domingo, agosto 30, 2009

De pequenino se torce o bilro


Têm as mãos pequeninas e sabem jogar ao bilro

Trocam os fusos, fazem-nos saltar entre os dedos

e ouvem atentas a explicação da mestra:

seguir o traço do pique fixado com alfinetes

e fazer girar as cores com atenção

para não haver enganos...

Renovam-se as gerações e as rendas

Para que não se perca a memória

terça-feira, agosto 25, 2009

Desvios


… Mas, noutros momentos, e são esses os verdadeiros, sinto-me feliz que assim seja. Porque todas as paisagens, todas as flores e todos os trabalhos, a mais antiga das terras, vos demonstram, em cada Primavera, que há coisas que não podereis abafar no sangue.

Albert Camus



Passou por mim (não numa rua da baixa) no campo onde me vejo, uma borboleta-monarca. Vi-a de relance, aquelas asas enormes, pintadas de amarelo e negro, voltejando em busca de espaços de agrado que não achou e nem me deu tempo a que a fixasse na minha caixinha mágica. Conforme surgiu, assim se desvaneceu no meu horizonte limitado. Que desvios, que descaminhos a trouxeram até aqui?

Aconteceu como aqueles assomos breves de memória, pródiga de lembranças pungentes que se enrolam em justificações e desculpas que não têm, marcando de tarja o vestido de cor, o amarelo vibrante manchado de negro, perfazendo uma imagem de excelência, caminhando viva e célere.

Nós não somos todos iguais. Há os que caminham percorrendo as estradas já batidas, há os que se desviam por atalhos, há ainda os que ousam abrir caminhos novos por entre o capim rasteiro, caminhos estreitos em curvas suaves apenas contornando os obstáculos, sem ferir as árvores, sem pisar as lavras, caminhando sobre as pedras que assomam de leve da terra escura, saltando valas, atravessando rios sobre troncos roliços, pontes frágeis de madeira. Estes caminham em silêncio para não espantar as aves, as cobras tomando o sol, fazem parte da natureza, tentam passar despercebidos.

São assim as árvores Do húmus que colhem da terra, erguem os troncos bem alto e alargam a copa consoante o espaço de que dispõem, a luz, o calor, alargam as folhas em leques, em palmas a receber o sussurro da brisa. Se a neve os veste, assentam no chão os braços abertos, tornam os corpos esguios e crescem em fuso como afunilam as folhas, guardam no ventre as tocas dos bichos.

Mas há sempre um ganso a perder a rota, uma planta levada pela enchente, uma borboleta perdida, uma criança abandonada às portas do amor.

sexta-feira, agosto 21, 2009

Uma letra na palavra


O périplo de uma vida à procura da palavra. Viemos ao mundo para a encontrar. A palavra total, a que nos diga inteiros, a que nos diga a vida toda. Procurei a minha e não a encontrei. E estou a chegar ao fim. Ou encontrei apenas a do silêncio. Ou a palavra enigmática que a mãe do narrador desse meu romance Para Sempre lhe diz ao ouvido à hora da morte e ele tenta entender através da vida inteira."


Vergílio Ferreira




Conheci-a num dia em que ela chegava com o irmão da Escola Primária 31, para além da linha de Caminho de Ferro, na Rua do Comércio.

Fiquei fascinada por aqueles cabelos encaracolados muito loiros brilhando ao sol da tarde e uns olhos azuis, azuis e transparentes como água. Era diferente das meninas com que brincava, todas mais velhas, filhas dos amigos dos meus pais, no tempo em que três anos de diferença de idade era mesmo muito importante (ela apenas mais um). Parece que eu usava um vestido claro com folhos e uns desenhos de patinhos, o que a memória dela registou. A minha só gravou aqueles caracóis quase brancos e o céu dos olhos dela.

Ficámos amigas para a vida. Nunca estudámos no mesmo colégio, ela esteve durante os anos de liceu internada nas Doroteias, em Sá da Bandeira, fomos desde cedo unidas e separadas por cidades e continentes. Temperámos a nossa amizade nas tardes de domingo à hora da matiné, no velho cinema Ruacaná, onde havia três fiadas de cadeiras pintadas a vermelho na frente e onde se sentavam as crianças sem lugares marcados. Juntas ouvimos aí declamar João Villaret, desembrulhando-se no final de uma enorme bandeira portuguesa. Assistimos juntas à inauguração da nova sala de cinema, mais luxuosa, com balcão e camarotes e cadeiras estufadas, com o filme Frei Luís de Sousa, de que ainda hoje recordamos a cena final dos pais deitados no chão da igreja, recebendo os votos e Maria (Dulce) gritando e desmaiando por fim nos braços do seu fiel criado Telmo.

Tínhamos por essa altura quase dez anos e o tempo corria ainda devagar, sempre na espera do seu regresso nas férias.

Juntámos os nossos pais para uma amizade que perdurou pelas décadas que lhes restaram de vida.

O irmão dela é o irmão que já não tenho, o seu marido, o amigo de infância.

Os nossos filhos cresceram juntos e os netos dela são um pouco meus.

Quando os espaços nos separam, as velhas e novas tecnologias nos mantêm unidas.

Vamos comemorando as décadas «de amizade» com encontros e lembranças.

Até ao fim.


terça-feira, agosto 11, 2009

A Escola



IAN/TT, Min. Instrução Pública, maço 1 (cx 2), doc não numerado:


Illmo. e Exmo.Snr. Ministro do Reino

Participo a V. Exª que se acha a minha eschola bem como a casa da minha habitação no estado de se não poder aqui estar nem dar aula, porque chove em todo o predio, tanto eu como as minhas alumnas temos de estar em cima de agua. Ellas têem adoicido e eu tambem a qui tenho arruinado a minha saude, este desalinho é um dos motivos que desgosta as alumnas e faz com que não frequentem a aula e alem d’isso a falta de mobilia e os vidros quasi todos partidos. Eu já requeri a junto da Parochia em 7 de outubro de 1882 e em 1883 e dice-me o Snr Prisidente, que a junta de Parochia não mandava reidificar o tilhado, nem as vidraças, que o reidifique eu, porque estou no predio. Eu não posso fazer estes gastos; o meu ordenado recebo só 100:000 réis e paguei contribuição municipal, 5$300 réis, congrua 400 réis e as mais despesas que tenho a fazer com o Snr Parocho e como o meu em/prego ? Elle não chega para a minha subsistencia e da minha criada, chega para eu reidificar o predio ! Gente rustica como esta… aqui só se soffrem insultos e não há providencias da lei, não sei para que servem as autoridades. Eu já dei parte ao Snr SubInspector e ao Snr. Administrador do d’este Concelho, mas não vem providencias, motivo porque imploro a protecção de V. Exª.

Deus Guarde a V. Exª

S. Domingos da Castanheira de Pera 28 de novembro de 1883


A Professora

Maria de Jesus Neves Ferreira"


quarta-feira, agosto 05, 2009

A(s) hora(s) do(s) caminho(s)


O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

Jorge de Sena




Quase poderei dizer que nasci dentro de um carro.

Das memórias mais antigas, vejo um colchão macio onde me deitava e, sobre mim, um talvez cartão prensado bem grosso, pintado de escuro, por onde se escapava uma luz e alguns fios de cores quando, levantando os braços, os dedos pequenos passavam e sentiam um relevo breve, forçando um pouco o despegar do cartão. Voltei a recordar essa sensação com maior nitidez quando, já no liceu, utilizava uma prancha nas aulas de desenho para segurar com quatro grandes tachas o papel cavalinho em que fazia o desenho geométrico, dito rigoroso e decorativo. A parte de cima era lisa e brilhante, mas a parte inferior tinha a textura daquela placa com que convivera periodicamente na alta infância. Quando, de joelhos levantados, brincava com a saia de minha mãe fazendo-a minha, quando adormecia embalada pelos solavancos, as pernas esticadas entrando por baixo do banco de ferro.

Só deixei de viajar nesse lugar quando já lá não cabia, e será isso que fixou a memória, em paralelo com uma primeira aprendizagem do que já não pode ser por imposição de algo que não podemos corrigir, que não podemos controlar, que somos forçados a aceitar. Crescer, envelhecer também, está visto. A melhor maneira de o fazer, é saber tirar de cada nova etapa aquilo que a anterior nos não possibilitava, mas é preciso olhar muito para dentro, para trás, para a frente, para os outros.

Vinha isto a propósito de viagens que sempre fiz, à medida de cada lugar e de cada idade. Parece que fui destinada a dividir-me sempre por mais do que um espaço ao mesmo tempo. Até à minha juventude, entre a cidade e a fazenda, de início cinquenta quilómetros que se faziam em mais de duas horas de caminho por terra batida, mais tarde reduzidos a quarenta por estrada melhorada, mas só muito tarde com direito a asfalto. Depois a distância entre continentes, vencida por dez dias de mar em hotéis flutuantes, madrugadas na proa a ver cortar as ondas. Nunca entendi o mal-estar dos outros, o desespero do embarque, o horror o cheiro das tintas, os vómitos… eu só me via a cortar o oceano, capaz de esquecer o mundo. Só a ponte aérea me fez vencer o mesmo espaço em algumas horas, nada para recordar.Já fixada em definitivo no primeiro mundo, entre Lisboa e a paisagem em que sempre trabalhei, finalmente e de novo entre cidades de província, agora também entre continentes.

Dos meus caminhos da infância ficou-me essencialmente o tempo das viagens que sempre soube usufruir. Os «esses» vieram mais tarde, e não apenas um. Mas o espaço, a vida do caminho prevalece na minha contagem do tempo.