segunda-feira, agosto 27, 2007

Sinais

Eu vigio a minha permanência na terra,

leito eficaz para cada um engrandecer

diariamente. Não posso portanto permitir

que alguém, de quem não considera este clarão

diáfano necessário à compreensão,

queira incutir no espírito humano

a ideia de uma essencialidade colectiva

desenraizada daquele fundo com que cada um

se torna essencialmente em ocasiões únicas

o ordenador de rosas registadas por sinais.

Fiama Hasse Pais Brandão




O mar é sempre aquele esplendor, misto de beleza, domínio sobre a areia que move a seu bel-prazer, sobre as rochas onde se quebra e revolta e vai e retorna e não desiste no seu bailar de força e submissão. Em dias de vento, longe, longe, encaracola e desliza em cabeleiras de espuma, corre, corre até à areia que o espera para os abraços e requebros qual dança de salão, abrindo as saias em rodopios, em sons e suspiros de compasso nunca esgotado.

O mar atrai e mete medo a um só tempo. Deve ser atávico o chamamento da água, quem sabe a ancestralidade da nossa vocação marítima, nem só os descobrimentos, antes, muito antes Ulisses, antes muito antes os Fenícios, antes muito antes e sempre e sempre o líquido amniótico.

«Eu vigio a minha permanência na terra,

leito eficaz para cada um engrandecer

diariamente.»

Olhar só por olhar, o mar engrandece e enobrece tudo. A alma, o espírito, os sentidos, até os ócios, as vontades, as mágoas, as saudades. É um leito macio que embala só de olhar as ondas. O tempo passa e o mar permanece porque é eterno o seu marulhar escutado no búzio malhado, é eterna a volúpia a afagar os corpos, será eterno o prazer de velejar, de cavalgar a onda, de desvendar as profundezas, tão só de mergulhar e conhecer segredos guardados pelos séculos.

É um tálamo fecundo para quem é temerário.

«Não posso portanto permitir

que alguém, de quem não considera este clarão

diáfano necessário à compreensão,

queira incutir no espírito humano

a ideia de uma essencialidade colectiva

desenraizada daquele fundo com que cada um

se torna essencialmente em ocasiões únicas

o ordenador de rosas registadas por sinais.»

Nem todos sabem ler os clarões que diviso diáfanos, quem sabe os vejam velados, toldados pela razão dos dias, sem a razão dos séculos entretanto guardada nos fundos da memória. Espanto-me frequentemente com o caminhar do sol, com a volta da lua, com o céu carregado, que num repente se rasga em luz, destapa em água e sorri num – quantas vezes dois! – arco-íris.

Nem sempre soube ler os sinais; continuo a procurar a mestria.

Sei que eles ocorrem no tempo certo.

Como as rosas sempre florescem.

sexta-feira, agosto 24, 2007

Ouvir a Paz

«Tristeza é notícia? Tanto eu tinha um aperto de desânimo de sina, vontade de morar em cidade grande. Mas que cidade mesma grande nenhuma eu não conhecia, digo. Assim eu aproveitei para olhar para a banda de donde ainda se praz qualquer luz da tarde. Me lembro do espaço, pensamentos em minha cabeça. O riacho-cão, lambendo o que viesse. O coqueiro se mesmando. A fantasia, minha agora, nesta conversa – o senhor me atalhe. Se não, o senhor me diga: preto é preto? branco é branco? Ou: quando é que a velhice começa, surgindo de dentro da mocidade.»

João Guimarães Rosa




Também é preciso saber ouvir a paz.

A paz que se abeira com a noite quieta, morna, sem brisa, deste Estio que nos chega moderado.

A meio da noite, a lua consegue chamar a si a atenção por entre os focos de luz com que os homens quiseram destroná-la. Mas ela impõe-se já, na luminosidade branca que nos seduz. Só as estrelas se apagam quase; só a Estrada de Santiago se envergonha diante do progresso. E é pena. Olhar o céu na noite é o ioga dos campesinos, dos pastores, dos simples: «le jour, c’est la vie des êtres; mais la nuit, c’est la vie des choses». E que coisas bonitas sabem…

Quase não passam carros. Ouve-se o ladrar muito longe, que os lebréus dos casais dormem tranquilos na soleira das portas. O casebre defronte guarda os segredos da desventura de mais e menos jovens que apostam a vida numa jogada em que já estão a perder.

Mas ouvir a noite, aspirar o silêncio, olhar o carvalho majestoso, o pinheiro inclinado pelos ventos, as oliveiras que ainda permanecem, sentir a relva nas mãos, o pêlo macio do companheiro fiel, não pensar para além de tudo isto, é parar para sentir a vida, na água que cresce nos olhos.

É ter capacidade para ser feliz.


domingo, agosto 12, 2007

Riqueza

Amanhã chegam as águas.

– Ti Chico, mas isso foi noutro século!

– Pois foi! Que idade julgam voceses que teria o pai de meu pai se fosse vivo? Que idade julgam voceses que eu tenho?

É verdade. O Ti Chico é mais velho do que podemos supor assim à primeira vista, a olhar para o seu corpo ainda rijo e… enxuto.

Talvez por isso não tenha querido as guelras. Prefere a injecção e escreveu isso – com um X – no quadradinho respectivo. Que está demasiado velho para se reciclar em peixe.

Muitos velhos preferem a injecção. Pode parecer macabro, mas a Comunidade viu-se obrigada, por razões de pragmatismo e também de respeito pela escolha individual, a implementar esta forma, o mais indolor possível, de as pessoas dos povoados a submergir perderem a condição de vivos, em absoluto, e não apenas a condição humana, ainda que apenas num plano parcial. Que posso eu dizer? São escolhas. Apesar de tudo, a alternativa entre a operação e a injecção ainda é uma das provas de que a Comunidade é uma sociedade livre.

– E o que eu ia fazer para debaixo d’auga? – resmunga o Ti Chico – só ia empatar – acrescentando: – Ao menos assim sei o que me acontece.

Rui Zink


Uma semana longe da casa lusitana, bem aqui ao lado, pelas calles da capital, chegou para ouvir com mais realismo o fado português.

Parece que a música e o folclore revelam bem o espírito de um povo: desde o samba no Brasil, onde o fado nem sempre foi (nem é para a maioria) auspicioso, ao bailado flamengo que passa a quem assiste – mesmo perante a intensidade dum dedilhar de guitarra e uma voz dorida clamando a dor – uma entrega ao movimento, ao silêncio que se mantém até o apelo para as palmas e o incentivo que surge da plateia a louvar a garra do sapateado.

É verdade que ali se abre o telejornal com a notícia de que a Espanha está em alta na economia – como todos sabem, diz a locutora com um sorriso – e em Portugal uma notícia de melhores perspectivas se anuncia logo com dúvidas implícitas, de cara fechada – parece-me que isso faz a diferença. Em Portugal vive-se mal, todos sabemos, cada vez pior (alguns cada vez melhor, assim acontece também nas guerras) mas não me recordo de ver mais alegria nos rostos quando houve o bodo aos pobres nas últimas décadas do século passado.

Voltando à música, felizmente o fado tem seguido em frente com outros contornos de que podemos orgulhar-nos, mas o folclore português é pobre de movimentos, austero, monocórdico, fechado, do vira nortenho ao corridinho algarvio fica-se pela beleza dos trajes, quando existe. Parece que lhes falta a alma.

Diz António Barreto, com propriedade, que a riqueza em Portugal é escondida, as pessoas querem ser moderadas no gesto, manter uma aparência humilde, cultivar a modéstia à boa maneira de outros tempos.

Não ostentar, sequer o riso.

Pois eu gosto de sair e olhar a diferença, reconhecendo a minha ânsia de espaço, não só de quintal mas de bosque, floresta, rio, mar. Gosto do meu canto, da minha sala, da minha casa, do meu país. Acho-o lindo. Mas precisa de mais alma. Terão sido os anos da ditadura que nos marcaram e a marca de água permanece para além da imigração que aceitamos por vezes à boa maneira colonialista, da emigração que continua a verter o sangue arterial deixando o venoso circular nas veias esclerosadas.

Pelas calles (de las Huertas), pisam-se pomares de Calderón, de Vega e Cervantes, em letras de ouro; mantém-se a traça dos edifícios e mora gente na cidade antiga; o Prado aparece nos varandins do Paseo, que não se fez avenida. A água e o frescor das árvores cortam o excesso de calor no Verão e os teatros enchem-se à hora certa. Em época baixa, os Espanhóis acorrem a Madrid com as crianças pela mão, para que conheçam o seu país e a sua História.

Em Portugal, a escassos 100 km da capital, os alunos das escolas esperam que os professores os levem aos Jerónimos, à Torre de Belém, ao Panteão, quando semanalmente acompanham os pais à «catedral» da Luz, onde passam o dia no «mosteiro» de Colombo.

Nós temos tudo o que eles têm. Mais ainda, desculpem a imodéstia.

Falta-nos saber clamar a nossa riqueza!

sexta-feira, agosto 10, 2007

Regresso



A vida, como a morte, é uma contingência. Acontece. Uma mescla de sorte, agilidade e colocação conveniente na grelha de partida, fez de cada um de nós o espermatozóide vencedor. Depois tudo aconteceu, tudo acontece em função de condicionantes cuja opção consciente é demasiado humilde para ser tomada em conta. É a gota no mar, o ar na espuma, o planeta no cosmos.

Voar baixo, rente ao chão, não chega a dar prazer. E é arriscado. Tão perigoso que a Java que vive em mim foi alvejada e deixou de voar.

Não tem qualquer importância porque todos estamos condenados à morte, como bem disse Meursault no seu último dia. Como ele também, ela estava inocente na sua pureza, ela não mentiu nunca, ela foi dona de todas as sensações que poderão ter sido inusitadas para quem olha de cima, de fora, do lado, mesmo de muito perto, mas não sabe entender a enormidade, a complexidade da condição humana quando se trata de ligações umbilicais que passam por afectos, por admiração, deslumbramento, respeito, temor sem dúvida, de uma ligação que elimina as distâncias e se concretiza em vibrações para além do real.

Mas doeu a injustiça do tiro.

Como doeu a notícia com que me recebeu o meu país, hoje estampada nos dois semanários que leio regularmente, da demissão de Dalila Rodrigues, a mulher valorosa que conseguiu dar o relevo merecido ao MAA, o Museu dito das Janelas Verdes porque era dele o que mais se via quando se passava junto ao Tejo… Logo agora, quando venho de um mergulho na vida cultural madrilena, deslumbrada com o Centro de Arte Rainha Sofia onde encontrei uma sala exclusivamente ocupada com a projecção de arte visual em língua portuguesa!

Que fazem as mulheres da política no meu país?

Que fazem as ministras da Cultura e da Educação?

O contributo que eu esperava das mulheres na política do meu país, é tudo aquilo que lhes falta: sensibilidade, rigor, justiça.

Ainda bem que nos vamos dando conta: não há homens nem mulheres; há pessoas, mais ou menos competentes.

O nosso Primeiro Ministro teve azar com as mulheres.

Apenas isso.