quinta-feira, dezembro 28, 2006

«Não sei, ama, onde era, nunca o saberei…

Sei que era Primavera e o jardim do rei…

(Filha, quem o soubera!...)


Que azul tão azul tinha ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha, porque era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha!...)»

Fernando Pessoa






No país de mentira que me adoçou a infância, o Natal chegava sem frio nem geada, muito menos neve. Natal Branco não passava de um filme maravilhoso em que Bing Crosby trazia para mim as canções e o Natal de neve e fantasia que me deslumbravam.

O meu Natal de menina começava quando, logo no início de Dezembro, meu pai trazia para casa a primeira ceira de figos. Figos secos, acamados uns sobre os outros que íamos tirando ao longo dos dias. Doces, doces… É que a época natalícia era esperada principalmente pelas guloseimas: rabanadas, sonhos, bolinhos cortados em forma de sinos, estrelas, pinheiros, enfeitados de chocolate e granjeia, bolos de frutas. E nozes e amêndoas e avelãs, pinhões, passas de uva, de ameixa, de pêra. Eu só gostava dos pinhões porque minha mãe me deixava enfeitar um bolo de chocolate, coberto, onde eu pacientemente espetava cada pinhão de forma a parecer um ouriço.

Só tive a minha primeira Árvore de Natal aos nove anos, quando mudámos para a casa nova. Normalmente, o Natal era passado na fazenda. Ali chegados, a azáfama começava. Os bolos eram batidos com uma grande colher de pau em terrinas de esmalte brancas e redondas, com um pé que se entalava entre as pernas para se poder bater a massa a duas mãos. As claras eram batidas em castelo com um garfo, só mais tarde com varas, numa travessa, também de esmalte, com uma barrinha colorida à volta. À mão, pois claro.

No quintal, o peru condenado amaciava a carne gorgolejando aguardente. De crista pendurada bico abaixo, balançava no coradoiro da roupa, sem tino, uma e outra asa no chão, segurando o corpo pesado. Motivo de galhofa para a miudagem na qual me incluía, sinto hoje dizê-lo.

Dentro de casa, uma toalha branca bordada a cores, com sinos e velas e azevinhos e estrelas, mais umas letras a dizer Bom Natal, Feliz Ano Novo, Boas Festas, cobria a mesa onde já estavam dispostos em tacinhas as frutas secas e os bolos. Num móvel pequeno ao lado do sofá, umas figurinhas de Presépio se ordenavam sobre pedras e musgo que proliferava junto ao tanque das avencas. Ali se punha o «sapatinho» para o Menino Jesus colocar uma lembrança a cada um, enquanto dormíamos.

Na Consoada, não havia jantar, era ceia. Meu pai contava-nos como era em sua casa, na «Metrópole», junto dos avós que não conheci: a mesa era mais parca, mas sempre de festa, com bilharacos em vez dos sonhos. Contava também que, em dias normais, a refeição da manhã era sopa em vez de leite; o almoço chamava-se jantar e à noite ceava-se. Costumes estranhos para nós que detestávamos sopa, como a maioria das crianças.

Depois da ceia, mesa arrumada novamente com as iguarias próprias, era invariavelmente colocada uma garrafa de vinho do Porto e alguns cálices. Para que, naquela noite mágica, também os nossos mortos viessem partilhar da festa da família.

terça-feira, dezembro 26, 2006

A fogueira








Natal é um nome mágico. Costela que sou de Ribatejano – se atender aos preceitos bíblicos da criação da Mulher – sinto mais esta região como estremenha, dada a proximidade e a atracção das gentes pelas terras da beira-mar.

Já adulta, encontrei aqui um Natal bonito. No largo grande da casa-mãe, diante do alpendre do antigo lagar de azeite, ao fim da tarde do dia da Consoada, os homens empilham raízes monstruosas de pinheiros, enquanto as mulheres fazem os coscorões e aprontam a ceia. Acende-se então a fogueira alta e enorme, que arde pela noite adentro, por todo o dia de Natal e só deve findar depois da segunda meia-noite.

Nestes últimos trinta anos, a fogueira uniu a família pequena, cada vez mais pequena. Morreu a Mãe que eu conheci e amei, primos e irmãos estimados deixaram o nosso convívio e fazem falta, muita falta.

Os que sobraram querem manter viva a fogueira, mas falta o calor dos que partiram sem volta, falta o vigor dos que a vida levou para o outro lado do oceano. As noites já não se prolongam nela a grelhar as carnes pela noite fora, a aquecer o vinho novo, a dar alento até chegar a madrugada.

São mais os velhos, do que os novos. Mas a fogueira ainda arde.

quinta-feira, dezembro 21, 2006

O sentido das palavras

«Como as ondas do mar que vão e vêm

pela atracção da Lua

outras ondas se alteiam atraídas

por outras luas, satélites do rosto.

Enquanto umas de amor cobrem as praias

e as penetram de espuma,

estas não amam, não molham, não se esgotam.

Mudam de cor, apenas.

Vêm de dentro e sobem, num conflito

sem tréguas nem fraquezas,

deixando o rosto esfarelado e seco

como os desertos quando o vento sopra.»

António Gedeão



Sou uma mulher de palavras. E de palavra também, acrescento para quem me não conhece. Gosto de olhar as palavras escritas, gosto de as ouvir bem ditas, gosto de ver a beleza de algumas nossas que soam tão bem. Não terá sido sem razão que Velásquez chamou ao seu quadro «Las Meninas»…

Às vezes dou comigo a implicar com uma palavra, a tentar colher-lhe o sentido e logo desviar-me dela, porque me não convém. Desta vez foi o Norte. O Norte que é indicado pela Estrela Polar que mal lobrigo nos céus, o Norte donde nunca vem o sol e tem, portanto, pouco a ver comigo. Nasci no hemisfério sul e prefiro-o ao Setentrião. Depois, estou caminhando francamente para o Ocaso, não há norte a perder, menos ainda a procurá-lo neste meu percurso. Assim por que não tomar como referência a «estrela» do Ocaso, a Vénus que surge a brilhar no Poente ao cair da noite? Ora direi então que estou despoentada, quando o horizonte que me surge se queda fechado sem os montes que almejo, sem a planície serena ou as dunas que despencam sobre a praia quente, sobre o mar por que anseio…

Estamos em Quadra de Natal e eu gosto da Consoada. Quereria ter um livro para cada sapatinho, ter muitos sapatinhos pendurados na lareira de casa. Depois, para meu próprio gozo, ler e mimar cada um deles pela noite adentro. Mas já não há crianças que acreditem em sapatinhos a guardar prendas, e ainda bem, porque o país e o planeta que lhes deixaria, seriam um presente envenenado.

Mas sinto-me feliz por sentir ainda, perto de mim, corações a pulsar mais forte por uma surpresa pequenina, na magia duma Noite de Natal.

domingo, dezembro 17, 2006

Aluno sofre...!

«Eu não era sensível: era, segundo o professor de Português do liceu, uma besta. Lia as minhas redacções, fixava-me em silêncio um minuto, atirava lá do alto, lá do fundo, para o respeito da turma

- O número cinco é uma besta

e batia com a régua na secretária a sublinhar cada palavra

- Escrever é sujeito, predicado, complemento directo, ponto final e acabou-se, sua besta, anda a gozar comigo?»

António Lobo Antunes

Há outras recordações, felizmente.

Há outras referências, bem mais generosas, daqueles que moldam as mentes e as mãos de uma criança. Menos duras, mais pedagogicamente correctas, mais amáveis. Porventura nem sempre mais fecundas.

Ser professor é, antes de mais, ser intuitivo. Perceber, numa criança, onde estão as suas sensibilidades, nem sempre manifestadas da melhor forma, mas sempre à flor da pele. Depois, ser pedagogo, ser professor. O real problema é que estes dois palavrões (palavras de vinte e sete e quinhentos, dizia-se quando eu andava na escola e o dinheiro era caro em todos os sentidos) são apenas isso, palavrões que a massificação mais e mais dificultou, adulterou.

Vejo-me sentada ao lado do escritor nessa sala de aula. Não o conheço pessoalmente, que vivi os tempos de liceu noutras latitudes, porém há em comum o facto de termos ambos percorrido o mesmo número de anos nas lides da vida. Entrei na escola precocemente, por insistir em acompanhar meu irmão mais velho e, talvez por isso, também pelo interesse, quem sabe a submissão ou o medo, nunca provei o tacto da palmatória que repousava na gaveta central da secretária do professor. Da relação com os meus professores, ficaram lembranças de carinho, de atenção na sua maior parte, quando muito de distância em alguns outros. Se, já adulta, enfrentei algum mestre, hoje ponho em questão se não terei sido injusta.

Mas voltando ao liceu, lá vai meio século. Os nossos professores eram, antes de mais, homens e falocratas. Assim o demonstravam no tratamento distante e por vezes abusivo que nos reduziam a pó:

- As sopeiras são para os magalas! Rua!

- A menina estava bem era em casa a coser meias…

Para os rapazes, sacripanta e escaganifobético foram os nomes repetidos anos a fio, por um professor a quem devo a segurança da pena hoje, alguém a quem já tive oportunidade de louvar aqui e mereceu a minha estima profunda, o Amigo que acompanhei com carinho até ao fim dos seus dias.

A sua mão trémula, em fim de vida, letra já incerta, chegou a justificar: «a si, que sempre prezei e prezo como filha, eu devo a explicação que já antevê, como exímia professora de hoje: eu quis sempre prevenir os alunos contra possíveis descuidos que pudessem mais tarde trazer-lhes prejuízos escolares. E era daí, que nasciam as minhas exigências – prevenir “chumbos”, sempre nocivos.»

Voltando a António Lobo Antunes, entrevejo uma necessidade de afirmação que só poderia ter sido ultrapassada por afectos que faltaram à sua grande sensibilidade de menino. «…o professor de desenho geométrico insiste, numa fúria de que não entendo o motivo

-Vou reprovar-te, bandido

enquanto eu mastigo pastilhas elásticas desafiadoras. O professor dança nas perninhas curtíssimas

- Cospe isso, malandro

e continuo a mastigar, de olho nele, pronto a apunhalá-lo com o tira-linhas. Que estupidez o liceu…»

Os homens e os professores mudaram. As escolas também. Mal seria se assim não fosse. É o país novo na pujança da sua juventude. Inserido nas novas tecnologias, mais sabedor.

Resta lembrar-lhe que precisa de conhecer a «Cartilha Maternal» e não esquecer João de Deus.

sábado, dezembro 16, 2006

Saudade desta infância


(...) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

(...) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.





quarta-feira, dezembro 06, 2006

Olhar em volta

«Por uma manhã de Setembro, límpida e serena, como às vezes são na nossa terra as manhãs de Outono, Jorge saiu a pé, a passear pelos campos. Errou ao acaso por bouças e tapadas, seguiu a estreita vereda a custo cedida ao trânsito pela sôfrega cultura das terras marginais do pequeno rio da aldeia. Depois subindo a uma eminência, parou a contemplar do alto o aspecto do feracíssimo vale, que suavemente se lhe abatia aos pés, e no fundo do qual se erguia, de entre veigas e pomares, a Herdade (…)

– Em flagrante delito de meditação poética, Sr. Jorge! Bravo! Já não desespero de te ver um dia fazer versos.

– Quem se senta no alto de um monte, depois de subir toda a encosta, pode fazê-lo simplesmente com o prosaico intento de tomar fôlego. Se isto fosse sintoma de poesia, então…»

Júlio Dinis




















Por que nunca paramos no meio do caminho, simplesmente para olhar o que nos rodeia, para sentir o cheiro dos eucaliptos novos? Eu sei porquê, todos temos pressa de chegar.

E refiro-me precisamente ao eucalipto porque é ele que altera a nossa floresta mediterrânica de pinhais e soutos e olivais. É ele que suga os parcos lençóis de água e ajuda à desertificação anunciada, mas exala um cheiro refrescante e leve (que me leva à «cortina» da Sacaála, às amoras…) em dias de calor intenso. Pois é, toda a medalha tem seu reverso: de um lado a degradação e o declínio, do outro a economia do país e a beleza, o odor, o atear dos sentidos.

Nos nossos passeios pela minha África, meu pai tinha por hábito parar sempre em cima das pontes. E saíamos todos para ver o rio. Lamacento e caudaloso, espraiando-se sorrateiro pelos capinzais das margens; parado e aquietado por uma barragem; límpido e alegre despenhando-se em cascata ou correndo ligeiro, negaceando as pedras lisas.

Parar sobre as pontes seria talvez o lugar mais seguro para simplesmente se olhar a paisagem em volta, para se encontrar o sítio mais aprazível para uma pescaria, um piquenique também. Sempre junto à água.

Na memória, as pontes sobre o Kolongo, o Kuíto, o Kuando, o Kussava, o Kurimahala, são as mais presentes. O Lucala, atravessei-o vezes sem conta sobre uma jangada; também o Kunene, em Vila Folgares (Capelongo), para uma caçada aos elefantes que não se concretizou porque as chuvas chegaram de sopetão, antes do tempo previsto. Tivemos de regressar a casa.

Eu também tive de regressar à terra que viu nascer os meus maiores. As minhas pontes, os meus rios, ficaram lá.

Eu, continuo aqui, num outro rio, sem água e sem magia.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Fim de Outono


«Eu vigio a minha permanência na terra,

leito eficaz para cada um engrandecer

diariamente. Não posso portanto permitir

que alguém, de quem não considera este clarão

diáfano necessário à compreensão,

queira incutir no espírito humano

a ideia de uma essencialidade colectiva

desenraizada daquele fundo com que cada um

se torna essencialmente em ocasiões únicas

o ordenador de rosas registadas por sinais.»

Fiama Hasse Pais Brandão