segunda-feira, dezembro 29, 2008

Boas Entradas!

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho…

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.
Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria…[…]


Augusto Gil






E a noite fez-se. Mais uma igual a quase tantas nestes últimos mais de trinta anos.

O que são trinta anos numa vida a beirar os setenta? São aprendizagem, aprendizagens de amor e de raiva, de saudade e de dor pelos que deixaram de estar presentes porque já não voltam, de saudade e de esperança pelos que estão ausentes e esperamos que voltem.

Enquanto ainda somos nós.

O dia é igual a tantos outros mas a noite nunca é a mesma. Em cada ano há uma estrela mais, um fulgor a menos, são alegrias que mentem, são desamores que não se escondem, são pequenas ternuras felizes. Os velhos, cada vez mais velhos, os novos cada vez menos novos, aprendendo a vida, quantos bem longe da fogueira familiar onde o gato esquivo se achega sem temor.

Aqui não há neve, mas há frio e geada.

Mas o ano está no fim da rua e a Primavera logo ao virar da esquina.



Feliz Ano Novo!

quarta-feira, dezembro 24, 2008

Feliz Natal

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastouEsse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga


O sol corre baixo no alpendre, rasando o grelhador que espreita por entre os troncos das roseiras já sem folhas, braços esqueléticos oferecidos à geada das noites longas.
Assim manda o tempo de Natal, os dias curtos para dar de comer ao gado, para cuidar das couves para a Consoada, para os doces de abóbora e as filhós. O termómetro sobe e marca mais baixo a humidade; o casal idoso da casa defronte inicia o passeio curto, que permitem as suas pernas alquebradas pelo reumatismo de tantos invernos já contados. Na cidade, a preocupação é outra: as compras, os presentes, os enfeites para a árvore, as luzes, as bolas de cores brilhantes, as roupas para estrear.
As datas são o esteio dos homens na procura e marca da sua identidade. A Natividade, festejada em Dezembro ou Janeiro, celebra a família cristã e a dádiva, simples partilha do que cada um pode dispensar do que tem, sem ostentação. Os Reis Magos, porque reis, trouxeram ouro, incenso e mirra e à manjedoura; os pastores, ofertas humildes de mel e frutos para o Menino.
Este Natal aparece-me marcado por duas mulheres que interpretam o Natal à luz de uma tonalidade que me fere os olhos, tal a intensidade com que me chegou. Uma delas é senhora de um reino de fadas que resiste e persiste, tendo a seu serviço na casa quatro centenas de empregados. Passando uma imagem de rigor e respeito pela crise que assola o seu reino, esqueceu a necessidade de ajuda ao consumo interno e mandou que se comprassem as ofertas, para os seus estimados súbditos, na China, onde o trabalho de crianças possibilita a preservação da sua assinalável fortuna pessoal. A outra cumpre judiciosamente o seu dever na Magistratura num outro reino que é o nosso e retira o direito ao Natal em família a uma menina de seis anos, entregando-a sinistramente a um desconhecido.
Hoje vou ajudar a acender a fogueira. Vou ajudar a manter o fogo pela noite adentro. Vou escutar o que me diz a sabedoria das chamas.

Feliz Noite de Natal!

domingo, dezembro 14, 2008

Tempos diferentes


«Certas palavras podem dizer muitas coisas;

Certos olhares podem valer mais do que mil palavras;

Certos momentos nos fazem esquecer que existe um mundo lá fora;

Certos gestos, parecem sinais guiando-nos pelo caminho;

Certos toques parecem estremecer todo nosso coração;

Certos detalhes nos dão certeza de que existem pessoas especiais...»


Vinícius de Moraes



É o Inverno a chegar devagarinho cá dentro, a entrar de manso nas frestas de um sorriso que se apaga em dor, das dores mais ternas que a saudade vai abrindo. Nem só do que é real, tão só a realidade de um azul que não existe quando aparece entre as nuvens que por breve tempo deixam o ar menos severo, aquele azul que me ensinaram a dizer azul e que eu sei que não é cor alguma, é apenas o que parece. Ainda assim a chuva cai e lava os telhados, bate nos vidros e eu queria que tombasse sobre mim como naquelas praias quentes deixadas longe. Naquelas latitudes onde a natureza é mais forte do que nós e desgasta mais.

Eu gosto do clima europeu. Das estações que se sucedem regularmente a espaços curtos, que nos deixam respirar e ter esperança porque breve outra se acende sem nos esgotar de sequidão. Sem nos queimar de raios, sem nos afogar em lamas, sem nos arrastar em torrentes. Tudo é mais leve e mais sereno, o frio já nem sinto, o vento sopra mas não levanto voo, o sol brilha e aquece o que sobra de alento, as manchas escurecem nas mãos, derrama-se o espanto no silêncio das horas.

As horas mansas que o tempo do Advento dantes enchia de figos secos as mãos, a boca, os bolsos. O tempo das rabanadas e dos sonhos escorrendo de calda de açúcar e canela, o tempo dos cheiros, dos contos, dos desejos, dos sentidos sentindo.

Agora um sabor a amargo, a fé do rito a cumprir, nem som, nem músicas. A esperança está na fogueira alta, frente ao lagar que foi, do moinho da azenha que já não mói o trigo nem descasca o cereal dos arrozais que nunca conheci. O fogo que atrai na voracidade com que se alimenta, que se jorra em luz, se desfaz em cinzas que guardam as histórias secretas de cada um de nós.

Nasci da água, sou terra chã, vivo do ar e ainda hei-de fazer-me em fogo.

sexta-feira, dezembro 05, 2008

Abrir a Janela

Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;
É um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.

Alberto Caeiro


O meu rio cá dentro nem sempre tem o caudal necessário para que a corrente deslize naturalmente por lugares quietos ou mais acidentados. Simplesmente a água esvai-se, a terra absorve-a toda. Depois é preciso que chova torrencialmente, dias a fio, porque entretanto uma represa surgiu e é preciso mais força para derrubar o dique.

Nem seria necessário dizê-lo, parece que tudo chove e se desfaz em humidade que persiste entranhando-se nos livros antigos, cobrindo de bolor as luvas guardadas há anos na caixa antiga, roendo os ossos dos velhos. No paredão antigo de pedra, o musgo aparece alto, a despertar os tempos de menino, no seu encalço para enfeitar o presépio, lá onde o sol em Dezembro não dá alimento ao musgo. Lá onde se corriam as cortinas para cumprir os rituais desajustados do longe, construindo a manjedoura que não havia, porque o gado dormia em cercados abertos pela manhã para o pasto livre nos campos. Lá onde deveria deitar-se o menino deus pretinho e nu sobre a relva fresca, à sombra duma mulemba, duma acácia ou duma cazuarina, sem burro e sem vaca.

O lá não existe, nem aqui, nem lá. Chove em toda a parte e perdeu-se o azul, desvaneceram-se as cores do arco-íris do cinzento carregado de chuva, a névoa instalou-se e cai granizo agora. Ouço-o, batendo nos vidros. Vejo-me na rua a olhar as mãos cheias de pedrinhas brancas, metendo-as à boca, sorvete prenda do céu raríssima. Vem um sorriso cá dentro, do tamanho da menina. Da janela olho então o branco salpicando a relva e ornamentando a preceito o cascalho escuro onde o melro proletário, o bom trabalhador, virá pela manhã cumprir a sua tarefa.

Quero só lembrar que a janela está fechada e tem um vidro. Duplo, dizem. Mas não tenho a certeza de que seja verdade, que seja vidro, sequer.

sábado, novembro 29, 2008

Tragédia anunciada

Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós meu bem
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’esperar bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Juan Roiz de Castell-Branco


Nuvens acasteladas em gradações de cinza caminham do horizonte ameaçando abrir o céu em cordas de água. Olho ainda a pureza do infinito que me cobre, para encontrar algum sinal. Mas o azul não responde.

Percorro o espaço vazio onde me habituei a ver, primaveras adentro, o verde frondoso das magnólias centenárias manchado ostensivamente de branco, pétalas imaculadas, desmanchadas, olorosas. Subo os degraus de pedra, deformadas pelo uso, pelo tempo, passo a soleira da porta de madeira enegrecida e caminho devagar pela nave altíssima, silenciosa e fria, as ogivas sucedendo-se no alto, esmagando tudo o que sou, despojando-me de todos os preconceitos, todos os temores, todas as solidões.

Apago do olhar os poucos ícones religiosos, não vejo os bancos corridos de madeira vazios, sigo as colunas de pedra lisa até às gárgulas, e os olhos são atraídos pela pedra rendilhada que ornamenta a porta escondida para lá do altar. Antes, no transepto, os túmulos e as rosáceas escrevendo a História.

A fé que alimenta os homens na construção de monumentos ímpares de grandeza, hoje propriedade do mundo global, a fé que conduz os homens em epopeias temerosas arrostando os mares então desconhecidos, a fé que consagra os mais altos desígnios de abnegação e altruísmo, a mesma fé os une, para inenarráveis violências que arrasam corpos e os espíritos dos homens de bem.

A prece tem sempre lugar, mesmo quando se não professa religião alguma.

segunda-feira, novembro 17, 2008

Politicamente incorrecto



«Dar 80 euros a um idoso é um ultraje, é um insulto, em vez de dar os serviços que eles precisam, seja o apoio domiciliário, seja o lar e centro de dia, seja a residência. Isso é que eles precisam. Não precisam de 80 euros para irem beber cervejas, para irem comer doces (porque são diabéticos e ficam doentes), para serem roubados pelos filhos…»
Mª José Nogueira Pinto

Decerto parecem duras as palavras ditas/ouvidas/lidas por alguém que é representante político neste país. Não importa se é de um partido ou de outro, se é homem ou mulher. As palavras caem dentro de nós com a verdade que lhes assiste em toda a linha.

O novo século que emerge com a globalização tem de aferir também os políticos, nem só de direita ou de esquerda, mas antes pelos seus ideais de liberdade e de igualdade entre os homens, sem discriminações. Seguir-se o ideal cristão é muito mais forte do que ser-se católico romano ou anglicano, luterano, calvinista, sei lá quantos outros credos se instalaram como senhores da verdade por aí. Afinal, antes de ser-se Cristão, procuremos os ideais de humanidade entre Judeus, Cristãos ou Islâmicos. E há os outros, Budistas, Induístas, Confucionistas, cito nomes porque sei pouco, sei o suficiente. Sei que todos pregam o Amor, o Respeito, a Tolerância entre os Homens.

As verdades vão sendo ditas por vozes diferentes e respeitáveis da nossa sociedade também sobre a ESCOLA. A Escola que todos referem como responsável pelas mulheres e homens que serão os líderes do amanhã. A Escola a quem todos assacam responsabilidades. A Escola sobre quem todos têm uma palavra a dizer - eu já não tenho, porque ela para mim foi um lugar de afectos e essa Escola já não tem lugar. Mas ainda bem que se fala sobre ela, independentemente dos juízos sobre a mesma.

Sei o que é ter ideais de Educação, ideais de Democracia que não passam apenas por «eleições livres». É preciso entender que a Democracia funciona bem quando todos têm os mesmos valores dentro de si, o que designo aqui por Respeito e Educação, frente e verso da mesma folha.

A nossa Ministra da Educação passou pela Escola e não aprendeu o que é a Democracia. Não lhe ensinaram ou ela não compreendeu porque estava distraída. Ela devia ter aprendido que as regras ditadas pela democracia devem ser respeitadas em função da maioria. Têm de ser observadas com rigor, mas antes discutidas com seriedade, independentemente do desagrado de alguns. No final, pode não ter-se votado a favor, mas há que respeitar a decisão da maioria. O nosso governo é uma democracia - que eu saiba - não uma ditadura.

Como diria meu velho pai: com o látego as famílias dissolvem-se, não se consolidam.

quarta-feira, novembro 12, 2008

Caminhada

Chaves na mão, melena desgrenhada,
batendo o pé na casa, a mãe ordena
que o furtado colchão, fofo e de pena,
a filha o ponha ali ou a criada.

A filha, moça esbelta e aperaltada,
lhe diz co’a doce voz que o ar serena:
«Sumiu-se-lhe um colchão? É forte pena;
olhe não fique a casa arruinada…»

«Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Tu cuidas que, por ter pai embarcado,
já a mãe não tem mãos?» e, dizendo isto,

arremete-lhe à cara e ao penteado.
Eis senão quando (caso nunca visto!)
sai-lhe o colchão de dentro do toucado!...
Nicolau Tolentino


Os tempos mudaram e nós temos dificuldades na adaptação.

Dantes, as pessoas viviam menos, ou menos tempo jovens, direi melhor, menos tempo activas. As mudanças faziam-se mais pausadamente, quando as havia. Mais cedo se atingia a maioridade da vida em que nada mais se aprende, em que tudo é uma repetição do mesmo, com outros contornos, mas igual ao que já se conhecia. O que vinha de realmente novo era para os meninos, não cabia aos avós aprender. Estes eram fonte de conhecimento mas também livro fechado, arrumado quantas vezes na estante, coberto de pó e sem préstimo.

A juventude é a fuga às raízes em direcção ao sol, à vida que promete e nem sempre dá. A vida que se anuncia e nos faz desabrochar em rebentos novos e folhas largas que se oferecem à luz benfazeja, à chuva que reverdece e consola. Porém há o granizo, o gelo, a geada, o sincelo, há o vento suão que também queima.

E a polinização. E as flores que brotam frágeis, tão macias, tão olorosas. Elas fazem-se fruto e nós perdemos folhas. Mas o futuro? Reverdeja a cada primavera, cada vez mais lento, cada vez mais nodoso, mais seco, mais enrugado, mais retorcido.

Mas permanece. Ou vem uma tempestade que nos derruba ou esperamos pacientemente a queimada redentora que nos consome.

quinta-feira, novembro 06, 2008

O Dizer do Futuro

Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
A verdade e a não-verdade o ser e o vazio
E por isso na sua celebração a metáfora expande-se
Na liberdade de ser a ténue sabedoria
Desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
Ou desdizê-la não para o nosso olhar
Mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
E poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem […]

António Ramos Rosa


A chuva escorrendo na janela traz um brilho que se reflecte bem cá dentro.

Penso nas gotas que escorrem tão humildes, tão ternas, acariciando o vidro. Como elas se tornam poderosas se em bando, se chutadas pelos ventos, se anunciadas pela trovoada. Quando vem o sol, parecem lágrimas alegres brincando de diamantes, pequeníssimos brilhantes ou gemas preciosas, transparentes.

Sem cor ou reflectindo mil cores, assim me traz à lembrança a vitória recente do novo líder da América, quiçá do mundo. Queiramos ou não, está provado que o equilíbrio económico e social do planeta depende do comportamento de um homem só, senhor de vontades cujas deliberações alteram o curso das peças que compõem o xadrez que todos jogamos. O mundo e os americanos apoiaram sem reservas o homem que conseguiu manter-se acima das questões de somenos, que soube elevar-se pelas ideias que devem gerir a reconciliação dos homens, sem segregacionismos.

Do homem brilhante que parece ter recusado ofertas chorudas de emprego após Harvard, preferindo a defesa de direitos cívicos de minorias no seu país, os americanos esperam uma mudança de cariz sociológico; o resto do mundo pede-lhe que tenha a percepção do seu poder, dentro da humildade de carácter que parece sobressair do seu registo, aceitando a mão que lhe estendem os seus anteriores opositores, na resolução dos problemas actuais mais candentes. Que essa humildade faça aceitar as deliberações propostas para o equilíbrio do planeta, que o diálogo leve a que todos os países as respeitem e se respeitem.

Assim espero eu mais compreensão, mais justiça, menos violência, menos fome. Seja ele uma das gotas maiores e mais brilhantes que fazem a tempestade bater e lavar os vidros.

domingo, novembro 02, 2008

MULHER


Conheci uma mulher magnífica.


Percorreu a vida em sofrimento e revolta, porque dela não recebeu a possibilidade de concretização de todos os sonhos, embora lhe tenha proporcionado muito, do melhor e do pior. Foi uma mulher fascinante porque muito bela, de uma inteligência invulgar, utilizada para construir um mundo em seu redor que raramente correspondeu aos factos reais, nos pormenores mais insuspeitos. A existência nunca lhe deu tréguas, foi dura até ao fim. Viveu e espargiu quimeras, delineou fantasias, dramatizou factos e visões.


Terá sido a encarnação do romantismo porque viveu melancólica, assombrada pela doença que lhe ceifou afectos, pelo receio de perder o fruto que lhe coarctou anseios, depois de afrontada a família, estigmatizada por uma sociedade que lhe demarcou fronteiras – nascer no tempo certo faz toda a diferença e um século é muito tempo! – Urdiu assim uma teia para sobreviver, com paciência e denodo, em dor, em solidão e revolta. Lutadora, delimitou o seu espaço, apagou factos e alterou datas, rasurou a esperança do seu nome. Chorou, amou outra vez. Sofreu sempre. Fez de cada vivência um drama porque não sabia agir de outra forma.


O carinho guardou-o dentro de si ciosamente, sem o alardear. Era, porém, extremamente bondosa. Sabia dividir o que tinha, sentia as necessidades dos outros e colmatava-as como podia. Sabia ser doce e seduzir corações.


Os seus olhos fundos e tristes conquistaram até ao fim os que souberam amá-la. Quereria ter sido um deles. Não sei se o consegui.


Era a minha Mãe.



quinta-feira, outubro 16, 2008

O Futuro


«[...] Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe, e depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, (...), estende-lhe os braços, (...), lança-lhe os vestidos: aqui desprega, ali arruga, acolá reclama: e fica um homem perfeito, e talvez um santo, que se pode pôr no altar.»


Padre António Vieira



Esta não é decididamente a escola que eu gostaria de legar aos filhos novos.


Como no final dos impérios, o laxismo e a incúria produzem doutores por extenso que ficariam mal se ombreados com simples detentores da instrução primária de há um século, no que toca ao conhecimento da língua portuguesa que me é tão cara.


A oralidade reduz-se ao mínimo por falta de tempo até para refeições comuns nas casas de família, o contacto com os amigos faz-se por códigos através das novas tecnologias e até um sorriso – um sorriso! – se traduz em meio parêntesis e dois pontos.


Na escola de hoje não se ensina meninos, espera-se que eles aprendam. Esquecem porém os novos mestres que os meninos só vão querer ir aos ninhos, se antes virem os pássaros voando e alguém lhes anunciar que há passarinhos novos.


Por quatro décadas participei de aprendizagens em mais do que uma disciplina, ao longo de todo o ensino secundário. Os olhos abrem-se-me de espanto hoje, com crianças que, no terceiro ano de escolaridade, ainda não conhecem bem as letras depois do tê; alunos que têm, como leitura suplementar do sexto ano, um pequeno livro de menos de meia dúzia de contos, cada um dos quais com menos de meia dezena de páginas em letras garrafais. Quem se interessa por pesquisas na Web se não domina o código da escrita no início da puberdade, quando outros interesses despertam já, de acesso tão mais fácil para além da leitura e da escrita?


A escola pública que temos não dá ferramentas para a vida, no tempo certo. As Novas Oportunidades são úteis e devem ser facultadas a quem precisa e, principalmente, quer. Não é, não deve ser, não pode ser, para filhos de família a quem o pai paga (quatrocentos euros!) para ir à escola e tem o despautério de atirar ao rosto de quem o recebe o motivo por que faz o favor de estar ali , e altivamente acrescenta que é esse facto que lhe proporciona o emprego que tem – para que conste, professor licenciado, pago a recibo verde, a menos de dez euros a hora de trabalho, ilíquido. Não creio que muitos saibam que a escola pública não tem, actualmente, qualquer tipo de oferta para um adulto que queira iniciar uma língua estrangeira ou o que quer que seja, no domínio das Letras, das Artes ou das Ciências.


Não são só os professores que devem sair à rua. São os pais deste país. Os pais empobrecidos deste país que não podem pagar a escola privada, os pais que devem assumir as suas responsabilidades de progenitores e exigir uma escola que vá além de depósito de entretenimento e lazer. Estamos assim, por más razões, a empenhar o futuro.


terça-feira, outubro 14, 2008

PRÉMIO DARDOS



Informações sobre o Prémio Dardos:


Com o Prémio Dardos se reconhecem os valores que cada blogueiro emprega ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais, etc. que, em suma, demonstram sua criatividade através do pensamento vivo que está e permanece intacto entre suas letras, entre suas palavras. Esses selos foram criados com a intenção de promover a confraternização entre os blogueiros, uma forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à Web. Quem recebe o “Prémio Dardos” e o aceita deve seguir algumas regras:


1. - Exibir a distinta imagem;

2. - Linkar o blog pelo qual recebeu o prémio;

3. - Escolher quinze (15) outros blogs a que entregar o Prémio Dardos.




Hoje dei conta de ter recebido um prémio e é evidente que não me passaria pela cabeça recusar tão honrosa distinção, principalmente porque recebido em duplicado de duas pessoas que muito prezo e a quem atiro desde já o mesmo dardo. À Vida de Vidro e à M. eu agradeço a lembrança e sinto-me lisonjeada pela distinção, afinal uma prova de que criámos laços e encontrámos afinidades, para além de nos dar a certeza de que as nossas palavras e pensamentos encontram eco nestes espaços só aparentemente vazios.


O que me preocupa é a necessidade de encontrar o número de pessoas indicado, logo eu que disponibilizo tão pouco tempo para «navegar» tendo um número restrito de e-amigos. Poucos, mas decididamente importantes a quem devo aquisições relevantes para o meu crescimento como pessoa, a quem dedico o maior apreço e consideração.

Muito obrigada pelo carinho, uma vez mais.


Vida de Vidro

Reflexões Caseiras

Desenhamento

Construpintar

Naturalíssima

Lord of Erewhon

Herético

Eremitério

=AM’art=

Daniel Lopes

Tinta Permanente

Quarteto de Alexandria

Bettips

Menarazzi

Alienígena




segunda-feira, outubro 13, 2008

Sentir



Quando ontem adormeci

Na noite de S. João

Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de Bengala

Vozes cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.


No meio da noite despertei

Não ouvi mais vozes nem risos

Apenas balões passavam errantes

Silenciosamente

Apenas de vez em quando…

o ruído de um bonde

cortava o silêncio

como um túnel.

Onde estavam os que há pouco

Dançavam

Cantavam

E riam

Ao pé das fogueiras acesas?


- Estavam todos dormindo

Estavam todos deitados

Dormindo

Profundamente.

Manuel Bandeira




As coisas exteriores aos homens não são importantes. Só a natureza humana interessa ao caminhar do mundo. Não é a riqueza, não é o título de nobreza, não é o estatuto social ou sequer o aspecto físico. Já deu para perceber que ser-se, sentir-se homem ou mulher, não depende dos órgãos exteriores que levam ao registo do sexo de um ser humano.


O que faz pulsar a humanidade é o que brama no cérebro de cada um, é a vontade, a força dos sentidos, as inquietações, os desejos. É a necessidade de ir mais além de si próprio, de quebrar os cânones, de vencer os obstáculos, de almejar o impossível. É a certeza de que a escalada se faz com determinação e ousadia, com firmeza e denodo, sem falhas. Com garra.


As ligações entre os homens não respeitam hoje as normas estabelecidas há séculos. As religiões foram – e ainda são – o sustentáculo da sociedade porque decretaram leis, instituíram regras, organizaram as relações entre as pessoas. Mas o homem reage como ser pensante, e de dentro dele brotam outros caminhos para que o respeito surja sem obrigações, sem medos, sem restrições, com a simplicidade da natureza em volta. Mas é preciso ter força e investir fundo nos sentimentos porque o caminho é longo e, sem voz, as montanhas calam-se.


Às vezes penso que o Homem caminha para a extinção porque adultera tudo.




terça-feira, outubro 07, 2008

Livros


E me comovesse o amor como me comove
a morte dos que amei, eu viveria feliz. Observo
a figueira, a sombra dos muros, o jasmineiro,
em que ficou gravada a tua mão e deixo o dia

caminhar por entre veredas, caminhos perto do rio.
Se me comovessem os teus passos entre os outros,
os que se perdem nas ruas, os que abandonam
a casa e seguem o seu destino, eu saberia reconhecer

o sinal que ninguém encontra, o medo que ninguém
comove. Vejo-te regressar do deserto, atravessar
os templos, iluminar as varandas, chegar tarde.


Por isso não me procures, não me encontres,
não me deixes, não me conheças. Dá-me apenas
o pão, a palavra, as coisas possíveis. De longe.

Vínicius de Moraes



Há demasiados escritores. Demasiados livros publicados. Demasiadas pessoas a dizerem coisas em nome de outros. Demasiada informação e desinformação. Demasiadas árvores abatidas para o papel circular, demasiadas cópias, muita escrita além do necessário.

Num tempo a que procuro adaptar-me ainda a tanta coisa nova, há a fabulosa ferramenta da Web que diz tudo acerca de tudo, de muitas maneiras, que vai tendo cada vez mais bibliotecas inteiras ao dispor de todos, em todas as línguas, onde cada um de nós pode acrescentar sempre um ponto, abrir um pensamento. Eu nunca diria algo de novo, algo mais que já outros não tivessem dito, pensado, escrito.

Então para quê publicar um livro?

É uma questão que coloco a mim própria há muito, muito tempo – não se tem um filho só para nosso prazer, terá de ser para o prazer de o vermos ter prazer por o termos feito nascer. Ainda não encontrei resposta nem decerto a encontrarei porque é uma questão que ultrapassa a racionalidade como tantas outras do foro mais íntimo que só alguns – mesmo só alguns – conseguem exprimir por palavras. Só um Camus consegue mergulhar-se em nós e sentirmos cá dentro a pureza, a ingenuidade, a incredulidade de um assassino, condenado à morte por um crime, por crimes que (não) cometeu. Sem dolo.

Falta-me o tal golpe de asa, a imaginação, a invenção, a ferida que dilacera a alma e rasga os silêncios que se calam porque afinal pertenço aos oito por cento da população do planeta que tem obrigação de sentir-se feliz.

E ninguém escreve um livro de verdade quando é feliz.


sexta-feira, outubro 03, 2008

O que é ser Professor?

Pior do que a desactivação da economia, parece-me bem mais grave a «desactivação da acção» nas escolas. O que a seguir transcrevo dá uma ideia correcta (mas não completa) do caos que se instalou actualmente numa classe (já de si oriunda de educações diversas) em que vencer passou a ser sinónimo de empurrar o colega mais próximo para poder saltar o muro. É de tal monta o esforço feito para chegar à frente ou para tão só não sucumbir, que os alunos deixaram de ser o principal objectivo da presença na escola, já nem falo da sua aprendizagem que todos sabemos ser o menos importante.  


«…o português voltou à inércia e à passividade face às transformações inelutáveis que abalaram a sua existência como um destino. A esse estado de espírito acrescentou-se recentemente um processo de interiorização do novo modo de vida a que a modernização o vai condenando. Um grupo social tornou-se emblemático desta conjuntura: o dos professores.
A sua situação não mudou. Justificaria ainda a saída à rua de 100 mil pessoas. Mas, precisamente, uma tal manifestação seria hoje impensável. O Governo e a ME ganharam. Os espíritos estão parcialmente domados. Quebrou-se-lhe a espinha, juntando ao desespero anterior, um desespero maior. O ambiente das escolas é agora de ansiedade, com a corrida ao cumprimento das centenas de regulamentações que desabam todos os dias do Ministério para os docentes lerem, interpretarem e aplicarem. Uma burocracia inimaginável, que devora as horas dos professores, em aflição constante para conciliar com uma vida privada cada vez mais residual e mesmo com a preparação das lições, em desnorte com as novas normas (tal professor de filosofia a dar aulas de «baby sitting» em cursos profissionalizantes) – tudo isso sob a ameaça da despromoção e do resultado da avaliação que pode terminar no desemprego.

[…] No processo de domesticação da sociedade, a teimosia do primeiro-ministro e da sua ministra da Educação representam muito mais do que simples traços psicológicos. São técnicas terríveis de dominação, de castração e de esmagamento, e de fabricação de subjectividades obedientes. Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz, “a desactivação da acção”. É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos psicóticos.»

José Gil in «Visão»


terça-feira, setembro 30, 2008

Antes do Tempo

 
Então, muito ao longe, uma vermelhidão tenuíssima foi avultando pouco a pouco, derramando-se pelo horizonte e repintando a abóbada imensa dos Céus.
Depois, esse clarão sinistro reverberou na terra: as cimas agudas, dentadas, tortuosas, alvacentas das fragas marinhas tinham-se abatido e nivelado, como os cerros informes de neve amontoada, que, derretidos nos primeiros dias de Estio, vão, despenhando-se, formar um lago chão e morto na caldeira mais funda de vale fechado.
Tudo a meus pés era um plano uniforme, ermo, afogueado, como a atmosfera que pesava em cima dele: e, além, jazia o cadáver do mar.
Eu, o silêncio e a solidão éramos quem estava aí.

Alexandre Herculano


Como por encanto, pousei um destes dias algumas, muitas, décadas atrás, no tempo em que eu ainda não tinha lugar para memórias. Retomo assim o sentido das referências que alicerçam a vida de cada um de nós.

A minha ligação a meu pai construiu-se das memórias dele, homem solitário, de fortes vínculos à terra e à família que deixara para sempre, distantes no espaço, depois no tempo. Na minha infância pausada, os fins de tarde na fazenda, o tempo do Natal, trazia as memórias de sua casa, dos doces de abóbora – os bilharacos –, do vinho deixado na Consoada sobre a mesa para lembrar os que partiram e eu não conheci, dos folares com ovos vermelhos na Páscoa, as histórias repetidas dos primeiros anos de África no início do século.

Os nomes dos familiares ficaram ligados às fotografias, poucas, esmaecidas pelo tempo, mantidas guardadas numa carteira a que só tarde tive acesso. Provas da vida que era quando nasci, agora retomada neste encontro familiar, com fios ligados, os nós que nunca havia desatado.

O caminho é cada vez mais em declive e afloram em mim, em nós, todas as imperfeições, como no fim da estrada alcatroada o caminho ainda afeiçoado, as valetas limpas, as bermas cuidadas, depois o asfalto esburacado, por fim o caminho de terra batida, as pedras saltando, a chuva abrindo leitos.

Porém em horas de solidão, se olhar para trás, a paisagem, as cores do arco-íris, as nuvens plúmbeas também, ainda permanecem.


terça-feira, setembro 23, 2008

Referências

O branco dos livros aviva-se extraordinariamente, tem o deslumbramento de uma cal intensa, de um leite fresco iluminado por dentro. Mil vezes eu já vi esta iluminação de vertigem e já a terei anotado. Mas ela tem em si um milagre bastante para ser sempre pela primeira vez. E tudo o que se sente nunca se aprendeu de cor como uma ideia que se teve. A vida é tão extraordinária em tudo quanto a revela. Perdemos tanto tempo a saber tanta coisa e o mais simples é tão cheio de infinito. A nossa mente e o nosso olhar estão obstruídos por uma massa espessa de um saber secundário. Olhar apenas, olhar. O que é simples é que é complexo, de uma complexidade onde cabe o universo.

Vergílio Ferreira


Nem há domingo sem sol e ele chegou vibrante, depois da chuva, deixando aquela luz de fim de dia que borda a ouro as pétalas envelhecidas já cor de sépia e se infiltra nas parras afagando os cachos orvalhados que pendem maduros e oferecidos.
A beleza acontece em cada momento nosso, consoante outros momentos de outros seres que se conjugam para proporcionar um instante de luz. Quase sempre um acto solitário e tem um travo doloroso. Se tem o condão de ser partilhado, é um deslumbramento.
Mas a verdade da beleza tem o valor de qualquer verdade: tarde ou cedo se acende outro foco de luz a pôr em causa o perfil desenhado na caverna. Este pensar é corroborado de forma perfeita num daqueles documentos, de autor desconhecido, que circulam no espaço Web. Limita-se a referir, de forma muito sucinta, máximas dos cinco Judeus que mais mudaram o mundo: Moisés – a lei é tudo; Jesus – o amor é tudo; Marx – o capital é tudo; Freud – o sexo é tudo. Einstein não contesta qualquer dos temas, porém a todos arrasa de uma cegada: o «tudo» é relativo. 
São as referências que constroem, que suportam a beleza e a verdade em cada um de nós. Se falham as referências quebra-se o equilíbrio e há que repor tudo de novo. Nem sempre é fácil.
O mar da ilha de Luanda, da restinga do Lobito, da praia morena de Benguela; os rios, a travessia em jangada do Kunene, do Zambeze, do Lucala; o Kuando, o Keve, as lagoas, a vala. A nascente. As águas quentes do Lubiri, a Ilha dos Amores no Kuito. O verde intenso da vegetação dos trópicos, os tons de areia e de barro, da praia, da anhara e do capim seco, o negro das queimadas, o cinza das tempestades. Mas o arco-íris.
Um dia o fulgor de um Van Gogh.


terça-feira, setembro 16, 2008

Contexto


Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna

salina, imagem fechada em sua força e pungência.

E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado

em torno das violas, a morte que não beijo,

a erva incendiada que se derramana íntima noite

- e o que se perde de ti, minha voz o renova

num estilo de prata viva.

Herberto Helder




Quantas vezes brota em mim a sensação de ser tão só uma parte humilde da natureza!
A chegada do Outono ou da Primavera mexe comigo de todas as formas. Controversas, estranhas, não pensadas, não lidas, sentidas. O Verão ou o Inverno situam-se apenas no gosto, não gosto. Mas o Outono chega e as madrugadas quietas incomodam-me pelo silêncio que escuto quando passa um carro, depois outro, na estrada perto. Apaga-se por momentos o ruído ao longe e a quietude permanece. Olho para trás no tempo e não me recordo de terem sumido completamente os pardais pelas redondezas. Pela tardinha, ontem, o pisco fez-me vénias no telheiro vizinho, quem sabe agradecendo os grãos de arroz que permanecem no muro, as migalhas trincadas da comida do cachorro.
Apeteço-me a lareira a quebrar as solidões, faz falta um gato, dois gatos, enrolados juntos no cesto das lãs. Recorro aos fios, às linhas, aos linhos, mas a vontade foi-se com os pardais. Até rareiam os corvos na estrada em seu labor competente na recolha de animais atropelados, abandonados, assustados. Entristeço, definho com os dias, em cada dia. Pergunto-me se devo morrer num cinzento outonal como meu pai, como meu irmão, como é natural fenecer a natureza inteira. Ou se, como minha mãe, devo deixar a vida quando ela renasce, resplandece de força – por que morreste na Primavera, Mãe? – Quando os dias acendem mais cedo e antes da luz os ninhos abrem em chilreios e o galo canta, o cão ladra, ao longe?
Decididamente vou escolher o Outono tranquilo e sereno, como deve ser a morte, com as lágrimas da chuva a preencherem as saudades que deixo em cada pulsar de vida. A chuva a levar as cinzas. A atravessar com elas o oceano até ao lago gelado dum continente, depois voltar e descer a outro, subir finalmente o meu rio e repousar naquele diamante que permanece à minha espera.


quinta-feira, setembro 11, 2008

A propósito de uma crónica, hoje



Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,

Alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,

Em que todos se debruçavam

Na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.


Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes

E roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.

Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava

Que rebentava daquelas páginas.

Carlos Drummond de Andrade




Rendo-me completamente às palavras de António Lobo Antunes.

Cada vez mais ele perde o pudor de dizer que ama e isso é de uma beleza sem limites.

Dá a volta e enrola e diz e repete e reitera o que eu já antes tinha lido sobre a sua ligação ao irmão que se lhe seguiu. Aquele irmão que continuou a exercer a medicina com dedicação, com dignidade, com proficiência, aquele irmão que também é escritor, que também tem uns olhos azuis que afagam só de nos olhar, aquele irmão só seu que ninguém mais tem. Nem os outros irmãos. Este é só dele, António. Deve ser aquela outra parte de si que ele não foi capaz de cumprir porque, além de digno, era também nobre e solidário e não foi capaz de lidar com o tormento que sentia na carne quando procurava sanear o sofrimento dos outros.

Foi essa dor que moldou a mão deste grande escritor, um sofrimento calado na infância, revoltado na adolescência e gritado a um tempo em renúncia e entrega, vertidas ambas na profundidade e beleza de sua escrita. Foi a certeza da estima dos que o lêem e admiram que lhe deram força para vencer a doença que o minava, foi a estima dos que o ajudaram a debelar a doença que lhe deu força para verter os seus sentimentos sem rebuço, justificando os humores, confessando as dores, dizendo os amores.

Uma das crónicas mais tocantes que li deste autor reportava-se à morte de seu pai. Palavras doridas, doloridas, dolorosas, palavras de espanto por sentir o peso de ocupar agora o lugar que fora de seu pai à mesa. Palavras de infinita solidão. De franqueza: «amava-o?» De saudade, já.

«Não pense que me esqueço. Não esqueço. Paizinho».




quinta-feira, setembro 04, 2008

Jardim de Palavras




Eu gosto muito de flores.

De todas as flores, da orquídea à urze. E o que nelas mais me seduz é a cor, sobretudo. As cores, a textura, o brilho, o bordado delas. Como elas afrontam o sol, como elas se entregam. Como elas se escondem, se protegem dele, algumas enrolando as pétalas na hora de maior calor, outras fechando-as pela noite, dando os bons dias logo ao primeiro sorrir do senhor da luz.

Minha mãe passava horas do seu dia plantando, regando, cortando, limpando as folhas. Tinha dedo verde, tudo o que plantava, pegava, crescia, floria. Aliás, gozava duma intimidade com as flores que ia além da razão. Comigo nunca funcionou: sempre que pretendi ler delas uma mensagem, não anunciaram o que interpretei, e assim desisti. Também não gosto de mexer na terra, senti-la secar nos dedos; incomoda-me, tal como a farinha, é uma sensação desagradável.

Mas a magia das flores permanece e surge em flashes no meu pensamento agora.

Os cosmos em volta da casa nova, antes das novas construções. Os canteiros de gipsofila do quintal, das gerberas, as selhas dos craveiros, as buganvílias ao longo do ferro forjado no muro. A exposição anual de dálias na minha cidade. A época das «bonecas», recolhidas na caça às perdizes, flores cor de terra, de corola em bola redonda constituída por pétalas longas e compridas como cabelos. A profusão de plantas na varanda larga da fazenda, as sardinheiras, a trepadeira de «gaitinhas» que o Rui Pestana me fez reencontrar. A minha primeira chegada à Ilha da Madeira – nos Idos sessenta – o esplendor das coroas olhando-nos em cada recanto da estrada no meio do verde, as estrelícias como pássaros em voo quieto no alto da Ilha. E as rosas do jardim, lá e aqui.

As palavras também são flores.

Flores que sempre admirei e que agora, com mais tempo, também vou semeando, nem sempre sozinha. E os jardins se fazem com elas, plantas verdes, árvores, flores mais singelas, pedras e água correndo. Assim, plantando o que temos – 12 sementes apenas – cresceu no Eremitério o nosso primeiro jardim. E porque cresceu bonito, vamos apresentá-lo a todos, vaidosos que estamos, no próximo dia 22 de Novembro às 16:00 horas, no Palacete Balsemão, à Praça Carlos Alberto, no Porto.

Ei-lo:




domingo, agosto 31, 2008

Culturas


Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra

Não tenho a a sabedoria do mel ou a do vinho.

De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.

A minha tristeza é a da sede e a da chama.

Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.

O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.

Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.

Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.

Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.

Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.

Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.

Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


António Ramos Rosa