«Eu não era sensível: era, segundo o professor de Português do liceu, uma besta. Lia as minhas redacções, fixava-me em silêncio um minuto, atirava lá do alto, lá do fundo, para o respeito da turma
- O número cinco é uma besta
e batia com a régua na secretária a sublinhar cada palavra
- Escrever é sujeito, predicado, complemento directo, ponto final e acabou-se, sua besta, anda a gozar comigo?»
António Lobo Antunes
Há outras recordações, felizmente.
Há outras referências, bem mais generosas, daqueles que moldam as mentes e as mãos de uma criança. Menos duras, mais pedagogicamente correctas, mais amáveis. Porventura nem sempre mais fecundas.
Ser professor é, antes de mais, ser intuitivo. Perceber, numa criança, onde estão as suas sensibilidades, nem sempre manifestadas da melhor forma, mas sempre à flor da pele. Depois, ser pedagogo, ser professor. O real problema é que estes dois palavrões (palavras de vinte e sete e quinhentos, dizia-se quando eu andava na escola e o dinheiro era caro em todos os sentidos) são apenas isso, palavrões que a massificação mais e mais dificultou, adulterou.
Vejo-me sentada ao lado do escritor nessa sala de aula. Não o conheço pessoalmente, que vivi os tempos de liceu noutras latitudes, porém há em comum o facto de termos ambos percorrido o mesmo número de anos nas lides da vida. Entrei na escola precocemente, por insistir em acompanhar meu irmão mais velho e, talvez por isso, também pelo interesse, quem sabe a submissão ou o medo, nunca provei o tacto da palmatória que repousava na gaveta central da secretária do professor. Da relação com os meus professores, ficaram lembranças de carinho, de atenção na sua maior parte, quando muito de distância em alguns outros. Se, já adulta, enfrentei algum mestre, hoje ponho em questão se não terei sido injusta.
Mas voltando ao liceu, lá vai meio século. Os nossos professores eram, antes de mais, homens e falocratas. Assim o demonstravam no tratamento distante e por vezes abusivo que nos reduziam a pó:
- As sopeiras são para os magalas! Rua!
- A menina estava bem era em casa a coser meias…
Para os rapazes, sacripanta e escaganifobético foram os nomes repetidos anos a fio, por um professor a quem devo a segurança da pena hoje, alguém a quem já tive oportunidade de louvar aqui e mereceu a minha estima profunda, o Amigo que acompanhei com carinho até ao fim dos seus dias.
A sua mão trémula, em fim de vida, letra já incerta, chegou a justificar: «a si, que sempre prezei e prezo como filha, eu devo a explicação que já antevê, como exímia professora de hoje: eu quis sempre prevenir os alunos contra possíveis descuidos que pudessem mais tarde trazer-lhes prejuízos escolares. E era daí, que nasciam as minhas exigências – prevenir “chumbos”, sempre nocivos.»
Voltando a António Lobo Antunes, entrevejo uma necessidade de afirmação que só poderia ter sido ultrapassada por afectos que faltaram à sua grande sensibilidade de menino. «…o professor de desenho geométrico insiste, numa fúria de que não entendo o motivo
-Vou reprovar-te, bandido
enquanto eu mastigo pastilhas elásticas desafiadoras. O professor dança nas perninhas curtíssimas
- Cospe isso, malandro
e continuo a mastigar, de olho nele, pronto a apunhalá-lo com o tira-linhas. Que estupidez o liceu…»
Os homens e os professores mudaram. As escolas também. Mal seria se assim não fosse. É o país novo na pujança da sua juventude. Inserido nas novas tecnologias, mais sabedor.
Resta lembrar-lhe que precisa de conhecer a «Cartilha Maternal» e não esquecer João de Deus.