quarta-feira, agosto 05, 2009

A(s) hora(s) do(s) caminho(s)


O corpo não espera. Não. Por nós
ou pelo amor. Este pousar de mãos,
tão reticente e que interroga a sós
a tépida secura acetinada,
a que palpita por adivinhada
em solitários movimentos vãos;
este pousar em que não estamos nós,
mas uma sede, uma memória, tudo
o que sabemos de tocar desnudo
o corpo que não espera; este pousar
que não conhece, nada vê, nem nada
ousa temer no seu temor agudo...

Tem tanta pressa o corpo! E já passou,
quando um de nós ou quando o amor chegou.

Jorge de Sena




Quase poderei dizer que nasci dentro de um carro.

Das memórias mais antigas, vejo um colchão macio onde me deitava e, sobre mim, um talvez cartão prensado bem grosso, pintado de escuro, por onde se escapava uma luz e alguns fios de cores quando, levantando os braços, os dedos pequenos passavam e sentiam um relevo breve, forçando um pouco o despegar do cartão. Voltei a recordar essa sensação com maior nitidez quando, já no liceu, utilizava uma prancha nas aulas de desenho para segurar com quatro grandes tachas o papel cavalinho em que fazia o desenho geométrico, dito rigoroso e decorativo. A parte de cima era lisa e brilhante, mas a parte inferior tinha a textura daquela placa com que convivera periodicamente na alta infância. Quando, de joelhos levantados, brincava com a saia de minha mãe fazendo-a minha, quando adormecia embalada pelos solavancos, as pernas esticadas entrando por baixo do banco de ferro.

Só deixei de viajar nesse lugar quando já lá não cabia, e será isso que fixou a memória, em paralelo com uma primeira aprendizagem do que já não pode ser por imposição de algo que não podemos corrigir, que não podemos controlar, que somos forçados a aceitar. Crescer, envelhecer também, está visto. A melhor maneira de o fazer, é saber tirar de cada nova etapa aquilo que a anterior nos não possibilitava, mas é preciso olhar muito para dentro, para trás, para a frente, para os outros.

Vinha isto a propósito de viagens que sempre fiz, à medida de cada lugar e de cada idade. Parece que fui destinada a dividir-me sempre por mais do que um espaço ao mesmo tempo. Até à minha juventude, entre a cidade e a fazenda, de início cinquenta quilómetros que se faziam em mais de duas horas de caminho por terra batida, mais tarde reduzidos a quarenta por estrada melhorada, mas só muito tarde com direito a asfalto. Depois a distância entre continentes, vencida por dez dias de mar em hotéis flutuantes, madrugadas na proa a ver cortar as ondas. Nunca entendi o mal-estar dos outros, o desespero do embarque, o horror o cheiro das tintas, os vómitos… eu só me via a cortar o oceano, capaz de esquecer o mundo. Só a ponte aérea me fez vencer o mesmo espaço em algumas horas, nada para recordar.Já fixada em definitivo no primeiro mundo, entre Lisboa e a paisagem em que sempre trabalhei, finalmente e de novo entre cidades de província, agora também entre continentes.

Dos meus caminhos da infância ficou-me essencialmente o tempo das viagens que sempre soube usufruir. Os «esses» vieram mais tarde, e não apenas um. Mas o espaço, a vida do caminho prevalece na minha contagem do tempo.


4 comentários:

Justine disse...

São os percursos de uma vida bem vivida, sofrida, aproveitada até ao cerne. Os caminhos por nós percorridos estão nas rugas da nossa face.Orgulhosamente à vista! Abraço

M. disse...

Belíssimo! Belíssimo! Belíssimo! E sábio, a sabedoria das rugas...

Rocha de Sousa disse...

Vê, como sabe viajar pela memória, desde a infância até hoje. Aqui ve-
mos os bracinhos empurrando-se pa-
ra o futuro, depois um novo lugar
por direito próprio, as longas via-
gens desvendando belezas, distâncias e segredos, e ainda a grandeza das navegações, a retoma do trote dos carros, a verdade em volta, até ao corte laminar que a fez viajar contra a natureza das coisas. Digo isto com arrepio de
nostalgia mas com a minha própria memória cheia de gente que amava Angola e a sua longínqua fazenda.
Há pouco vi o exemplo de uma famí-
lia ainda nova, com duas filhas, que se encontrava numa daquelas aldeias líticas do norte, donde
haviam saído os últimos dois habitantes, ainda parentes.
«Estou aqui para dar continuidade à aldeia e o mundo chega cá tam-
bém. Estamos tranquilos. E nunca
vi as minhas filhas tão felizes,
bem diferentes de quando as ia levar à Escola em Lisboa»
Gostaria de renascer para me juntar
a esta gente. Foi isto que Portugal
fez de grande. Está o testemunho
pelo mundo inteiro, mas o consumis-
mo cegou (em branco) quase toda a gente.
Obrigado, Jawaa
com

Klatuu o embuçado disse...

Dentro de um carro?... A geração hippie é tramada! :)=

Beijinhos.
P. S. Lá se foram as férias, né?