segunda-feira, dezembro 31, 2012

ANO NOVO



Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo.
A sôfrega retina vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e a agonia.
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos.

António Ramos Rosa



Abre-se o sol numa outra madrugada para iluminar os espelhos de água, saído de uma nuvem qualquer onde um pássaro, por seu livre arbítrio, se embriaga de pérolas de água, rodopiando depois nas correntes de vento que lhe sopram o rumo.

Dos sonhos, das inebriações de prazer, emergem soluços como ruídos da fogueira alta na rua, as chamas crescem do âmago dos troncos abrindo neles grutas de luz onde o olhar se prende, se esgueira pelas tonalidades da cor, enquanto o calor se enrola e desprende fagulhas que sobem e logo descem semeando cinzas por sobre os ombros, os cabelos, leves, leves.

Há então uma paragem no tempo, uma suspensão de todos os pensamentos, apagam-se as memórias, a lua empalidece e as estrelas não cintilam, como se o universo fosse apenas aquela caverna brilhante na cova dos cepos, a gruta que atrai e que fere, que purifica porque tudo desfaz em pó.

Assim chega num repente o recomeço, mais uma translação do mundo, a rodar em noites e dias numa sucessão eterna para os mortais que somos, cá dentro as contradições dos tempos, as recordações da infância, os destemperos das vidas, as desilusões que o tempo não apaga, os contentamentos, os desenganos.

Que venha 2013. Que venha em paz e nos traga força para lutar por um tempo melhor.

sábado, dezembro 22, 2012

INOCÊNCIA



De entre as recordações mais antigas, quando eu era muito menina, ficaram-me as histórias que meu pai nos contava da raposa e do lobo (do Romance da Raposa, de Mestre Aquilino, vim a saber mais tarde), histórias repetidas vezes sem conta, a nosso pedido, meu e de meu irmão, e muitas vezes discutidas porque os episódios variavam nuns pormenores alterados aqui e além, e nós estávamos atentos. Havia ainda a história da velha que tinha ido à festa e se metia numa cabaça para fugir do lobo mau; parece que ainda hoje vejo os gestos expressivos e as gargalhadas de meu pai a tornarem tudo mais excitante.

Não sei se para fugir a imprecisões que nós não deixávamos passar, se apenas por sermos já mais crescidos, também nos lia contos, eventualmente saltando espaços, mas lia para nós, e o Natal não sei porquê, traz-me essas lembranças mais perto. As noites eram mais longas quando estávamos na fazenda e recordo-me de pedir as leituras numa altura em que eu já sabia ler, mas era ainda difícil, e afinal tão mais bonito lido por meu pai.

Dessa época lembro esta história que vem a propósito, um conto de Augusto Gil, em que um qualquer astrónomo, grande estudioso, nas suas pesquisas, descobriu um dia um cometa. Estudou o seu percurso, fez contas e mais contas e concluiu que o mesmo viria colidir com a terra num preciso momento, hora, dia, mês, tudo matematicamente provado para consternação generalizada.

«Só passados seis dias o astrónomo, batendo uma punhada de tremenda cólera no tampo da secretária, viu que se enganara…Uma vírgula, um estupor de uma vírgula posta fora do lugar, fora a causa daquela catedrática estendência. Para sustar o fiasco iminente, transmitiu um atabalhoado aviso às folhas berlinenses.
Mas fossem lá ter mão! Já a galga corria, a pleno fôlego, de país em país, de terra em terra…

[…] E como na noite fatídica a mulher lhe dissesse que precisava de escrever à modista por causa do vestido azul, o Moura, erguendo a face magra dum volume de patologia, objectou-lhe com uma serenidade cómica:
– O vestido azul! Mas já te não chega a tempo. Não sabes que é logo, às quatro e meia, que acaba o mundo?...

O Mourita filho que estava ao lado, a dar corda a um boneco de lata, suspendeu a operação.
O fim do mundo!... E ia a perguntar ao pai o que era isso; mas o pai tinha mergulhado de novo na leitura. Abriu a boquita para interrogar a mãe; mas a mãe começava a redigir a epístola… Ficou por isso calado, a matutar no caso.
E a matutar no caso se lhe cerraram as pálpebras e lhe descaiu das mãos, para a alcatifa, o seu boneco de corda.

E foi Mourita filho levado nos braços duma criada gorda para a caminha de guardas. Despiu-o. Deitou-o e, aconchegando-lhe a roupa, repenicou-lhe nos lábios em flor um beijo amigo. Lá o deixou num sono quieto, de passarinho cansado…
E a Terra foi girando e rodopiando nos espaços, desimpedidamente, sem entrave, sem percalço.
E a madrugada luziu no céu, como na véspera. E o sol irrompeu do recorte dum monte, à hora prefixa dos repertórios.

Quando as oito da manhã bateram, a criada gorda entrou no quarto do Mourita com o leite do desjejum.
– Vá menino, leva arriba. Aqui tem o seu leitinho…
O petiz sentou-se na cama e semiabriu os grandes olhos garços. Depois, desviou-os da claridade da janela e, esfregando-os com as mãozitas fechadas, recomendou à moçoila:
– Ó Ana, vê se lá fora inda há Mundo…»

sábado, dezembro 15, 2012

ANTECIPAÇÃO

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.
Natália Correia

  
É o cansaço dos anos, a soma, o peso deles, a agilidade a escoar-se pelos dedos cada vez mais tortos, grossos, como a chuva pela terra adentro a cada inverno, o medo do sol a saudade dele.


É olhar o espelho e ver a imagem desfocada, cada vez mais longe a apagar-se na distância e no ruído, o ruído apenas onde soçobra a razão, a febre desviando as memórias, sem tino e sem medo entrando em delírios. O ontem grandioso a segurar as raízes fundas, a ditosa pátria minha amada, o hoje são as areias enchendo a barra, afogando o rio, deixando-o sem corrente, sem viço, sem vida.


O sangue arterial a escoar-se pelos aeroportos, o venoso a correr pelas veias cheio de coágulos a tentar respirar pelos olivais os raros pinhais, as vinhas novas os sobreiros antigos, a História a escrever-se por outras regras, quem sabe o fado a cumprir Portugal, a diáspora sempre presente na alma de um povo que não cabe no espaço exíguo da face da Europa, o olhar perdido no Atlântico, o corpo apoiado nos outros continentes.


Atrás, bem atrás dos holofotes dos media distribuindo carros e dinheiro em jogos de azar, para além da propaganda das grandes superfícies auferindo benesses fiscais com o capital dos clientes, para além da contribuição voluntária de cada um, há afinal em cada lar mais um Natal que chega, sem ouro e sem mirra, mas um dia, uma noite de Consoada em que a família se reúne em Acção de Graças em roda da manjedoura, da fogueira que aquece.


Ficou-me da infância esta inclinação pela noite da Consoada, a noite de todas as alegrias, de todas as esperanças, a noite em que o convívio das crianças e adultos era autorizado noite adentro, só porque o dia seguinte era Dia de Natal. Assim haja para todos uma refeição de paz, assim haja para todos a esperança de um dia diferente a chegar, sem burro e sem vaca, mas com uma estrela dentro.