quarta-feira, fevereiro 15, 2012

Encontro



Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.

Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei
Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou (…)

Fernando Pessoa

  
Dentro do quarto, a meio da noite, a porta de entre salas rangeu de leve quando lhe toquei.

A porta girou nos gonzos e o espectáculo era simplesmente aterrador naquela gruta húmida e escura. Como as histórias de antigamente, dos livros de aventuras da adolescência, foram as palavras que me acudiram à ideia com um sorriso naquele castelo antigo onde pernoitei, no mesmo quarto - sete, o número mágico - onde Agatha Christie escreveu decerto largas páginas dos policiais mais famosos do século em que viveu. 

Fui desligar o aquecimento e abri a portada da janela, mas por baixo entrava um friozinho gelado que me fez fechá-la de novo, logo a seguir. Lá fora o vento soava com força sacudindo a folhagem das árvores que dobravam ondeantes. Estremeci ao pensar nos frades da Ordem dos Carmelitas Descalços que habitaram o convento ao lado, sem sombra de conforto, visíveis as lajes frias do chão, também os tectos cobertos de casca de sobreiro, como as portas baixas e as cruzes sobre cada uma delas. Ouvi o silêncio a que se votaram perante a voz da natureza forte, os cedros e araucárias por entre as espécies naturais, junto ao pavilhão de caça japoneiras frondosas, o chão atapetado de camélias, uma magnólia branca desafiando o azul.

Gostei de estar ali e sentir-me dentro do bosque sagrado que fascinou reis e príncipes de todas as artes ao longo dos tempos. Gostei de saborear o facto de saber que algures por perto, bem na serra do Bussaco, cresceram as minhas raízes do lado paterno, raízes que se afundam e de onde medram rebentos novos, aqui e além, raízes que secam encarquilhadas e belas junto ao carvalho secular.

Não tenho a certeza de voltar tão cedo ou alguma vez mais palmilhar a estrada ondulada que vai do Luso ao Vale da Mó, onde procurei em vão o solar antigo. Mas tenho a certeza de que me fez bem passar por ali, colher os pedaços da vida que o tempo levou.

quinta-feira, fevereiro 09, 2012

Esperança


Quero dos deuses só que me não lembrem.
Serei livre — sem dita nem desdita,
Como o vento que é a vida
Do ar que não é nada.
O ódio e o amor iguais nos buscam; ambos,
Cada um com seu modo, nos oprimem.

      A quem deuses concedem
      Nada, tem liberdade.
Ricardo Reis



Escutem, dizem os deuses. Aqueles deuses que Camões colocou ao nosso lado a soprar os ventos a favor das naus, a aplacar a consciência dos reis do Olimpo e os reis do Oriente, a conduzir os homens para recantos de prazer naquele empreendimento maior que nos encheu de glória, nos trouxe a riqueza, mas afundou nos mares impérvios a nossa força de alma.
 
Escutem, eles dizem. Mas como escutar se o martelo hidráulico fala mais alto, destrói o tecido já contaminado dos séculos de cansaço, levanta a poeira que sobe e rodopia e se entranha em cada estria, em cada ruga, destrói a visão e corta a respiração do corpo exausto. Como escutar se o ruído é tão intenso, se os deuses não se distinguem, como adivinhar os avatares de Zeus na noite sem lua que só as estrelas espreitam no seu piscar calado de testemunha distante, sem voz, sem presença corpórea para prestar juramento nos tribunais dos homens. Como provar a inocência se a transgressão deixou marcas, escreveu em pedra a vergonha que os dicionários deixaram de grafar, se o pecado se esconde nas vestes dos sacerdotes dos media, já não os que conduzem as almas mas os que violam os corpos e as mentes com o poder que a avidez e a ignorância fazem saltar para as primeiras páginas dos nossos dias desumanos.

Bem hajam os que acreditam, bem hajam os que lutam ainda pela verticalidade, com as defesas possíveis, sem outra arma para além da palavra, o livro de Eli grafado em Braille, gravado também na memória, para memória dos tempos, mesmo depois da catástrofe.