sábado, novembro 28, 2009

Cavalos do Mar e do Tempo


A luz que te ilumina
Terra da cor dos olhos de quem olha!
A paz que se adivinha
Na tua solidão
Que nenhuma mesquinha
Condição
Pode compreender e povoar!
O mistério da tua imensidão
Onde o tempo caminha
Sem chegar!...

Miguel Torga




Não seria sincera se dissesse que António Lobo Antunes é o meu escritor preferido, mas não estou longe da verdade se disser que o considero, indiscutivelmente, um dos maiores escritores vivos de Língua Portuguesa. Tive ontem oportunidade de estar presente no auditório do CCC de Caldas da Rainha, onde Lobo Antunes se deslocou, pela mão de Isabel Castanheira, da Livraria 107.

É delicado e simples na apresentação pausada que faz do seu último título: «há muito tempo que queria fazer um livro com estrutura de corrida de toiros» … «depois, foram aparecendo vozes inesperadas… estava a transcrever o que às vezes me diziam. O livro estava por baixo daquele magma de palavras… e o livro foi surgindo.»…

Ouvi-lo ali, como se em afável conversa familiar, deixa-nos uma sensação de ternura que persiste. Ficaram gravadas algumas frases bonitas, por entre o tom sério, as graças, as ironias, as histórias familiares, o convívio com amigos. «Eu trabalho com aquilo que é anterior às palavras, as emoções, compulsões.» «Há uma alma em cada coisa e um livro é feito de coisas. Um escritor é um trapeiro, fica com o lixo que as outras pessoas não querem.» «Eu queria só chegar ao coração das pessoas.»

A apresentação irregular da sua escrita formal, que de início me incomodava, é uma forma de poesia em prosa, e o que escreve não é um romance, ele próprio o afirma. É assim para ser digerido devagar, sem pressas, já que «os livros bons não dormem, têm insónias».

Chegada a vez de apresentar-lhe um volume para autografar, declinei o meu nome, que não compreendeu à primeira. Quando o seu editor, ao lado, lho repetiu perto do ouvido, levantou para mim os seus olhos azuis de menino e evocou de imediato um livro que acompanhou a minha infância – e pelos vistos a sua – onde «eu» viajava num também cavalo… do Tempo: «As Aventuras de D. Redonda e a sua Gente» (já em tempos recordei aqui esse título, a propósito das minhas primeiros leituras de criança).

Foi um momento de encanto, aquela troca de palavras, aquele minuto de conversa. Logo se desvaneceu.

«As solidões entre as pessoas são como os planetas, caminham em órbitas sozinhas».


terça-feira, novembro 24, 2009

Horizonte

Dança o cão, dança o gato, dança o feijão carrapato
Diziam-me isto, em criança, eu adorava. Voltou-me hoje à ideia, passado tanto tempo.
Tanto tempo, uma ova: era menino, limitei-me a piscar os olhos e fiquei como agora.
Entende-se a maldade? Eu não entendo. Piscar os olhos é um instantinho, que raio de merda aconteceu? Mascararam-me com rugas, cabelos brancos, vontade de ir mais cedo para casa.
Brincadeira de mau gosto, a idade.

António Lobo Antunes





Nascer num tempo que já não é, dobrar esquinas que já não há, conviver com seres que já não estão.
Pois sim. Parece ter sido ontem que aprendi a amizade construída entre todas as espécies, os bichos, as plantas, a natureza inteira. Aquela emoção doce que nasce da convivência entre seres que se encontram numa qualquer esquina da vida e se dão as mãos, cada um sentindo do outro o calor, olhando-se com espanto. E um desfraldar de bandeiras de cores e desenhos, olhá-las ao vento qual papagaios de papel ondeando no céu, e o riso correndo na areia molhada. O sentimento que fortalece no primeiro tombo, no enxugar da lágrima, na compreensão, na separação, no desvendar das diferenças, na procura das pontas em que passa agasalho e afecto.
Por isso eu ainda preciso da alegria dos pássaros, da ironia do sol por entre a cortina da chuva, do som dos beirais tocando, a trovoada compondo a sinfonia da noite, na escuta quieta entre os lençóis. Preciso das flores e do cortejo de insectos que lhes beijam as cores, das vozes das gentes, do sorriso dos velhos e dos gritos das crianças.
Preciso de ouvir os sons para a vida, como se não houvesse gente a morrer com fome.

domingo, novembro 15, 2009

Fim de Outono


Enquanto eu vir o sol luzir nas folhas
E sentir toda a brisa nos cabelos
Não quererei mais nada.
Que me pode o destino conceder
Melhor que o lapso sensual da vida
Entre ignorâncias destas?
Sábio deveras o que não procura,
Que, procurando, achara o abismo em tudo
E a dúvida em si mesmo…
Ricardo Reis






Os livros escrevem-se em conversas íntimas, as memórias aflorando os sentidos por cada sopro de vento que anuncia a chuva e se recebe no rosto com volúpia. Lembrar de imediato que não há temor do raio que pode riscar o céu, da trovoada que atroa em seguida e transporta o medo e faz correr para o abrigo da casa. Não. É a chuva ansiada e apenas isso, a campainha que soa lá dentro, dizendo das castanhas apetecidas, já prontas.

Nada é eterno, nem a saudade.

Chega em revoadas, como bandos de pássaros num céu limpo de primavera. Vem em ondas incertas, mudando de tom, de direcção, invadindo-nos o espaço e quebrando a solidão com chilreios insistentes quando pousam nas árvores em volta. É uma sensação indefinível pelo peso que tem de alegria e inquietação, desconcerto, uma visitação que chega a trazer cheiros e cores, tudo tão breve e feérico e ao mesmo tempo tão real que magoa, uma dor fininha perdida no corpo, na mente.

E o bando levanta voo, efusivo, rápido, envolve-nos na despedida e em breve não se distingue senão a mancha ondeante, nem houve tempo para um toque, um afago, não houve sequer palavras. Foi um adejar de borboleta. Foi aquele arco colorido no céu a dizer adeus da chuva que passou.

É agora a quietude que regressa com sabor de paz, deixando aquele aperto cá dentro como o passarinho triste do Zezé, do Pé de Laranja-Lima.

E não é preciso ser criança, para senti-lo calado no peito, preso, sem vontade de cantar.


segunda-feira, novembro 09, 2009

Muros


        – Diga lá!
       Manuel da Bouça aproximou-se mais da mesa, pousou os olhos sobre o papel em branco e murmurou, com a voz a chorar na garganta:
             
        Minha querida Amélia:

       Em primeiro lugar desejo que esta carta te vá encontrar perfeitamente de saúde, mai-la nossa Deolinda. Eu estou muito contente. Isto aqui são outras terras. Já tenho trabalho e se Deus quiser…

 

       Deteve-se a repetir:
       – Se Deus quiser… Se Deus quiser…
       A voz saía-lhe tão sumida, tão vaga e trémula que Rufino ergueu a vista. Manuel da Bouça estava lívido e com os olhos cheios de lágrimas.
       – Que tem, patrício? Está doente?
       – Nada, não é nada. Isto passa. Faça favor de escrever…
       E, procurando dominar-se, balbuciou:

       -Se Deus quiser, Amélia, hei-de ser muito feliz.

Ferreira de Castro




Em cada vida há sempre um muro derrubado e em cada queda uma libertação.

O tempo nos concede o poder de olhar para o que ficou para trás, para o que resultou em generosidade e em dor, para o que acrescentou ao nosso peso anterior – e interior. Não há arrependimento.

Só pedaços de vida que se enrolam como folhas de tabaco verde, depois dobradas, coladas em espirais que escurecem com o tempo, tomam o tom bonito das castanhas e repousam em meadas, guardando os segredos da sua construção. Exalam um odor que inebria.

Como os molhos de cartas antigas, laçadas com uma fita desbotada, dentro de sobrescritos amarelecidos, em papel grosso de correio terrestre ou finíssimo de transporte aéreo, em azul pálido, debruados a cores; têm os selos carimbados ou apenas um nome, uma morada, numa letra cursiva dardejando símbolos, a tinta azul Pelikan. E o tinteiro aberto na memória tem um cheiro doce.

Como as flores lácteas que vestem os cafezais guardam o olhar perdido logo a seguir em frutos vermelhos, depois secos, torrados, moídos, torturados, para se desfazerem em pó aromático. O prazer só acontece quando da terra emerge a água fervente, mesclando de odor e sabor o rio que bordeja os lugares perdidos.

Caem os muros do nosso descontentamento, enfeitam-se as ruínas de beleza, mas o rio continua a correr devagar.


quinta-feira, novembro 05, 2009

Homenagem






IN MEMORIAM

Na cidade de Assis, «Il Poverello»
Santo, três vezes santo, andou pregando
Que o sol, a terra, a flor, o rocio brando,
Da pobreza o tristíssimo flagelo,

Tudo quanto há de vil, quanto há de belo,
Tudo era nosso irmão! – E assim sonhando,
Pelas estradas da Úmbria foi forjando
da cadeia do amor o maior elo!

Olha o nosso irmão Sol, nossa irmã Água,
Ah, Poverello! Em mim, essa lição
Perdeu-se como vela em mar de mágoa

Batida por furiosos vendavais!
Eu fui na vida a irmã de um só Irmão
E já não sou a irmã de ninguém mais!
Florbela Espanca


domingo, novembro 01, 2009

Dia de Todos os Santos

…Oh as casas as casas as casas mudas testemunhas da vida elas morrem não só ao ser demolidas elas morrem com a morte das pessoas As casas de fora olham-nos pelas janelas Não sabem nada de casas os construtores os senhorios os procuradores Os ricos vivem nos seus palácios mas a casa dos pobres é todo o mundo…
Ruy Belo    
Hoje é dia de romagem aos cemitérios onde não fui, mas devera.   
Ou antes, não, porque o dia dedicado aos Finados é amanhã, 2 de Novembro, e eu não me esqueço. Hoje é dia de partilha, entrar no jogo das crianças pedindo o «Pão por Deus», distribuir as guloseimas que não custa ter à mão para encher os sacos abertos, mantendo um ritual muito nosso, a despeito da nova cultura globalizada do Halloween. Nem tarda que não exista mais o «Pão por Deus», tradição perdida nas cidades; tradição essa que deveria ser revitalizada nos tempos maus em que grassa a falta de pão, por chocante que possa parecer a frase dita assim. Uma acção concertada junto aos supermercados para ajuda aos necessitados teria agora um pendor de tradição, aliada à necessidade de real ajuda a que, decerto, todos seriam sensíveis.  
Não é que seja muito importante para mim a presença junto às sepulturas, porque prefiro lembrar os meus afectos perdidos olhando as ruínas que se tornam belas com a pintura do tempo, como as memórias deles, sempre tão presentes, envelhecendo soberbas na sua decrepitude, condenadas à destruição para dar lugar a novos espaços. Amanhã talvez o tempo e a vontade aguentem a viagem até ao lugar de repouso dos mais próximos, onde todas as campas estarão já vestidas de flores e seja mais fácil para mim revisitar o campo sagrado.  
Hoje, o tempo cinzento, parado, quieto, morno, condiz com o dia. Deve ser assim o lugar eterno.