sexta-feira, julho 18, 2014

SOBREVIVÊNCIA



 
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Alberto Caeiro


 

Ontem foi preciso fazer chantilly para cobrir o bolo de noz, e sumo de limão é imprescindível na clara de ovo para o sucesso desejado.

Abri o limão e logo reparei numa lagarta verde, pequeníssima, bem no centro. Olhei a outra metade e, também ali, qualquer coisa verdejava na coloração suave dos gomos. Tirei os óculos (sim, tirei os óculos) para ver melhor e, aquilo que me pareceu uma lagarta impertinente, não passava de uma semente germinada!

Saltei anos no tempo. Vi uma papaia de coloração intensa, alaranjada, aberta ali na varanda, acabada de chegar da horta, e as sementes já irrequietas, apressadas, ainda no útero querendo crescer, já cheias de verde, de vida. E meu pai, meu pai chamando a atenção dos meninos para a prodigalidade da terra, naquela hora e sempre deslumbrado com uma natureza pujante, naturalmente produtiva, numa dádiva perene.

A Terra aqueceu, dizem os cientistas e nós vamos sentindo. E o limão retirado da árvore, parece tê-los escutado e vá de comportar-se já como nascido nos trópicos. É só um limão, mas reage como ser vivo aos factores que condicionam a sua existência. Como os animais reagem para a procriação consoante o tempo a abundância de alimento.

Como os homens inteligentes deixam de procriar quando têm baixas remunerações, quando não têm condições de trabalho que lhes permita assegurar a sobrevivência das suas crias.


sexta-feira, julho 04, 2014

O meu Rapaz





Quando
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes no mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se ainda não estivesse morta.


Sophia de Mello Breyner Andresen







Dizer vinte anos é muito tempo. Dizer quarenta anos é uma vida, foi a vida de meu irmão. Mais vinte e são vidas, muitas vidas que se cruzam, que se apagam, que se transformam. É nascer outra vez, algumas vezes.


Quarenta anos dizia meu pai quando eu era menina e parecia-me assim uma coisa do outro mundo: há quarenta anos...


E hoje, quarenta e seis anos depois, foi a vez de esquecer uma das horas mais felizes que marcaram a minha vida. As horas já são pequenas para mim, deve ser, elas saltam, apagam a memória cansada, escondidas no novelo apertado da mesma cor, do mesmo fio, mas na outra ponta.


Há quarenta e seis anos foi um tempo difícil, foi um tempo de desassossego, foi um tempo de incertezas, de certezas inesperadas e duras, foi um tempo de decisões, de afirmação, de muita esperança também. O deslumbramento da concretização de um sonho a completar, completado.


Aquele ser pequenino veio encher o meu mundo, dar-me força para enfrentar os empreendimentos a que me propus, nunca houve cansaço, dor que me derrubasse.
E se foi difícil! Mas foi vida na sua plenitude.



Veio a desesperança, anos mais tarde. Dolorosa. E tudo se recompôs porque a vida é assim mesmo, feita de recomeços uma e outra vez, o oceano imenso a encher-me por dentro, por vezes a transbordar com as marés. 

Mas este verão, é tempo de reencontro.