segunda-feira, junho 25, 2007

Lugar de Paz


«Rolávamos na vertente de uma serra, sobre penhascos que desabavam até largos socalcos cultivados de vinhedo. Em baixo, numa esplanada, branquejava uma casa nobre, de opulento repouso, com a capelinha muito caiada entre o laranjal maduro. Pelo rio, onde a água turva e tarda nem se quebrava contra as rochas, descia, com a vela cheia, um barco lento carregado de pipas. Para além, outros socalcos, de um verde pálido de roseda, com oliveira apoucadas pela amplidão dos montes, subiam até outra penedias que se embebiam, todas brancas e assoalhadas, na fina abundância de azul.»

Eça de Queirós



Neste final de semana Joe Berardo invadiu-me a casa, despudoradamente, através das capas das revistas que semanalmente chegam. Um exagero, se tivermos em conta que pelo pior dos motivos, o futebol, o Benfica ainda por cima - logo eu, que tenho um fraquinho pelo Sporting!

Mas Berardo é também muito mais outra coisa, além de querer comprar o Benfica. É o Museu Colecção Berardo – Arte Moderna e Contemporânea no CCB e a Quinta dos Loridos, no coração do Oeste, bem perto da A8, à saída para o Bombarral.

Aqui também uma casa nobre, sem capela à vista; para rezar, duas altas magnólias em flor, oliveiras e sobreiros centenários. À direita, no meio de uma ala, uma porta ornamentada a pedra esculpida, representando a colheita e anunciando os vinhos; um vinhedo extenso, e mais outro além, devidamente ordenado para um regadio dependente de novas tecnologias. Estamos no século XXI.

A imponência prenunciada surge em seguida, quando a Quinta dos Loridos se descobre, reverenciada por duas estátuas enormes de cães orientais em granito, abrindo-se em ruas e estradas entre relvados e pedras e sobreiros centenários e mata de azinheiras, medronheiros, loureiros e olorosas madressilva e murta, esta ponteada agora de florzinhas brancas.

Multiplicam-se pelos caminhos estátuas magníficas em granito e em mármore, levando-nos ao esplendor do Oriente, ícones doutras civilizações que nos deslumbraram cinco séculos atrás. Monges budistas em oração deixam em nós a marca da quietude e singeleza das suas vidas; descendo um pouco, olhamos o lago imenso onde a nobreza da estatuária convive com a singeleza dos patos-reais que por ali aspergem um ruído venturoso.

Para aquele lugar não há palavras. Só sentir.








terça-feira, junho 19, 2007

Depois da chuva


«Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios,

Incompreensões e períodos de crise.

Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar

Um autor da própria história.

É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um

Oásis no recôndito da sua alma.

É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.

Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.

É saber falar de si mesmo…»

Fernando Pessoa



E porque o prometido é devido, aqui vos apresento o novo inquilino do jardim,



habituado já à curiosidade do Matisse e à voz humana.



Ao escurecer, aparece, aqui ou além: Sweet… Sweet…




Já não se enrola sobre si, assustado; mas ainda olha, desconfiado,



depois, segue a sua vida, rumo à horta, a ver das lesmas e caracóis…

quinta-feira, junho 14, 2007

O que fazem os anos


«…Estou parado no mundo.

Só sei escutar de longe

antigamente ou lá para o futuro.

É bem certo que existo:

chegou-me a vez de escutar.

Que queres que te diga

se não sei nada e desaprendo?

A minha paz é ignorar.

Aprendo a não saber:

que a ciência aprenda comigo

já que não soube ensinar.

O meu alimento é o silêncio do mundo

que fica no alto das montanhas

e não desce à cidade

e sobe às nuvens que andam à procura de forma

antes de desaparecer…»

Almada Negreiros




Eu tenho alma serrana, sinto-o cá dentro. Estou bem nos cerros do Calpe com Herculano, gosto das penedias e lameiros do Torga, da neve nas serranias do Aquilino. É verdade que me delicio com a Sintra do Eça e me assombro com os Andes de Neruda. Mas os meus olhos ficaram na montanha que acolheu o último dia da ingénua e destemida cabrinha de M. Séguin: nunca os abetos tinham visto nada tão bonito; os castanheiros dobravam-se para acariciá-la com a ponta dos seus ramos, as flores douradas e as campânulas azuis espalhavam perfume em seu redor. Toda a montanha a recebeu em festa! E tanta erva! Ervinha doce, saborosa, fresca, fina, feita de mil sabores...!

A água dos regatos e rios encanta-me, toda a paisagem de grandes lagos e arvoredos entre montanhas me fascina. Revisito estes lugares com a mesma emoção com que passeio pela fazenda da minha infância, com a mesma fé com que bordo as letras dos lenços de namorados, num alpendre florido duma casa, algures numa aldeia pacata deste nosso país de belezas sempre renovadas de uma natureza que ainda vai sendo fértil.

Mas a cidade é logo ali, se cidade se deveria chamar (para mim, cidade, é cidade grande, como dizem nossos irmãos de além Atlântico). Nos tempos de hoje, o ritual do café impôs-se em todos os lugares, em todas as camadas sociais, em todas as idades, em todos os sexos. Na «minha» cidade, proliferam cafés a cada esquina e eu tenho preferências, sem ser fiel a nenhum. Quando saio a seguir ao almoço, o café depende do que me leva à cidade: se às compras, o do supermercado serve, pouco agradável, com os cheiros de comida e ruídos que ferem os tímpanos; de Inverno e boa companhia, que seja onde o sol entre e aqueça as almas; de Verão, o ar livre, na esplanada ou no parque. Quando estou só, o meu preferido é um espaço grande, simpático, cheio de gente nova e alegre, estudantes e gente bonita. É perto da biblioteca onde leio os jornais que não compro, onde recolho um ou outro poema novo. O empregado é um jovem, muito jovem ainda, de cabelo quase rente junto à nuca e nas têmporas, no alto ponteado a gel, de argolinha na orelha, muito educado: tomei a liberdade de trazer-lhe um cafezinho cheio… muito obrigada, retribuo com simpatia.

Ontem fui ao cabeleireiro e tive de esperar meia hora. Desci ao café renovado, bem no centro, onde não foi possível substituir os empregados gémeos, porque donos da casa, idênticos até no bigode. A doçaria permanece, o pão-de-ló regional e a freguesia: essencialmente mulheres de meia-idade conversam alto, não me atrevo a ouvir o que dizem num timbre de voz análogo, deselegante como os seus corpos que se não escondem ao Verão que chega, mau grado o ar bisonho; na mesa ao lado, uma jovem acende um cigarro e lê a Maria; perto do balcão, uma velhota simpática, pequenina, gorducha, de cabelo grisalho, entrançado e enrolado na nuca, com ar feliz, acompanha a netinha e olha-a embevecida a comer o bolo e a sorver um sumo por uma palhinha às cores.

Há-de haver uma televisão por ali, ou antes, um plasma. Não reparei.

Usei a civilização, como preciso e convém.

Regressei à aldeia.



sexta-feira, junho 08, 2007

Lenço de Namorados


A graça do meu amor

Não a sei eu gosto assim

Ele a mim chama-me flor

Cuidando que sou jasmim






Passarinho meu amigo

Tu sabes de mia senhor?

Voa e leva contigo

A chave do meu amor


Nas tardes longas, cheias de luz, enquanto o calor me deixa sentar no alpendre com os meus paladinos de todas as horas, esgoto o tempo entre o colorido de meadas de linha moulinée, espólio ainda dos anos de África, nos idos cinquenta…

Das tardes de sábado passadas no colégio, enquanto os rapazes frequentavam as aulas de ginástica da Mocidade Portuguesa (meu irmão usava no uniforme um cinto de couro que tinha uma fivela de metal com um S enorme; enquanto o colocava, ia cantarolando: sou soldado socialista soviético se o Salazar soubesse suicidava-se), as meninas preparavam o futuro esperado de donas de casa, mães de família prendadas. Então lá vinha o ponto pé-de-flor (o point-arrière que me valeu uma boa repreensão por não o saber traduzir num texto intitulado Une Petite Ménagère, em que também vi «bois amarelos» em gemas de ovos – jaunes d’oeufs – tal a minha atrapalhação por não ter preparado devidamente o texto em casa!), o ponto de cadeia, o ponto de cruz, o matiz; só mais tarde o cheio e o recorte para o richelieu e as bainhas abertas.

A década seguinte foi a da quebra das amarras, com alegrias, preocupações e dor.

E visto que o saber não ocupa lugar, os pontos ficaram como a tabuada que aprendi de cor aos seis anos. O deleite pelas linhas e linhos permanece, ao longo da vida reencontrei-lhe o gosto, semearam alegria e serviram de arrimo muitas vezes, também marcaram datas.

No Minho, os «lenços de namorados» eram oferecidos pelas raparigas do campo aos seus amados, bordados por elas e com mensagens de amor, a maior parte das vezes escritas numa castiça linguagem popular. A minha filha, que estudou na FACFIL em Braga e com o Minho estabeleceu profundas ligações afectivas, bordei um dia um, hoje emoldurado orgulhosamente à entrada de sua casa.

Chegou a hora de bordar outro, para o filho que ergue o seu ninho longe, mas tem o mesmo direito ao labor da mãe. Aí está, quase pronto; falta o pior, a bainha aberta, em verde, verde, verde, que ele é de esperanças e sportinguista.

Os meus companheiros aproveitam a companhia de jardim com tarefas diferentes: um, corre atrás das borboletas, o outro faz a revista habitual e sistemática: vasculha atrás de cada agapanto a ver se descobre o novo inquilino do jardim, o Sweet, um pequenino ouriço que há dias seguidos parece ter achado este lugar aprazível. Já conhece quem pode incomodá-lo, mas logo mostrou que sabe defender-se.

Quando o encontrar a jeito tiro-lhe uma fotografia e apresento-o.

Assim ele continue por aqui.

sexta-feira, junho 01, 2007

Eutanásia


Não posso adiar o amor para outro século

não posso

ainda que o grito sufoque na garganta

ainda que o ódio estale e crepite e arda

sob montanhas cinzentas

e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço

que é uma arma de dois gumes

amor e ódio

Não posso adiar

ainda que a noite pese séculos sobre as costas

e a aurora indecisa demore

não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa



Pode parecer menos próprio que, em Dia da Criança, eu venha aqui falar de eutanásia, último tabu. Digo último, no sentido de mais recente, porque me recordo de ser adulta, mãe, e comentar, acerca do despudor (o que na altura me parecia) da publicidade passada na televisão: «não tarda, aparecem anúncios sobre preservativos». Eis que a razão forte de Einstein prevalece.

Toco num assunto que cada vez mais me vem sendo presente, sentindo a descida veloz, cada vez mais lesta, para a margem do Hades, onde Caronte me espera na sua barca. Gostaria de embarcar tranquila, serena entregar o óbolo e entrar no nevoeiro eterno, fundir-me nas águas donde provim, deixar a minha força de alma aos que me segurarem a mão na despedida.

Em dia da Criança, é por elas que venho pugnar, quando o país em que vivo me diz todos os dias que há mais pobreza, mais insegurança na velhice, mais necessidade de conforto económico, menos disponibilidade para dedicar a afectos; porém, mais tempo de vida para todos.

E é este espaço de vida que acrescentam a cada um de nós, que me preocupa. Num lugar em que cada vez há mais velhos, mais reformados, mais carenciados, que educação, que medidas estão a ser tomadas para que esse tal espaço seja ainda fecundo, cheio, prazeiroso, doce e reconfortante quando é já cumprido o ciclo da vida?

É preciso a morte para se dar sentido à vida e morrem poucos, poucos nascendo, onde deveriam nascer e morrer muitos. Esta inversão, o desejo atávico do ser humano de encontrar qualquer elixir maravilhoso que o faça viver para sempre, é o cancro do planeta, ele é a célula a abater. Onde é que eu já li, vi, em ficção científica, situações de seres humanos, mareantes eternos do cosmos, aspirando à suprema ventura de deixar de viver?

Não pesam sobre mim preconceitos religiosos, por isso sou a favor da eutanásia, salvaguardados todos, mas todos os requisitos que confirmem a irreversibilidade dum desfecho em sofrimento, da degradação do corpo e da mente, da decadência total e indigna. É um direito que nos assiste, exprimir essa vontade em tempo de lucidez e é ao médico que cabe essa tarefa, só ele tem a percepção correcta do tempo certo, do momento em que já não é mais possível prolongar o que nada é. O Juramento de Hipócrates é uma Bíblia a ser reinterpretada (Einstein outra vez).

Que bom pensar na educação do terceiro milénio com uma amplitude a ultrapassar as questões obsessivas actuais dos jovens e da sexualidade, avançar sem medo nem tabus para a certeza da mortalidade, preparando ao longo da vida essa última fase de vivência em pleno, com respeito, com amor, com liberdade até de decidir consciente e serenamente a sua interrupção, se for esse o caso, conferindo a dignidade devida a todo o ser humano.