sexta-feira, setembro 25, 2009

Leite derramado


O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:

- Antónia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.

A moça olhou de lado e esperou.

- Você sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

A moça se lembrava:

- A gente fica olhando…

A meninice brincou nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu com muita doçura:

- Antónia, você parece uma lagarta listada.

Manuel Bandeira



Um corte na diacronia do tempo do crescimento que os grandes poetas sabem registar com precisão e singeleza.


Há as lagartas listadas e as lisas, aquelas todas verdes que se confundem com os vegetais que comem incansavelmente, e também são castiças. Mas as lagartas listadas lembram-me os bichos-da-seda, nem as identifico como simples lagartas. Começam pequeníssimas e negras desaparecendo atrás das folhas de amoreira, e de repente surgem fascinantes, coleantes, riscadas de negro. Depois é esperar que desatem a esconder-se entre os fios preciosos com que constroem os seus esconderijos até despontarem em insecto perfeito, nem sempre bonito, mas sempre fascinante como o culminar de um processo – estranho, no mínimo.


Tudo isto para voltar ao tema do meu post anterior. Eu, que fui professora (de Português também, imagine-se!), sinto-me descompensada, quando vejo a geração - que me passou pelas mãos por largas décadas - gerar filhos quase analfabetos e seguir em frente mergulhada em iliteracia. Talvez deva sentir-me culpada, à luz da moral judaico-cristã em que cresci; ou baste sentir-me bem com a consciência, por me ter empenhado até ao limite, pelos muitos outros que ajudei a crescer e honram hoje a Língua Portuguesa que me é tão cara.


O que me leva a dar o benefício da dúvida às Novas Oportunidades é um pouco o que me faz concordar com o novo Acordo Ortográfico. Para grandes males, grandes remédios. Parar é morrer ,e o mundo lusófono tem de unir-se para fazer frente ao mundo anglófono e hispânico, principalmente, sob pena de soçobrar como vem acontecendo já à francofonia, onde bebemos tanto da nossa cultura literária (e não só). As Novas Oportunidades não ensinam a ler ou a escrever, mas não parece que seja importante - como deixou de ser importante decorar a tabuada ou qualquer poema de Augusto Gil ou João de Deus. Nem tarda que as crianças deixem de usar a caneta – está aí o Magalhães! – pois só lhes é pedido que identifiquem a imagem da letra e carreguem numa tecla. Mais breve ainda, como os telemóveis já o fazem, carregando na primeira letra, o computador vai adivinhando, propõe, a palavra que se quer escrever. Resta-me esperar que as Novas Oportunidades despertem cada um para a necessidade de aprender, de se esforçar, de se cultivar, de usar as novas tecnologias para melhorar a sua vida e o seu bem-estar. Que alerte para a enorme responsabilidade de participar na res publica.


A Revolução dos Cravos falhou numa coisa importantíssima: quis acabar com os estratos sociais unificando a Educação. Só conseguiu afundar ainda mais o fosso que separa a nova elite dos «outros». Cumpre-nos agora ficar do lado desses «outros» e mostrar-lhes as pontes, as saídas possíveis. Para que não morram crisálidas e possam voar borboletas.


Fernando Pessoa, logo a seguir a dizer aquela frase tão badalada que me escuso aqui de repetir, acrescentou: «Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.»


Eu vou sentir Pessoa até ao fim dos meus dias.



sexta-feira, setembro 18, 2009

Pensar Portugal


«Há já longos anos que eu lancei esta fórmula: – Portugal é um país traduzido do francês em vernáculo. A secura, a impaciência com que ela foi acolhida, provou-me irrecusavelmente que a minha fórmula era subtil, exacta, e se colava à realidade como uma pelica. E para lhe manter a superioridade preciosa da exactidão, fui bem depressa forçado a alterá-la de acordo com a observação e a experiência. E de novo a lancei assim aperfeiçoada: – Portugal é um país traduzido do francês em calão. E desta vez a minha fórmula foi acolhida com simpatia, com rebuliço, e rolou de mão em mão como uma moeda de ouro bem cunhada e rutilante, que é agradável mostrar, fazer tinir sobre o mármore dos botequins.»

Eça de Queirós



Eça de Queirós, visto por Bordalo Pinheiro


«E a senhora, em quem vai votar?»


À ingenuidade desta pergunta, ocorreram-me pensamentos sugeridos pelo livro que tinha entre mãos. Felizmente, Portugal tem actualmente os seus pensadores, os que escrevem em português vernáculo, verbalizam inquietações, porventura sugerem caminhos de futuro. Não é sem tempo nem são de mais. Porém, todos sabemos que nós não somos um povo de intelectuais, e muitos dos que assim se rotulam, sofrem também de iliteracia.


Assim, para que Elogios, Contratos, Recados, possam chegar ao povo, tinir como uma moeda de ouro sobre o mármore dos botequins, é preciso que o vernáculo seja traduzido em calão. É que o povo vive nas ruas e nas feiras, nos lares de terceira idade, à porta das fábricas em greve, nos bares da noite e nos centros comerciais, nas filas dos centros de emprego, nos centros de formação, conduz carros de marca importados em segunda mão, goza férias no estrangeiro a prestações de cartão de crédito. Enche os hospitais com uma gripe que não é, corre aos centros de saúde para que lhe prescrevam os ansiolíticos de que não necessita.


Pois faça-se passar o recado por telemóvel – leia-se: em calão. Há que chegar ao povo que vai votar sem saber em quê, em quem, ou não vota porque nem sabe ler. Há que fazer sentir ao povo que a peste (não a gripe) está instalada (em Oran…) e não é só o médico – nem importa qual – que pode tratar dela. É a solidariedade, o trabalho, a dedicação, a tolerância, a união entre todos que pode salvar a cidade.


E ainda na sequência daquela interrogação, faço a mim própria a pergunta – certamente sem resposta, como a primeira – se os Centros de Novas Oportunidades não terão a função pedagógica de fazer despertar o sentido de responsabilidade pela evolução individual e participação social na exigência de um Portugal mais íntegro, se não será este o calão necessário para que se faça brilhar a moeda.


Para já, voto na JUSTIÇA.


domingo, setembro 13, 2009

Relâmpago

O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar 
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora 
engrandecido dentro do novo olhar.
Fiama Hasse Pais Brandão




Os momentos que precedem qualquer acontecimento importante, raramente são importantes.


Já os que lhe sucedem, transformam-se subitamente em horas desmesuradas, dobrando em número de minutos, os segundos crescendo no silêncio arrasador. Seja a dor sem palavras que os lábios não proferem para suster o soluço, para reter a secura no olhar, a espera para o passo cambaleante mais firme, os ouvidos já registando o som compassado do relógio batendo as horas, do pêndulo marcando os segundos; seja uma ventura infinita a traçar novo rumo, o espaço aberto a todas as divagações, paralisado na contagem do tempo, o ar parecendo o que é, o nada que os olhos vêem, o mundo inteiro embriagado nas órbitas, sem lugar para as pálpebras descerem a afastar o mar que os invade.


Outra vez a vida chamando, porque ainda não acabou de debitar os dias e as noites, porque a lua não pára de sorrir inteira ou jocosa curvar-se estreita e voltar-se, e recomeçar, indiferente às nuvens, rainha em paço de estrelas. É preciso seguir no esteio dos que nos precederam, cada um de nós percorrendo a sua passadeira vermelha, brilhando ainda que o peito estale de negrume onde apenas um pirilampo acende e apaga, longe dos holofotes devastadores.


É que atrás da pequeníssima luz intermitente há todo um misto de fantasia e dura realidade, nada inteiramente desconhecido, antes familiar e de aroma e gosto indizível a que não podemos fugir, como do sangue no dedo picado que levamos à boca.


domingo, setembro 06, 2009

Fim de tarde

– Jura-me que nunca hás-de envelhecer – disse-te.

– Juro.

– E que nunca hás-de morrer.

– Sim.

– Em que a beleza estará sempre contigo. E a glória. E a paz.

– Juro.

Então baixei-me ao rio e trouxe água nas mãos em concha. E derramei-ta na cabeça imensamente. E disse, e disse:

– Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.

Vergílio Ferreira




Um passo atrás do outro sobre a areia molhada na orla da praia sem conchas, pedaços de lama emergindo dela como seixos, mas que os pés sentem macios quando os esmagam e fazem deslizar sobre a areia.

A maré vazia abre o caminho das rochas que conduz à entrada da grande concha que forma a baía única e quieta, quem sabe assustada pelas sentinelas de betão erguidas em fila, fendendo e ofendendo um espaço deslumbrante.

Deste lado há a foz do rio que chega suave, como suave declina a tarde, o sol a esconder-se na duna alta, as gaivotas refrescando o corpo, espanejando-se nas águas libertas dos banhistas.

É morna ainda a areia solta que escorre da duna onde há crianças e jovens subindo e deslizando, deixando-se escorregar. Os grãos macios insinuam-se entre os dedos com volúpia e não há idade para deixar de sentir a terra.