segunda-feira, janeiro 23, 2012

Sobressalto



Deuses secretos passeiam no território dos homens.
Tramam, destramam nossa realidade.
Os deuses ostentivos, nossos protectores,
tudo ignoram.
Neste momento, um deus perverso e anónimo
fustiga-me.
Rolo no ladrilho, contorço-me,
sem gritar.
Não tenho a quem dirigir
palavras de ira ofendida.
Sei que é um deus inominado.
Sei que passará,
e vou respirar, aliviado.


Carlos Drumond de Andrade


Pouco a pouco alongam-se as horas de luz pelas tardes serenas deste inverno sem chuva, geada pousando nas noites, ainda assim permitindo que os campos se abram já naquelas flores minúsculas que atapetam o chão com a cor do sol.

Chega-se o início do ano oriental mais chegado ao pulsar da natureza, às palpitações dela. Ano Novo cavalgando o Dragão, ser mitológico de que sentimos o odor aqui e além, de que já vimos o fogo a dar chama à luz que governa o nosso dia-a-dia moderno e dependente. Longe vão os candeeiros a petróleo, as candeias de azeite fazendo parte de uma história já não vivida, as tochas, a descoberta do fogo.

Que seja o ano do dragão auspicioso para nós como o vêem no Oriente, senhor das águas e da sabedoria, tudo o que nos vai faltando em Portugal. A sabedoria por exemplo de manter viva a Língua Portuguesa naquela livraria Camões, bem no centro histórico do Rio de Janeiro, aquela livraria de mais de quatro décadas que a Casa da Moeda decidiu encerrar em nome da crise.

Olho ainda Drumond e Camões a brotar-lhe dos dedos decerto antes ainda das máquinas a darem-lhe forma às letras, corridas, cursivas, inclinadas, delineadas em caligrafia, a debitarem no papel o que sopra de dentro:

«…Já tenho uma palavra pré-escrita
que tudo exprime quanto em mim se turva.
Pelos antigos e pelos vindouros,
foste discurso de geral amor.
Camões – oh som de vida ressoando
em cada tua sílaba fremente
de amor e guerra e sonho entrelaçados…»


 O que importa o acordo ortográfico, o que importa a grafia, o que importa a entoação, se esta língua nossa é tão vária mesmo dentro dos limites deste país tão pequeno. Eu queria que a Língua Portuguesa vivesse para sempre nos cinco continentes, enquanto o Homem conseguir sobreviver à sua própria destruição.

domingo, janeiro 08, 2012

As coisas dos homens

Passa uma borboleta por diante de mim
E pela primeira vez no Universo eu reparo
Que as borboletas não têm cor nem movimento,
Assim como as flores não têm perfume nem cor.
A cor é que tem cor nas asas da borboleta,
No movimento da borboleta o movimento é que se move,
O perfume é que tem perfume no perfume da flor.
A borboleta é apenas borboleta
E a flor é apenas flor.
Fernando Pessoa



Regresso à inebriação dos sentidos fugindo à temperatura real naquele registo das águas murmurantes onde me banho entre rochas e areias, tufos de capim e nascentes de água límpida, ou prosaicamente debaixo de um chuveiro mecânico, invenção dos homens.

Os sentidos acolhem o palpitar de todos os sonhos vividos ou sonhados, afinal é neles que se sustenta todo o movimento que o cérebro comanda, é através deles que a fruta apetece madura ou repugna quando se desfaz em podridão atraindo a ela outra classe de seres que seguem o seu ritmo, as horas contadas mais breves, necessidades cumpridas sem esperas.
 

Só o Homem consegue dominar a natureza guardando-a intacta para quando os sentidos acordam para o desejo dela, assim eles se espraiam a olhar as cores das coisas dos homens ou a seguir o movimento da borboleta ou a fragilidade das asas que se desfazem em pó se apertadas entre os dedos. O tempo que sobra do tempo em que os outros seres procuram a sobrevivência na busca do alimento, na fuga aos predadores, no prolongamento da espécie.

Porque os homens têm tempo para pensar, eu olho-me por dentro e vejo que o meu modo de estar e de ser tem a ver com o meu país, como dizia Drumond, essa parte de mim fora de mim a procurar-me. E porque eu sou dois países num só, penso e repenso e tento encontrar em mim o que é de um e o que é do outro, desejando quantas vezes identificar-me com um só de entre os dois mas não consigo. Como se olha alguém cujo progenitor se conheceu na infância e nele o reconhece se for o pai ou se for a mãe, esquecendo que é um ser diferente e único, ele só, de per si.

 E é assim que eu me penso e me organizo, é assim que eu sonho e que eu vivo, castelã e plebeia, as mãos que escrevem tecem rendas, conduzem a máquina dos tempos que surgem conturbados, sem outra saída, rendidos ao culto do inominável.