabia, por conversa do amigo Almerindo, trabalhador nos serviços de cadastro do governo, a quantidade enorme de terrenos confiscados que eram propriedade da Igreja e portanto, mais cedo ou mais tarde, restituídos a ela. Particularmente a Ilha dos Padres, na baía do Mussulo, assim chamada por abrigar conventos nos tempos da colonização, tornados depois da independência em quartel dos fuzileiros navais. Era só questão de tempo e a ilha seria devolvida à Igreja. É evidente, não voltaria a servir para serviços religiosos, a área à volta já estava demasiado povoada e nos fins-de-semana só dava para apreciar os corpos semi-nus por todo o lado, não era alimento espiritual para padres e madres. Já viram a espantosa oportunidade de negócio?
Caposso divisava longe e grande. Imaginava um complexo turístico, com hotéis e resorts, assim mesmo com o nome em inglês pois soava melhor, bangalôs e restaurantes, para quando houvesse turismo internacional. Claro, a Igreja não se importartia muito em negociar com um protestante ou ateu, desde que pagasse bem. Mas sempre seria mais benevolente para com um fervoroso católico ou então não há amiguismos e partidarismos. Se fosse preciso, casava pela Igreja com Bebiana, só para ter acesso a um negócio milionário daqueles. Para ele, criar um grande centro de turismo na ilha também valia um casamento na Igreja, e os antigos camaradas que se lixassem, podiam até rir pelas costas.»

Pepetela

quinta-feira, junho 08, 2006

Palavras


«Ao longo da muralha que habitamos
Há palavras de vida há palavras de morte
Há palavras imensas que esperam por nós
E outras, frágeis, que deixam de esperar
Há palavras acesas como barcos
E há palavras homens, palavras que guardam
Os seus segredos e sua posição (…)


(…) Entre nós e as palavras, os emparedados
E entre nós e as palavras, o nosso dever de falar»


Mário Cesariny




Eu gosto de ler. Gosto de passar os olhos por tudo o que está escrito. Posso ler uma notícia, um artigo algures num jornal sujo de muitas mãos, de muitos dias, e captar apenas o sentido do que se me oferece, sem ver as palavras. Posso folhear um livro caro, brilhante, bem encadernado, bem ilustrado, e topar às vezes com uma única palavra que lhe tira todo o brilho e valor.

Li há dias que os Portugueses não gostam de ler livros de bolso. Que tolice. Ou talvez não, depende do ponto de vista. Por um lado, quem gosta de ler, gosta de ler e ponto final; quer saber o que está lá escrito, dito, que ideias, que enredo, que estilo, ou, tão simplesmente, evadir-se por umas horas. Não importa o suporte. Quem não gosta, não deve ter vontade sequer de despender dinheiro em livros, actualmente com tantas outras solicitações.

Mas temos de ver a outra perspectiva que é curiosa e não de todo despicienda. Dos ricos deste país – os ricos – que sempre são alguns, nem todos gostam ou sequer lhes sobra tempo para a leitura, tais são as solicitações de ordem social, mas precisam de mostrar que são cultos e ter muitos livros em casa é sinal de cultura – valha-nos isso! –. Então, há que investir principalmente na aparência e nem sempre no conteúdo. Uma questão de gosto, em termos de decoração, é claro.

Mas dizia eu que gosto de ler, porém não todos os livros, nem todos os géneros. Prefiro sempre uns ou outros, e raramente leio um livro por pura evasão ao quotidiano. Gosto de ler e reler o mesmo livro se me agrada, e volto a ele, uma e outra vez, sem me enfadar. Há principalmente livros em que me deleito a apreciar as palavras porque são bonitas, porque estão colocadas no sítio exacto ou até porque estão desfeitas e refeitas em novíssimo sentido, e nós temos autores fabulosos! Alguns jogam com os vocábulos uma dança leve, suave, luminosa, inebriante; outros há que pegam em cada palavra e a volteiam, com a delicadeza dos dedos que separam a clara da gema, sem lhe quebrar o ténue invólucro que a sustém.

E o que me dá mais prazer é ainda reler os antigos, aqueles onde ainda me enlevo com expressões e ditos que só conheci na boca de meu pai e de meu avô materno, beirões ambos, um do Marão outro mais da beira-mar, que nos deliciavam nas noites mornas de Luanda com trocadilhos e ironias…


segunda-feira, junho 05, 2006

Eu tenho dois amores...

«É a altura de os olhos das raparigas, acrescentados com sorrisos de desdém, servirem de capinhas para a função, embora aqui, ao contrário das toiradas, as capas delas prepararem os toureiros para levarem a maquia. Os rapazes enchem-se de brios, combinam formas novas de correr gado bravo – tu desafias de um lado e eu assobio-lhe do outro – e a afoiteza acaba por vir, apesar do medo varejar as pernas. Soltam-se as mãos do cercado, já se dão alguns passos para dentro da arena.

– Eh, vaca! Eh, vaca!

Com todas as distâncias bem medidas, o bicho percebe logo que não chegou a altura de se cansar. Escarva o chão, procura as ervas e põe-se a ruminá-las, assim como assim não perderá tudo, aguardando com santa paciência que a matula resolva pensar que ela não marra. Muitas vezes, sem ninguém esperar, surge um bêbado entre vagas de vinho e «pesporrâncias». O gentio aplaude-o com manha. E o vinho encrespa-se, resmunga qualquer coisa, enquanto deita a mão à fralda do homem que o leva às cavaleiras, e dali mesmo, sem poder arriscar mais um passo, lança o desafio…

– Eh, vaca mocha!... Se tu não marras, marro eu…

Conhecendo as regras da etiqueta, a vaca aceita o convite e vai marrar. Mas como percebe com quem trata no corpo lasso do borracho, lembra-se do ditado e põe ela, salvo seja, a mão por baixo do odre. Toma-o nos cornos engravitados e vai depô-lo a um canto da arena, sem mácula, se não prefere deixá-lo sobre um monte de bosta, sem beliscadura também, embora com bastante
cheiro…»
Alves Redol


Pois tenho. Ambos doces, doces, suaves como o melhor chocolate. Quentes, macios, quando repousam na intimidade, entregues e confiantes. São senhores de toda a casa, teimam em escolher o lugar mais desadequado no armário do quarto quando são forçados a esconder a sua presença, esparramam-se sensuais nos lençóis cheirando a lavado, na roupa acabada de passar. Nada os demove sempre que a porta se abre pela manhã cedo, dando acesso a quem ainda dorme para um primeiro aconchego.

Depois a rua, a corrida aos pardais, a espera às lagartixas, ao amigo, as brincadeiras. Mas o quintal é mais atractivo à noite nestes dias calorentos; há ruídos que escapam aos humanos e a sensibilidade do ouvido atento e arguto recolhe da noite o ciciar as ervas, o rumorejar dos insectos, o passarinhar de algum roedor.

Eles não são iguais na forma, nem no feitio, nem na voz. E nalgumas coisas mais. Para um, a hora de higiene pessoal é de partilha de espaço, salpicos do chuveiro, hora de saciar a sede com água morna sabor a sabonete, mais equilibrismos pelas bordas da banheira. Para outro é hora perfeita de respeito pela privacidade do chefe da matilha, há que ficar de guarda, fora de portas, não vá acontecer molharem-lhe os bigodes…

Nenhum deles pesa muito na balança. Qualquer deles, sozinho, enche a vida e os corações de ternura.


quinta-feira, junho 01, 2006

Crianças

«- A senhora imagina lá! Caiu de mais de três homens de altura. Parece de borracha, esta criança. Meteu-me um susto…

- E a mim?! Eu quis descer ao quintal e não pude. Fiquei pregada. Olhe como as mãos me tremem ainda…

E com doçura, num indirecto agradecimento ao céu:

- É bem certo: ao menino e ao borracho põe-lhes Deus a mão por baixo.

Mano João, que ficara, ante aquele rebuliço todo, a manobrar tranquilamente o seu exército de chumbo, ouviu o ditado, puxou um cavaleiro mais para a frente, colocou o oficial de bandeira mais ao centro, e perguntou:

- Ó mamã, Nosso Senhor põe a mão por baixo a todos os meninos?

- Põe, sim. É ele quem os protege.

- Mesmo aos mais pequeninos?

- A esses principalmente. Quanto mais inocentes, mais Deus vigia por eles.

Mano João tirou da caixa três porta-machados com altas barretinas e longas barbas, meteu-os em forma, a um por um, pausadamente. Após objectou:

- Então Nosso Senhor, coitadinho, anda sempre a lavar as mãos…»

Augusto Gil