sábado, setembro 28, 2013

MARIA PILAR




Às vezes, à noite, na sala, a minha mãe tocava harpa. Lembro-me dos dedos que pareciam dizer adeus às cordas e apetecia-me estar nua, encostada ao seu peito, de olhos fechados, a sentir aquelas mãos no meu dorso, com o som leve, frágil e triste da minha pele e dos meus ossos a evaporar-se de candeeiro em candeeiro e a morrer, por fim, na sombra das cortinas, como as borboletas nas pregas de damasco e nos ramos negros, muito quietos, da figueira. O meu pai lia o jornal ou tirava o relógio do colete para olhar as horas, um relógio redondo, de prata, com uma tampa que se fechava sobre os ponteiros, ocultando o tempo, do mesmo modo que as pálpebras das ostras se cerram sobre a secreta intimidade do seu mistério.
António Lobo Antunes in "O Auto dos Danados"
 






Ontem um dia diferente na cronologia familiar, a chuva o vento guiando o voo das cegonhas na tarefa eterna dos enganos com que se enfeita a infância. Nem sei se por muito mais tempo e nem sei também se não regressar aos lugares primitivos em que as mulheres pariam os filhos em casa ou na lagoa perto, presentes as crianças mais velhas, as mais velhas mulheres na ajuda imprescindível. Ontem, as fadas os duendes os anjos voltejaram e trouxeram a Pilar. O Natal deste ano vai chegar com mais alegria ao lagar antigo, vamos ter um Menino Jesus que por sinal é uma menina, mas o que importa é o sentido da vida que corre e não se detém nas lamúrias dos velhos, as dores o cansaço os by-pass as atrozes os sinais as sombras a crescerem no corpo nas mãos. E os olhos a perderem o brilho, o tamanho.

E amanhã será dia de eleições e o país vai ficar na mesma, cada vez mais na mesma, as autarquias a não levarem a carta a Garcia, simplesmente porque nunca a leram. Os autarcas não escutam os munícipes, não vêem as reais carências do município que gerem, não organizam os seus mandatos em função das prioridades, mas das eleições; as juntas de freguesia apenas gerem os seus interesses pessoais, não mostram capacidade de dinamizar os seus espaços, as suas gentes. Não conseguem ter o papel importantíssimo de averiguar das necessidades económicas de uns e outros para que as ajudas materiais cheguem a quem precisa e não seja desbaratada pelos mais espertos.

Muito poucos, demasiadamente poucos, são os que verdadeiramente se dedicam de alma e coração à sua terra, com a intenção de gerir as suas potencialidades, com o intuito de servir aos outros e ao país. A autarquia onde voto mostra-me um Centro de Saúde desprezado por dentro e por fora, onde qualquer um se sente doente só por circular ao seu redor num jardim ao abandono, ou sentar-se numa cadeira no interior ou apenas rodar uma porta. Incúria total, não falta de meios, porque há verbas para belos pavimentos e mesas de pedra com lugares para estacionamento (- para piqueniques à beira da estrada? - para os peregrinos? ) a uma escassa dezena de metros, para um e outro lado, onde as prostitutas continuam a sentar-se diariamente à espera de quem passa.

Por fim, a despesa brutal, inconveniente, irresponsável, com as campanhas para as eleições autárquicas simplesmente me aguça a vontade de não ir votar. Está pois decidido, amanhã, pela primeira vez desde que tenho direito ao voto, pela primeira vez contra tudo aquilo por que sempre lutei, pela primeira vez não vou votar.
É que tenho de ir ver a Pilar.



terça-feira, setembro 24, 2013

A FORÇA DE OLHAR


Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.



António Ramos Rosa





Vejo-me sentada num horizonte cada vez mais longe. Olho para trás e o caminho percorrido tem o tamanho do mundo, aquele mundo que quero passado e não desejo ver de novo, aquele mundo em que nem por um segundo lastimo ter participado. Apenas, repito, não queria de novo palmilhar, nem os bons nem os maus momentos.

O que foi positivo, ficou enraizado e agora tem o sabor da mandioca, aquela raiz que é alimento, nem é preciso ir ao forno porque em cru é mais suculenta, como a batata doce, como o milho verde e leitoso. O que doeu e deixou marcas é para cobrir com tecido leve, para encobrir a cicatriz, mas lembrar que aconteceu. Esquecer é não ter alma.

O corpo cresce e toma novas formas porque é de sua natureza, por dentro pouco difere para além do cansaço que força a escolhas mais profícuas, assim rendibilizando o que outrora escoava ao querer abarcar o mundo. Agora é tudo mais quieto. O olhar o mesmo, apenas um outro modo de olhar.

Porque olhar é um prazer de deuses. E os deuses somos nós. Pode-se olhar e não ver, pode-se olhar e apenas sentir. Pode-se olhar para o que não existe materialmente, pode-se olhar para o que nada é para além das ligações que o cérebro tece e realiza em imagens como a «menina dos fósforos» transida de frio e de fome.

Pode-se olhar o que nos cerca e ver as carcaças disputadas pelas asas abertas dos necrófagos, os pescoços pelados mergulhando por baixo da pele, os felinos já fartos de fauces sangrentas lambendo-se. E o arco do sol quase fechado deixando que a noite traga ainda as hienas. Pode-se olhar e ver a manhã surgir numa coloração diferente, os ossos secos lavados pela força do calor da chuva dos ventos da monção que chega. 

Pode-se olhar o poema e ver o poeta que vive e não está mais.

terça-feira, setembro 17, 2013

BODAS DE OURO




Senhor meu. Casa limpa. Mesa asseada. Prato honesto. Servir quedo. Criados bons. Um que os mande. Paga certa. Escravos poucos. Coche a ponto. Cavalo gordo. Prata muita. Ouro o menos. Jóias que se não peçam. Dinheiro o que se possa. Alfaias todas. Armações muitas. Pinturas as melhores. Livros alguns. Armas que não faltem. Casas próprias. Quinta pequena. Missa em casa. Esmoça sempre. Poucos vizinhos. Filhos sem mimo. Ordem em tudo. Mulher honrada. Marido cristão; é boa vida e boa morte.

D. Francisco Manuel de Melo in «Carta de Guia de Casados»




Na celeridade dos dias que antecedem o desconforto do inverno, estes dias serenos de outono chegam, gratificantes, restauradores de alguma paz, após um longo verão escaldante e castigador da incúria dos homens, a vergasta descendo principalmente sobre os mais puros, os mais generosos, os mais jovens.

O mundo actual vive sobre os limites, sobre o improviso, contando excessiva e impropriamente com a tolerância dos outros. Os governos desgovernam o que lhes é dado para guardar ao longo de vidas, não se dedicam ao mister de que estão investidos, não estão preparados, não têm estratégias, assentam a sua actuação no improviso, na impulsividade da juventude, não têm sabedoria, não ouvem a experiência.

A vida não é fácil, nem sempre é bonita, mas pode tirar-se dela a beleza possível num dado momento, depois das vicissitudes, dos desastres, das ausências. Porque há sempre um olhar para trás, de mão dada, que compensa a fuga da insanidade dos anos.

No último fim-de-semana aconteceu um desses momentos raros em que tudo se esquece para aquecer os velhos afectos, aqueles que nunca esmorecem porque caldeados nas mesmas adversidades, nos mesmos contentamentos, nos mesmos caminhos palmilhados.

Cinquenta anos é muito tempo. Já éramos amigos há vinte anos atrás destes cinquenta. Éramos meninos e éramos felizes. Éramos meninos e donos do mundo. Hoje não somos donos de nada, salvo deste afecto que nos faz remoçar, sempre que a ocasião se nos oferece. Olho os netos que não são meus e crescem distante, abraço os filhos que vi nascer e cresceram com os meus, hoje espalhados por mundos tão longe, Praga, Roterdão, Clermond-Ferrand, Friburgo, Luanda, Toronto, Porto, Coimbra, Lisboa, a estudar, a trabalhar.

Foi num lugar bonito junto ao rio Liz o nosso encontro, perto da sua nascente e ainda liberto da poluição de Leiria. Que a vida permita aos meus amigos/irmãos continuarem juntos enquanto souberem e puderem dar-se as mãos com a mesma ternura.  




sábado, setembro 07, 2013

SEGREDOS



Não se admirem de eu estar vivo,
esclareço: estou sobrevivo.
Viver, propriamente, não vivi
senão em projecto. Adiamento.
Calendário do ano próximo.
Jamais percebi estar vivendo
quando em volta viviam quantos! Quanto.
Alguma vez os invejei. Outras, sentia 
pena de tanta vida que se exauria no viver
enquanto o não viver, o sobreviver
duravam, perdurando.
E me punha a um canto à espera,
contraditória e simplesmente, 
de chegar a hora de também 
viver.

Não chegou. Digo que não. Tudo foram ensaios,
testes, ilustrações. A verdadeira vida
Sorria longe, indecifrável.

Carlos Drumond de Andrade


Já não se pode ter segredos nos tempos que correm.

Não há lugar para segredos depois do Wikileaks, do Twitter, do Facebook. 

Não há lugar para segredos e é pena. É que a vida sem segredos não tem o mesmo sabor, não se vive com a mesma intensidade, perde simplesmente o interesse. Ou apenas tem outros interesses, interesses diferentes, mais interesses, interesses que ocupam, em vão, mais tempo do nosso pensamento. Estou a lembrar-me concretamente do tempo de uma gravidez. Vai um século e escondia-se a futura mãe dos olhares curiosos, há meio século a deformação do corpo era olhada como natural, o tempo interior de espera contava-se por luas, tinha a lentidão do mês no controlo da saúde, os que o tinham. Agora conta-se por semanas, controla-se quase diariamente no fim, sabe-se o dia e a hora em que nasce, conhece-se o sexo, o peso, quem sabe a cor dos olhos.

É demasiada informação antes da vida. Não tarda, saberemos o dia da nossa morte - não terá a menor graça, nem para quem morre, nem para quem fica. 

É verdade que já nasci no outro século, ainda tenho alguma desculpa de me agarrar aos velhos costumes, mas reconheço que não há como dar a volta ao progresso que se impõe e paulatinamente destrói os meus sonhos mais bonitos. Já não há cartas para ler. Ir ao correio e abrir com uma chave pequenina (sempre a mais pequenina do molho de chaves de meu pai) a portinhola do apartado 41 e encontrar o mundo inteiro escondido naqueles tubos de papel carregados de letras e imagens, abrir um por um, é um prazer que se esgotou, que não posso transmitir à posteridade.  Já se me tornou familiar a expressão utilizada de "ir ao correio" para o acto de clicar ou simplesmente pressionar, com o dedo, um determinado endereço num qualquer écran de computador. Eu própria tenho dificuldade em escrever uma longa carta, à mão, para quela amiga do peito que recusa as novas tecnologias.

É incómodo tudo isto cá dentro. É assim como uma criança saber que o Pai Natal não existe.