(…) Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
Ricardo Reis
Os amigos que comigo de mãos dadas saltaram décadas, estão todos velhos. Mergulhando já na idade dita terceira, vá lá saber-se a razão desse nome, quando me vejo eu própria, na primeira de muitas coisas. Não direi as mais importantes da vida, mas muito importantes. Impensáveis há uns tempos largos. Inusitadas.
Somos aquela geração que viveu a outra guerra fria, os mísseis ali em Cuba, a guerra colonial, fomos descolonizados, retornados poeticamente a uma terra que alguns nem sequer conheceram antes, inseridos, emigrados, unidos pela voz de um Portugal imenso, que não cabe neste rectângulo do mapa. Como não cabe no túmulo o grito de Camões «o dia em que nasci moura e pereça», como a voz de Pessoa não cabe nos Jerónimos.
Unidos pelas memórias. «A minha cabeça está cheia de recordações e hoje, vasculhando o meu missal, dei com esta coisa linda (um «santinho»), lembras-te? Qual a data? Creio em que no ano em que fui para o colégio em Sá da Bandeira e recebi-o com uma carta que a freira chamada “Camila” – que na altura superintendia a carneirada – depois de eu a ler, retirou-ma com a proibição de eu responder. Muitas lágrimas correram e eu sem entender nada. Como o mundo é e foi sempre MAU!» Desabafos, mágoas, intolerâncias. Revolta.
A idade não desarma a dureza da vida de que ela é um vírus mutante, mas amacia se conseguirmos ver e não só olhar, sentir que o mundo mudou e nós também temos de nos adaptar para sobreviver. Os mais de quarenta anos de vida em comum nem sempre é salvo-conduto para a felicidade quando os interesses divergem – se não divergiram sempre – pelas experiências não comungadas, pelos tombos mal digeridos, pelas recusas, pela fortaleza que cada um de nós cimenta nos cacimbos galgados.
Nem a natureza nos acolhe – pedras quebradas, nuvens que já não trazem chuva, alguns de nós erguidos ainda, altaneiros – cada vez mais dura, mais agreste, mais revoltada. Com os novos, com os velhos, com o micróbio humano, esse microrganismo impuro que a si próprio tira o alimento que mina a saúde do planeta, lhe suga o sangue e não repõe sustento. Somos aquela geração de gente que ainda grita contra a voracidade crescente de riqueza, que clama contra a violência e a fome que não teria razão de existir se os homens fossem humildes perante a natureza e os outros.
Se os homens não fossem realmente MAUS.