sábado, fevereiro 21, 2009

Ligação

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!

E quando o navio larga do cais

E se repara de repente que se abriu um espaço

Entre o cais e o navio,

Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,

Uma névoa de sentimentos de tristeza

Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas

Como a primeira janela onde a madrugada bate,

E me envolve como uma recordação duma outra pessoa

Que fosse misteriosamente minha.

Álvaro de Campos



A linguagem elaborada do ser humano distingue efectivamente o homem dos outros animais. É poderosa na sua versatilidade porque revela todas as gradações de sentimentos capazes de mudar o mundo, de mudar as relações entre os homens, de mudar o homem sozinho. Capaz até de estabelecer a relação necessária ao entendimento com os bichos.


A linguagem consegue a paz, a linguagem faz a guerra. Ainda assim, as mesmas palavras proferidas ou escritas só são inteiramente esclarecedoras se complementadas com a prosódia e as outras linguagens não verbais. O valor da escrita sobrepõe-se porém à oralidade – nem é sem tino que o povo diz comummente: palavras... leva-as o vento! – A escrita regista e torna refém do discurso quem a utiliza.


Há agora uma escrita alada, mista das duas anteriores, que nobremente se insinua e instala nos salões da comunicação. É a escrita do teclado, da Web, da intemporalidade, coloquial e aberta a todos os continentes. Ela vai destronar os prazeres únicos que alguns, cada vez mais poucos, ainda sentem de delinear a escrita, deixar no papel o sulco dos seus pensamentos, em movimentos inconscientes das mãos desenhando as letras. Esquecidos já do toque suave da caneta, dos dedos borrados de tinta, esquecidos do cheiro dela, esquecidos do afago do mata-borrão. Nem há como fugir, tal a intensidade e variedade das suas propostas, passando mensagens de escrita, de imagem, de som e de cor, arquitectando fantasias, tecendo metáforas.


Eis os anos limando inexoravelmente algumas vontades, acalmando curiosidades, sossegando impulsos. Mas deixando intocável o prazer de reler aquele livro, aquela escrita, aqueles poemas, de rever os filmes intemporais, de escrever a vida.


terça-feira, fevereiro 17, 2009

A avaliação dos sábios


Então, naquele caminho perdido da Mesopotâmia, sob a tristeza imensa da tarde, os dois sábios, filhos de Seth, determinaram arquivar, escrevendo em matéria imperecível, a ciência que possuíam, que era a ciência total daquela primeira humanidade. Durante três dias, durante três noites, num vale onde acendiam fogos, à beira de uma fonte que rugia, inchada com a cólera que Deus já comunicara a todas as águas – os dois sábios sem repouso, ansiosamente, espreitando as nuvens, gravaram sobre o granito e gravaram sobre o tijolo o livro de todo o saber. Depois, na derradeira madrugada, finda a obra, estendidos como páginas, pelo vale, os tijolos e os granitos onde ficava inscrita toda a ciência universal, os dois sábios, levantando as faces cansadas, louvaram o Senhor que lhes concedera tempo de cumprirem, para com os homens da outra humanidade, aquele dever final de fraternidade magnífica: – e do céu caíram lentamente, sobre as faces erguidas dos dois filhos de Seth, as primeiras gotas, pesadas e mudas, da grande chuva de Deus.


Eça de Queirós




Por cada manhã de prata nos é devido um entardecer.


Nem sempre um entardecer dourado, nem sempre uma noite de luz, mas sempre uma quietude de fim de jornada, uma pausa para recolher a sombra que pousa devagar e nos convida ao repouso, quantas vezes forçado por incapacidades inerentes ao corpo, que não ao espírito enquanto vivo. O ser humano é principalmente corpo enquanto ser, principalmente espírito enquanto humano. Mas é as duas coisas num só, ainda que o culto eficaz do segundo nos tenha feito avançar na escala de Darwin. Parece.


Parece também que o avanço de muitas coisas nos fará repensar outras tantas dadas como infalíveis como nada é, bem o sabemos. E é nestes entardeceres quietos, cada vez mais alongados, que apetece rever o caminho percorrido para ver se dali nos vem alguma luz para que a vereda aberta por passos incertos se torne caminho amplo de rota segura. Porque é preciso caminhar. E vem-me à ideia Rousseau, o pai ausente, que fez o mundo olhar a criança como uma individualidade a respeitar pela pureza de que vem imbuída, a preservar da maldade de uma sociedade adulta e tenebrosa. Constituída por homens que nasceram bons selvagens, lembro. É que alguns não foram pervertidos, pois no percurso da pedagogia por todo o século XIX e XX encontro o homem-menino Saint-Exupéry, Antoine, afinal o principezinho de todos os espantos.


Foi-se a infância, a juventude, a idade adulta com as pedagogias todas pecando por excesso, por inconsciência, por ignorância, por incompetência também. O que permanece é a idade última da vida que infesta a sociedade envelhecida que temos e peca por maioria. Infelizmente assim é em Portugal, não fossem os imigrantes a trazer alguma vida aos velhos.


E voltamos ao princípio, três séculos atrás.


É que aos professores aposentados deste país, «num apelo à cidadania», é agora oferecida, pelo governo, uma ocupação, não remunerada, para «formação de professores e pessoal não docente», «planeamento e realização de Acções de Formação para Encarregados de Educação», «apoio burocrático-administrativo», «desempenho de funções de tutoria», «apoio a programas de investigação», entre muitas outras propostas, sendo que «a Escola avalia periodicamente os voluntários».


Jean-Jacques, precisa-se, com urgência.


sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Angústia



Por interstícios das malas abertas de quando éramos
crianças gritam as bocas sem nenhum eco
das bonecas. Criaturas fictícias, escalpelizadas
e sem tintas, de ventre oco. Mas o mortal
lugar do coração está ainda a palpitar.
O bojo do peito de celulóide, como o meu,
pede-nos perdão pela saudade que nos devora.
 
Fiama Hassa Pais Brandão


As inquietações embrulhadas no sono alisam as faces, aquietam as corridas apressadas do sangue nas veias, caminham dóceis no espaço.

Com a naturalidade do sonho, a varanda larga da fazenda exposta ao sol da manhã, a trepadeira de campainhas de fogo deixando caminho às andorinhas suspensas da corda alta, alisando as penas, chilreando a espaços. As sardinheiras no parapeito continuavam lá, hastes acrobatas, poucas folhas, uma flor aqui e além. Branca, rosa, salmão.

E o armário de gavetas, pintado a branco-marfim, as ferragens antigas. E aquela mesinha alta e redonda, outrora suporte de samambaia, agora coberta dum pedaço de pano em quadradinhos azuis picotado pela mãe.

O filho surgindo, banhado de fresco, cara rasada, pendurando a toalha e assustando as andorinhas. «Mainha, tu é que pintaste o armário?» «E então?» «Lindo, está um show!»

Trincou uma maçã e foi-se à sala de portas escancaradas à manhã. A irmã passava os dedos sobre o fogão novo, onde duas empregadas preparavam o almoço, ou pequeno-almoço talvez. Asseadas, de lenço e avental brancos. Perguntei «onde estão todos

Não obtive resposta – não esperei por ela – e desci os breves degraus para o quintal, sob as laranjeiras, para a horta, para a cozinha velha, cada vez mais apressada.

– Manuel! Manuel? Velhote!?

Respondeu-me o vermelho-sangue da buganvília cobrindo já o telhado a capim, descoberto aqui e além, lá dentro o forno sem porta, teias de aranha subindo pelos cantos, chão de terra negra. Nem os cães cirandavam por ali. Nem viv’alma. Voltei as costas, o rosto molhado, olhei a vala logo ali.

Só ela era igual, os fios de prata correndo, o sol brincando neles.

Acordei.



segunda-feira, fevereiro 09, 2009

O presente é já o futuro


Em que pensa, cardeal?


CARDEAL GONZAGA, como quem acorda, os olhos cheios
de brilho, a expressão transfigurada:

Em como é diferente o amor em Portugal!
Nem a frase subtil, nem o duelo sangrento...
é o amor coração, é o amor sentimento.
Uma lágrima... Um beijo... Uns sinos a tocar...
Um parzinho que ajoelha e que vai se casar.
Tão simples tudo! Amor, que de rosas se inflora:
Em sendo triste canta, em sendo alegre chora!
O amor simplicidade, o amor delicadeza...
Ai, como sabe amar, a gente portuguesa!
Tecer de Sol um beijo, e, desde tenra idade,
Ir nesse beijo unindo o amor com a amizade,
Numa ternura casta e numa estima sã,
Sem saber distinguir entre a noiva e a irmã...
Fazer vibrar o amor em cordas misteriosas,
Como se em comunhão se entendessem as rosas,
Como se todo o amor fosse um amor somente...
Ai, como é diferente! Ai, como é diferente!

Júlio Dantas



Voar pela infância de há décadas e colher dela o néctar das flores silvestres, não significa menosprezar o encanto das flores de estufa actuais, sua beleza e viço.


Só a distância nos traz o olhar terno da saudade, dos temperos das gentes e lugares que são hoje mera utopia, não têm volta. Esbatidos no tempo, pelo olhar da vida, os medos pueris, as inquietudes, os desconfortos, as incertezas, os desejos de então de saltar barreiras, derrubar fronteiras, galgar os anos e os espaços, tudo refreado pela morosidade dos ponteiros do relógio, velho sábio, dono do tempo.


As crianças de hoje terão suas noites sem sono, se não já ouvindo a torre da igreja, se não contando o soar do pêndulo da sala, talvez olhando no tecto do quarto a projecção do correr das horas. Do mesmo modo perambulando a infância, se ela foi de amores mais do que dores. Que os afectos pesam como os sonhos, é tudo o que sobra quando os haveres já não contam e o corpo não corresponde ao que vai por dentro. Quando o corpo já não consegue dizer que é preciso parar as guerras que grassam pelos continentes.


Lembrar o passado não significa esquecer o presente. É tão só uma evasão momentânea, como ler um livro, como ver um filme. Quando os dedos correm pelas teclas do portátil sobre os joelhos, quando se olha os espaços da terra por esta janela aberta, quando o filho sorri do outro lado do mundo, nada nos faz maldizer o presente, nada nos faz desejar o retorno ao passado, senão repetir: «Ah, como é diferente o amor em Portugal!»



segunda-feira, fevereiro 02, 2009

Outros brinquedos


– João, és do meu sangue e por isso não te mando matar! Desaparece de Inglaterra! Que eu nunca mais te veja nem ouça falar de ti.

Quando o príncipe saiu entre os dois soldados, voltou-se para Robin e perguntou:

– E tu, a aquém devo o trono e a vida, que desejas?

– Que me perdoes e aos meus homens.

– Estás perdoado, e de hoje em diante todos os meus súbditos serão iguais. É tudo quanto queres?

Robin sorriu e olhou para Mariam. O rei seguiu-lhe a direcção do olhar.

– Gostas dele? – perguntou baixinho à sobrinha.

– Mais do que a vida.

O rei voltou-se para Robin:

– Ajoelha, Robin!

Quando este obedeceu, tocou-lhe nos dois ombros com a ponta da espada e disse:

– Levanta-te, barão de Locksley, conde de Sherwood. É a tua recompensa. E agora, ordeno-te que cases com Mariam.

Robin dos Bosques, novela contada às crianças por Leyguarda Ferreira




É no linho da infância que nos bordam o carácter e o gosto.


Por ventos e acalmias no oceano dos tempos, permanece em nós aquele perfume da criança que fomos, no fazer e refazer das vidas, na construção da pessoa em que nos tornámos. No meio das vagas mais alterosas, quando a chuva cai em pingos de água e ao mesmo tempo troveja o número de desemprego no país e no mundo a que pertencemos, quando tudo aquilo por que lutámos se desmancha em torrentes, restam os sonhos dos meninos embrulhados em recordações. Sejam as bonecas de papel, os barcos de papel, o papel dos livros das histórias que nos povoaram a infância.


Pertenço à geração dos avós, embora não tenha netos. Pertenço àquela geração que não tinha televisão nem computador nem telemóvel nem MP3 e quejandos – nem sei bem o que são, com toda a franqueza. Pertenço àquela geração que ainda tinha tempo de ser criança por inteiro, embora tivesse de perder muito tempo a juntar as letras para conhecer as histórias que vinham no meio delas, embora tivesse de construir o universo em cada leitura. Pertenço à geração que tinha tempo para ir nadar, ir à pesca (primeiro, às minhocas), jogar às escondidas, ao 31 alerta, aos cowboys e aos índios, saltar à corda, à macaca, ao eixo, aos queimados. Jogar à bilha. Andar de bicicleta. Aprender a fazer uma cana de pesca com uma bóia de cortiça, uma fisga para acertar nos morros de salalé.


Ainda hoje um livro acontece como uma história bonita em que somos parte dela, em que o autor nos pega e correndo de mão dada nos enleva até à última linha. Inês Pedrosa preencheu agora meus dias cinzentos fechados e abriu-me o Sermão de nossa Senhora do Ó, trouxe-me o mestre dos mestres e embrenhou-se comigo pelos terreiros de S. Salvador, pelas mães-de-santo dos candomblés, pelos caminhos que Vieira percorreu na Bahia de Todos os Santos, com O Desejo e a Eternidade.


Às vezes basta um amigo, dois amigos, e as histórias chegam, o Brasil misturado pelas férias dos que nos são caros às memórias comuns das tardes no ringue de patinagem junto ao parque infantil dos baloiços que nos embalaram uma infância nunca perdida. Porque achada em cada relembrar.