terça-feira, maio 31, 2011

Dimensão



E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.
 
Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens"
Tradução de Maria João Costa Pereira

 
Acordo na escuridão e os sentidos são atraídos, cegados pela brancura, o brilho, as pétalas frágeis desvirginando a noite, acendendo desejos e cansaços de séculos. Corre a mansidão da brisa, depois da chuva no dia morno a lembrar outras latitudes.

Falta a terra húmida mais quente, logo o odor a evolar-se dela e a encher-nos as narinas, como ascende aos bichos na chana seca a adivinharem a estação das chuvas que traz a água benfazeja. No possível entremear de silêncios, ouço leves sons na corrente breve que acordou no fundo do valado, quem sabe de regozijo, quem sabe de lamento, chamamento do outro que se foi no levar da corrente.

Quase o som das rãs.
Quase o som dos noitibós.
Não, muito longe disso. Não há olhos a brilhar nem esvoaçar de pássaros.
Quando muito um quase crocitar quando os carros se esquecem de passar, um leve coro de relas talvez, uma brisa mais forte a provocar a resposta das ramadas de eucalipto, dos choupos junto à ribeira além.

É uma hora de paz. Sem jornais, telejornais, debates, maledicências, rostos de sorriso falso, cansado, forçado, beijos(?), abraços(?)apertos de mão sem ver de quem.

Tenho de ir votar neste fim-de-semana, o meu sentido cívico a isso me obriga, ainda que desta vez os dados já estejam lançados, quem for governo terá de cumprir o que já está decidido.

Mas não calo a minha voz de protesto. Nenhum governo faz aquilo que só a nós cabe fazer, nós, portugueses de lei, nós os que queremos um Portugal melhor, mais são, menos oportunista, menos corrupto, mais educado, mais modesto no ter, mais orgulhoso no ser da sua grandeza.

quinta-feira, maio 26, 2011

Tão fácil acrescentar um zero


Donde sou? Sou do meu tempo, bem o sei, ou bem o quero saber, porque não é fácil assumirmo-nos com o tempo que nos aconteceu. Mas de vez em quando, a um aceno invisível e perceptível apenas no modo de haver uma perturbação no ar, sinto que sou de outro tempo, de outro destino, de outro signo de ser pessoa. Que outro tempo? Não sei. Não deve ser mesmo tempo nenhum. Deve ser apenas localizável onde não esteja bem e me pergunte donde sou. Donde sou?

Vergílio Ferreira in «Pensar»
 

Ontem medi o tempo entre os sete e setenta anos. Foi apenas acrescentar um zero e o tempo rodou. 

Havemos de nos encontrar sozinhas as três para conversarmos um dia inteiro
um dia inteirinho
para nos ouvirmos por dentro nos sessenta em que seguimos de mãos dadas, entre viagens e separações, entre continentes, naquele país que era Portugal e onde não nos sentíamos
nem pequenas, nem discriminadas, nem humilhadas, nem periféricas.

Estamos aqui juntas outra vez, depois dos partos, das cirurgias de peito aberto, dos acidentes vasculares, dos casamentos, dos divórcios, dos netos, depois de perdermos os Mais Velhos, alguns amigos do peito.
Depois de perdermos o chão, no sentido mais lato.

Depois de hoje, três pequeninos budas risonhos de jade hão-de manter-nos unidas para os dias que nos falta cumprir
eles hão-de  sorrir para nós em cada lágrima vertida, em cada hora de encantamento, em cada sonho erguido ainda.
Eles não vão deixar-nos perder os laços, as lembranças, a teia construída cedo, os lugares da infância comum, o riso, a alegria
ainda quando afundadas na mágoa da impotência.

É que, como diz Vergílio, não é fácil assumirmo-nos com o tempo que nos aconteceu.
Então, sinto que sou de outro tempo, de outro destino, de outro signo de ser pessoa. Que outro tempo? Não sei. Não deve ser mesmo tempo nenhum. Deve ser apenas localizável onde não esteja bem e me pergunte donde sou. Donde sou?

domingo, maio 22, 2011

O Melro


       E quando a noite se aproximou, disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada. Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu. Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias do Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco. Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada. A vida homenageava a vida. Depois continuou tudo a cantar.
       – O estafermo do cuco, tia Isaura! Até um melro de riu!

Miguel Torga in «Os Bichos»





Deixo que os olhos se alonguem pela mancha verde que diviso no outeiro longe, pinheiros, eucaliptos talvez, a apetecer a frescura que falta neste ar que não bule. Ontem o mar chamou por mim, mas faltou-me a coragem para o seu abraço, já se foram os verdes anos e calor de então para lhe aceitar a frescura.

Mais perto, os fios dispersos sobre os telhados das casas desordenadas, desordenados eles, feios, grossos, suspensos em postes antigos, inclinados, com garras torcidas, que não impedem a cobiça dos que descobrem o valor do cobre e os cortam pela noite, indiferentes aos estragos causados de quem depende deles. A crise alimenta os vilões, a fome justifica tudo. A falta dela também, entre os homens, que se entregam a desvarios de toda a ordem.

Por isso eu gosto dos bichos que são menos maus, brigam pelo sustento e pela continuação da espécie e depois cantam, cantam que é bom viver, diz a novela da noite, das lendas e maldições dos Índios. Num atropelo ao Torga, eu não ouço gargalhadas do melro, depois de ter ouvido as dos sacanjuères, que ele não conheceu decerto. Ouço-lhe, sim, os assobios de escalas diversas com que me brinda, dia adiante, pousado nos fios, na falta do pinheiro vetusto que os homens abateram, e ontem em desafio com um arrulhar de rola curiosa.

Afinal os fios torcidos de cobre não servem só as comunicações e o apetite dos homens, também servem de palco ao orfeão dos pássaros.

domingo, maio 15, 2011

Devagar se vai longe


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina (Prémio Camões 2011)




No sorriso das palavras o mundo todo se aconchega.

É alegria e dor ao mesmo tempo, aberta e partilhada ou então escondida atrás dum rasgar de face que os olhos não acompanham no brilho.

Nada é totalmente como queremos, é sempre mais ou menos, daquilo que desejamos embora uma e outra, dor e alegria, se ofusquem num determinado momento, dando azo a momentos únicos de explosão de raiva ou alacridade que nos dão algum fôlego para continuar em frente, porque nada volta para trás.

Tudo se constrói a partir do momento em que vivemos e nos damos conta do terreno que pisamos, se é chão duro e seco, se dele ascende o odor da chuva fecundando a terra, se é lodaçal ou areia movediça onde o corpo se afunda devagar.

Portugal tem um chão de verdade, chão quase milenar, tem terra firme, donde sobe o cheiro doce da terra molhada, numa profusão de continentes, tem como senhora única uma Língua imensa e forte que está acima de todos os impérios, reis ou príncipes forjados pelos homens. É uma Língua que nasceu vulgar do Latim dos clássicos, que se misturou de celta, de galego e de lusitano, que mergulhou sem medo nos oceanos e as ondas levaram e semearam e germinaram em crioulos e em tonalidades doces de inflexão peculiar por essas praias além.

Havemos de fazer com ela o ramo de oliveira que um dia uma pomba branca trouxe para a Arca a dizer que os tempos maus já eram idos e que havia terra fecunda à vista.
 

domingo, maio 08, 2011

Fidelidade



Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como só a presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
como outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?

Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos, se voltassem.
Jorge de Sena

 
Ouço a chuva lá fora caindo devagar, incerta, escuto para que possa sentir a verdade dela.

Contar os anos por rugas e cãs dá o poder dos passos imensos que mergulham no tempo, nos lugares perdidos, comparando os campos, as margens dos rios, o tamanho dos lagos, a lonjura dos horizontes. Eu não posso ser senão da terra onde nasci. E ainda que seja um lugar de ninguém, como Orfeu, eu procuro Eurídice, porque os espíritos disseram que era possível.

Ver, olhar, andar para trás no tempo, passear no reino dos mortos, não me dá o direito de tocar, de alterar coisa nenhuma, muito menos de guardar para mim algo mais do que a memória. Nem mais é preciso, nem mais importa, porque a fortuna de chegar aqui, de entrar no reino dos deuses, é um prazer sem tamanho, quase dor, néctar sagrado que nem todos podem degustar. Não ter nada e ter tudo. Não ser dona de nada e possuir o mundo de Zeus, de Poseidon e Hades. Ser como Prosérpina, habitar dois mundos, a complementaridade deles.

A sabedoria inteira na simplicidade das histórias dos deuses antigos, a mitologia a anunciar as histórias dos deuses recentes, a soberba (poder), a avareza (offshors), a gula (capital), a luxúria (pedofilia), a ira (desporto), a inveja e a preguiça iludindo tudo. No Ocidente, dois mil anos de Cristianismo não dirimiram os pecados capitais, antes agudizaram o seu apetite. Na outra face da Terra, nem as religiões de Abraão nem as filosofias orientais impediram a globalização destes desejos humanos.

Nas franjas do mundo, sobrevivem as ninfas, as nereides, os faunos, os seguidores de Pã.

Ando no seu encalço.

quinta-feira, maio 05, 2011

Determinação


     Terra! Mas uma porção de tal modo exígua, que até os mais confiados a fixavam ansiosamente, como a defendê-la da voragem. A defendê-la e a defender Vicente, cuja sorte se ligara inteiramente ao telúrico destino.
     Ah, mas estavam «rotas as fontes do grande abismo, e abertas as cataratas do céu»! E homens e animais começaram a desesperar diante daquele submergir irremediável do último reduto da existência activa. Não, ninguém podia lutar contra a determinação de Deus! Era impossível resistir ao ímpeto dos elementos comandados pela sua implacável tirania.
     Transida, a turba sem fé fitava o reduzido cume e o corvo pousado em cima. Palmo a palmo, o cabeço foi devorado. Restava dele apenas o topo, sobre o qual, negro, sereno, único representante do que era raiz plantada no seu justo meio, impávido, permanecia Vicente. Como um espectador impessoal, seguia a Arca, que vinha subindo com a maré. Escolhera a liberdade e aceitara desde esse momento todas as consequências da opção. Olhava a barca, sim, mas para encarar de frente a degradação que recusara.
 Miguel Torga in «Bichos»


 Quase me sinto perdida enrolada por ventos marés, circunstâncias do tempo marcadas por relógios humanos sem alma, rodando no mostrador. Passando sem ver uma e outra vez sobre os algarismos gravados a negro, quietos parados, iguais na noite e no dia, no escuro e na luz.

O relógio cá dentro não sabe das horas mecânicas, certas, pausadas, soadas, marcadas pelo arco do pêndulo. O relógio cá dentro vive dos sons das madrugadas, quando a noite ainda cobre os telhados, as sebes, os muros pintados lavados, a casa em ruínas, o musgo lavrando nas fendas, as silvas espreitando à janela.

O relógio cá dentro vive dos sinos que soam repicam que dobram finados, vive das noites abertas ao sono e ao sonho, ao som dos beirados pingando a chuva que o céu entorna. Vive dos passos nos jardins nas praias de sol dos dias fechados a lacre – como as cartas antigas. É um relógio sem mostrador, sem ponteiros rodando, sem algarismos a deslizar, sem corda sem pilha, sem corrente sem caixa sem pulseira.

É uma arca antiga onde palpitam fragrâncias de rendas que fincam os pés no desandar da maré. O relógio de dentro não é de metal, não é frio, não conta os minutos as horas. O relógio cá dentro escuta, vê, sente, sofre, seduz, vibra até ao último crepitar de chama, estremece até ao último pulsar.