quinta-feira, abril 28, 2011

Realidade


Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas, ama as tuas rosas.
O resto é a sombra de árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos do que nós queremos.
Só nós somos sempre iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues. Ela nada pode
Dizer-te. A resposta está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo no teu coração.
Os deuses são deuses porque não se pensam.

           
Fernando Pessoa (Odes de Ricardo Reis



 


terça-feira, abril 19, 2011

Planar com os ventos

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos»

 
A chuva dedilha lá fora a toada da noite cansada das vergastadas do vento e da chuva, dos gritos saídos das nuvens em clarões de luz ecoando depois em golpes em ondas de sons que se desfazem e somem no espaço longe. Tudo o mais se aquieta e procura refúgio ao troar da natureza ameaçadora, sabendo que a fúria se apaga em ternura na chuva mansa a acariciar as folhas, a escorrer pelos caules, a sulcar a terra e a alimentar as fontes.

Quem dera que a alma humana bebesse o húmus desta certeza e perdesse o medo. Quem dera que nela a escuridão se tornasse dia, ainda que as tempestades se abatessem, que os trovões ribombassem, que os raios ferissem o olhar de assombro, temor que fosse. Mas breve, logo o coração batendo com força e depois mais lento e leve, leve como as gotas que pingam e reflectem já o sol em diamantes puríssimos de múltipla cor.

Mas o homem é um ser feroz porque a sociedade lhe cravou a marca da impureza e ele não consegue libertar-se. Também não quer. Ou talvez não queira. É mais fácil embebedar-se nos males do mundo cavando-os mais, afundar-se na droga para não ter medo do que não existe para além da sua imaginação, em vez de simplesmente planar aproveitando os ventos altos da escrita. As palavras bastam para aquietar as emoções, o bico passando a lavar, a alisar as penas na lagoa tranquila, as primaveras chegando em cada novo ciclo, em volta procriando, os novos seres abrindo.

Já cruzou o mundo, arrostou as tempestades e remou nas galés. Agora há outros navios e outros mareantes, deixemo-los velejar.

É tempo de olhar em volta, saber colher os frutos.
E que belos são!

quinta-feira, abril 14, 2011

As palavras e as rosas



Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim. Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo.. Construirei uma obra mais duradoira que o bronze, afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o inevitável destino da condição humana.

António Lobo Antunes in revista «Visão» 7/Abril


 Rendo-me incondicionalmente ao esplendor das rosas.

Para além da beleza, para além da pujança de cada planta a explodir em rebentos de folhas, de flores, gemas ainda verdes, depois divulgando a cor, abrindo em botão, o odor da rosa aberta e ainda por fim desmaiadas, as pétalas desprendidas, marcadas, queimadas pelo sol, a sedução permanece.

Como as palavras que se constroem em edifícios e se asseguram mais perenes que o bronze, é preciso que a condição humana não se altere na submissão à matéria, porque só o espírito pode manter vivos os imortais desta estirpe. O bronze nem é um metal puro, é uma liga baseada em dois metais macios que, ligados, fundem as cores e originam a força e a perenidade do bronze. Passam pelo fogo. As palavras passam pela educação do espírito.

É preciso que se escreva, e se escreva bem.

É preciso que se passe alguma mensagem, é preciso que se registe a História das gentes, muitas vezes é preciso que o tempo passe, como o fogo passou pelo estanho e pelo cobre, antes de ser bronze. Agora, é preciso que aqueles que fundem o bronze saibam construir com ele a estátua, e para saberem construí-la, é preciso que a conheçam bem, que lhe notem o gesto e o tom, que lhe conheçam os músculos e as rugas.

Então teremos uma estátua, uma catedral, e não importa que não esteja terminada. Gaudí deixou a catedral de pedra inacabada e não lhe tirou beleza, as capelas imperfeitas do Mosteiro de Santa Maria da Vitória não impedem de celebrar a Batalha.

terça-feira, abril 12, 2011

Um Inquieto Acontecer

Não é propriamente um romance, mas um longo testemunho, de quase quinhentas páginas, entre a crónica e o diário, sobre a guerra colonial. Embora muito bem escrito, por um pintor e excelente crítico de arte, Rocha de Sousa, falta-lhe talvez vibração e arte literária para ser o texto fundamental que poderia ser sobre a monstruosa e tão dramática aventura que tantos portugueses viveram e que os marcou para sempre. No entanto, está lá todo o essencial: a chegada das tropas a Luanda logo no início da guerra, em 1961, a escassez de tudo, o tempo do marasmo e o tempo do horror, os feridos e os mortos, a tortura dos guerrilheiros presos, o seu silêncio sobre o que não deviam dizer e o modo impressionante como tratavam por «meninos» os jovens oficiais milicianos da tropa portuguesa. Há a saudade da mulher amada, as histórias dos soldados, o medo das minas e os estropiados. Há a habituação a tudo, o desprezo pela retórica bélica do regime. Há o bom senso. Há neste livro uma honestidade absoluta.


Urbano Tavares Rodrigues, 1999

sobre «"Angola 61: Uma Crónica de Guerra ou a Visibilidade da Última Deriva»


Os dias sucedem-se amenos numa natureza quieta, a primavera enchendo tudo de verde e colorido, enquanto do outro lado do mundo a terra treme continuamente e os homens tentam em vão emendar os erros cometidos, erros que irão afectar todos nós, mais tarde ou mais cedo.

Mas por aqui a hora é de vésperas e não é justo sofrer por antecipação,
que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                (Enlacemos as mãos).

Vai ser lançado mais um livro de Rocha de Sousa, «Talvez Imagens e Gente de um Inquieto Acontecer», para mim a quinta obra sua lida, depois da que vem citada na abertura deste post, numa recensão de Urbano Tavares Rodrigues.

E porque estarei presente no lançamento e a bondade do autor e do editor me estenderam um tapete de responsabilidade, sinto agora aproximar-se uma leve inquietude na hora do acontecer.

sexta-feira, abril 01, 2011

A tarde chega devagar



Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios, a morte perder-se-ia.
António Ramos Rosa
 

 Por vezes os laços desenrolam-se, desmancham-se, desfazem-se, e dois fios pendem sem alma nem vida escurecidos do tempo, do pó, do abandono.

Quando são rudes e bem laçados, duram muito, muito tempo. Se de matéria mais fina, sedosos, desmancham-se mais precocemente, deslizam sem que se lhes toque, formam um nó e descem em fitas brilhantes, misturam-se aos tecidos leves que os rodeiam, embrulham-se neles mas resplendem no brilho da seda, tocam-se, brilham lado a lado, um mais longo outro mais curto, um mais acima outro mais abaixo, mas um nó cego os mantém juntos lá no alto.

Como os afectos ecoam pelos anos, laços desfeitos, vidas perdidas, lembranças vagas, esporádicas e um dia um clarão acende e afinal nos entendemos na mesma linguagem que um dia aprendemos na escola.

Eu vou continuar a olhar o pôr do sol atrás dos ulmeiros, dos eucaliptos altos, dos pinheiros que bordejam as praias ainda, vou ver o sol esconder-se no mar do Oeste sabendo que ele brilha ainda alto mais além, onde o coração mora, do outro lado do oceano. Vou continuar a sonhar as pedras da Ilha, imbondeiros de múcuas pendentes, cafezeiros vestidos de noiva ou de vinho, anharas secas e morros crescendo em direcção ao céu.

Afinal tudo muda sem apelo nem agravo, tudo gira e eu não comando. Só sei que o sol é o mesmo, o céu igual, mais azul, menos azul, e a luz cá dentro, cada vez mais mansa, a querer chegar à noite.