segunda-feira, setembro 17, 2012

DESABAFO


- Então, não és judeu mas és português! – a informar que aos seus olhos, era  a mesma coisa. E logo a seguir explicou-me que era democrata a cem por cento, profundamente democrata, contra as ditaduras, contra as opressões. Mas nós latinos, curiosa opinião tantas vezes ouvida, preguiçosos e incapazes como somos, atrasados como andamos, desorganizados por natureza, tendendo só para as ocupações baixas do comer e do fornicar, a nossa salvação só podia vir dos governos fortes.
Ele, que tinha viajado, que estivera em Portugal, vira com os seus próprios olhos, de eu discordava era por teimosia, cegueira minha, mantinham-se lá algumas coisas excelentes do passado, muitas virtudes, o respeito dos trabalhadores pelos patrões. Lá não acontecia como aqui, onde qualquer borra-botas de carpinteiro, qualquer trolha de merda, só falava em ter direito, ter razão, e por um nada se queixava às autoridades e aos sindicatos.

J. Rentes de Carvalho in «Com os Holandeses»

 
Sensatez deve ser a palavra que mais corresponde a equilíbrio, se pudermos distinguir verdadeiramente a postura moral e a física. Num e noutro caso há sempre aquele ponto certo em que ir além do possível já será dar um passo irremediável.
Estou, naturalmente, a visualizar aquela imagem de alguém com uma vara enorme na mão, a avançar por uma corda sobre o abismo. Sem rede de protecção, qualquer falta de concentração, qualquer movimento em falso, é fatídico. Fala-se então da morte do artista.
Parece que o nosso governo se terá desconcentrado brevemente, mas ainda segura a vara. Os Portugueses sabem que estamos num lugar difícil e a vara ajuda ao equilíbrio. Mas uma coisa ficou clara: não há mesmo rede de protecção porque de todos os lados, dentro e fora do governo, dentro e fora dos partidos, todos desmancharam a rede de segurança, e ainda há mais corda para caminhar. Sobre o abismo.

Dos Portugueses, Com os Portugueses, haveria muito a dizer, haveria lugar para um livro, mais do que um certamente, dependendo da óptica do escritor. Muito se escreve pelos jornais e semanários e seria interessante só essa recolha para que nós, portugueses, pudéssemos olhar-nos do lado do espelho, para saber o que somos efectivamente. Porque está provado que somos gente de garra, gente que descobriu o mundo para os outros, gente que corre o mundo hoje como gente criativa, inventiva, trabalhadora, damos cartas lá fora (e cá dentro!) nas Artes, nas Ciências, somos um povo antigo, um povo com História.

Somos também um povo sereno, capaz de fazer uma revolução de flores, capaz de mostrar que tem dignidade nos momentos mais difíceis e sair à rua ordeiramente, civicamente, sem bandeiras de partidos, de sindicatos, só com a bandeira portuguesa unindo todas as classes. Nós merecemos mais do que aquilo que temos mas, assim o disse o nosso poeta maior do último século, «o mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão».

Vamos ter de conquistar a permanência na zona euro, para isso vamos ter de exigir dos nossos governantes seriedade e justiça, lembrar-lhes que os aposentados não estão a expensas do governo nem dos jovens trabalhadores, estão simplesmente no direito de receber aquilo que lhes foi descontado por décadas e depositado (obrigatoriamente) na mão do governo para garantia de uma velhice descansada; dizer-lhes que os nossos filhos têm direito a uma oportunidade de trabalho no país em que nasceram; dizer-lhes que é preciso respeitar todos por igual, independentemente da conta bancária ou filiação partidária. Isto significa cortar em linha recta nos direitos, nivelar e respeitar cada um pelo seu trabalho e dedicação à res publica. Não consigo descortinar onde reside a diferença, por exemplo, do funcionário público que tem assento no Parlamento e o médico ou o professor, qualquer deles com uma formação académica idêntica, e só um tem as benesses inacreditáveis que me eximo aqui de referir por sobejamente conhecidas e superiormente inadequadas.

Os povos que se pensam acima dos Portugueses na Europa não trabalham mais nem melhor do que nós. Eles apenas sabem exigir uma política de transparência na aplicação dos impostos que pagam e sabem que as decisões dos tribunais são para ser cumpridas. Parece pouco, mas é o bastante para assegurar a boa saúde de um país e a qualidade de vida dos seus cidadãos.

sábado, setembro 01, 2012

NA TERRA SONÂMBULA



Me ensinaram a apagar essa parte de mim, crenças que alimentaram nossas antigas raças. Agora, não é que acredite neles, nos espíritos. Sei que sou um deles, um espírito que vagueia em desordem por não saber a exacta fronteira que nos separa de vocês, os viventes. Nós somos sombras no teu mundo, tu jamais nos tinhas escutado. É porque vivemos do outro lado da terra, como o bicho que mora dentro do fruto. Tu estás do lado de fora da casca. Eu já te tinha visto desse outro lado, mas as tuas linhas eram de água, teu rosto era cacimbo. Fui eu que te trouxe, fui eu que te chamei. Quando queremos que vocês, os da luz, venham até nós, espetamos uma semente no tecto do mundo. Tu foste um que semeámos, nasceste da nossa vontade. Eu sabia que vinhas. Te esperava, Kindzu.
Mia Couto in «Terra Sonâmbula»

 
Mia Couto é, decididamente, um dos maiores escritores de língua portuguesa vivos. E não é que me delicie numa leitura fluida e suave onde eu mergulhe, esquecendo até o espaço em que leio, embalada por exemplo na sonoridade arrebatadora do ordenamento sintáctico de um Vieira, uma sinfonia de palavras, como lhe chamou Pessoa.

Nada disso. Não me esqueço em cada virar de página de que estou a ler o português de Mia Couto, as suas palavras inventadas, as palavras ditas de quem não andou na escola e aprendeu o português de ouvido, com falhas gramaticais de arrepiar os puristas da língua, com as trocas frequentes e repetidas dos lugares dos adjectivos, os pronomes desviados, trocados na sua função de complemento.

É francamente difícil ler a sua prosa. Já tinha antes lido outros escritos de Mia Couto sem grande entusiasmo, para além de apreciar os neologismos que ele colhia e grafava depois em letra de forma, num trabalho interessante de preservação da língua de união falada pelos nativos de Moçambique. Mas encontrei admirável esta «Terra Sonâmbula», porque o autor consegue, a exemplo de João Guimarães Rosa em «Grande Sertão: Veredas», construir uma personagem que se identifica totalmente com a terra a que pertence, sendo parte dela na condição, na procura, nas dúvidas, nas crenças, no linguajar, no desejo infinito e urgente de acabar com a guerra, transformando-se finalmente num dos anjos-guerreiros, os naparamas que trazem a paz.

«Eu me olhei, sem confiança. Mas o que em mim vi foi de dar surpresa, mesmo em sonho: porque em meus braços se exibiam lenços e enfeites. Minhas mãos seguravam uma zagaia. Me certifiquei: eu era um naparama!»

Um velho e um menino, o velho a guardar em si toda a sabedoria tentando preservar o menino, ocultando-lhe a proveniência de entre cadáveres, enterrado vivo - conselhos da experiência dos anos - mas a criança resgatada, renascida, tem a arma que o velho não possui: o dom de saber ler os escritos que encontra no que sobrou do velho maximbombo queimado pela guerra onde ambos vivem escondidos.

A leitura torna-se difícil porque se tropeça a cada passo com a troca do complemento directo pelo indirecto, que é comum aos angolanos e brasileiros menos escolarizados. Cito exemplos, mas esta é a linguagem recorrente em todo o livro:

Talvez eu lhe escute nesse momento
Então lhe ajudaram a sentar
Não volto a fazer sem lhe ouvir
Nenhum tiro lhes incomodava
Eu gostava de lhe visitar
Não lhe apresentavam à lua como fazem com todos os nascidos na sua terra.

O outro pormenor ao longo da obra é a colocação dos adjectivos antes do nome, a demonstrar a grande influência da expressão inglesa predominante em Moçambique. Não é que a língua portuguesa impeça de usar essa forma de expressão, mas aqui torna-se excessivo porquanto a sonoridade da língua portuguesa pede o nome antes do adjectivo, mormente quando este é mais longo que aquele:

Hienas perseguindo agonizantes gazelas
Nem barrigasse o barco no firme chão
Mesmo Assane se associava às oficiais suspeitas
Ele me fez um escondido sinal
Foi atirado para uma desconhecida praia
Estórias de embalar crianças do inteiro mundo

De todo o livro sobressai acima de tudo a justeza e a pertinência dos neologismos que enriquecem sobremaneira a língua que tanto prezo: o chão crivejado de casinhas de caranguejo; salpingaram-me gotas, por exemplo. E também uma suavidade de escrita que se estende até às últimas linhas e nos deixa nos olhos um sabor a poesia corroborando ao mesmo tempo toda a mensagem da obra de identificação total e glorificação da terra-mãe.

De sua mão tombam os cadernos. Movidas por um vento que nascia não do ar mas do próprio chão, as folhas se espalham pela estrada. Então, as letras, uma por uma, se vão convertendo em grãos de areia e, aos poucos, todos meus escritos se vão transformando em páginas de terra.