sexta-feira, agosto 30, 2013

MÚSICA NO PARQUE

O Poeta ouviu a voz da sereia que ninguém ainda tinha ouvido
e descobriu a verdadeira voz do mar
em que ninguém ainda tinha reparado.
Depois escreveu o mais lírico dos poemas
e todos disseram para ridicularizar o Poeta
que o Poeta era um louco.
O Poeta pediu aos ricos Pão para os pobres
e defendeu simplesmente o direito de viver
para todos os homens.
Isto foi um alarme tão grande
que o acharam um ente perigoso
[...]
Quando o Poeta morreu,
leram o que deixou para se ler depois da sua morte
e viram
que o Poeta não queria pompas mortuárias
nem busto depois nas praças públicas.
Nem ruas depois como seu nome.
Todos sorriram porque acharam o caso pitoresco
este de o Poeta não querer a imortalidade.
Então concluíram com ar depreciativo
que o Poeta era um filósofo original
Jorge Barbosa in «Caderno de um Ilhéu»
 
 

sábado, agosto 17, 2013


Falta pouco 
para acabar o recebimento de cartas
as sempre adiadas respostas
o pagamento de impostos ao país, à cidade
as novidades sangrentas do mundo
a música dos intervalos.

Falta pouco para o mundo acabar
sem explosão
sem outro ruído
além do que escapa da garganta com falta de ar.
Carlos Drummond de Andrade
 
 
Devo ter morrido. Os dias quentes amontoam-se sobre o prato do corpo como panquecas saídas do lume, um atrás do outro, lisos, redondos, iguais. Mesmo dos telejornais não jorra senão lume, casas e carros e pessoas, tudo cremado pelo calor. Para além das outras mortes anunciadas, os milhares de professores sem emprego, as centenas de funcionários das escolas a expurgar porque em Portugal a educação é excessiva, porque o orçamento não suporta o peso da educação. Suporta a demagogia de governantes que não descem do pedestal, não cortam nas despesas duma governação incuriosa e injusta que nomeia num único dia umas dezenas de secretários de estado, mais o rol de benesses que lhe estão acoplados, mas esses não são "funcionários", é uma palavra demasiado plebeia, só têm de comum o facto de serem pagos, mais bem pagos, pelos impostos daqueles a quem é retirado o direito de trabalhar, mas não o dever de pagar. 
 
Voltemos às panquecas. As panquecas que passam a chamar-se crepes - lá está o nome excessivamente plebeu - quando dobradas delicadamente uma e outra vez embrulhadas em creme dourado e perfumado a citrinos, tão finas e nobres que adquirem nome de mulher, Susette, de consoante dobrada porque é à francesa e os franceses são melhores do que nós, ou não fossem estrangeiros. As panquecas, dizia eu, podem colher-se individualmente, como os dias, podem rechear-se de guloseimas doces ou salgadas, como os dias, podem comer-se simples, polvilhadas com o açúcar e canela tão português, tão natalício, gostosas e olorosas como as flores que se compram no mercado e enfeitam a casa quando não há por perto a urze ou a madressilva que se oferece pelos campos.
 

quinta-feira, agosto 08, 2013

QUEM SOMOS?




«… quero que seja de algum modo o que foi para os israelitas o solo pingue da Palestina, que transformou esses vagabundos do deserto, só pele, ossos e cobiça, em habitantes sedentários, satisfeitos com a vida, criando arte, constituindo uma personalidade. É muito pedir? Então o nosso oceano não há-de dar mais que duas sardinhas, uma que vai podre para o estrangeiro nas latas de conserva, outra que chega corchada, ardida, ou amarela da salmoira, à aldeia das serras? A seara portuguesa não há-de produzir mais que dez sementes e no pomar só hão-de amadurar pomos bichosos? A minha linguagem indignada, estou a ver, presta-se ao riso, mas nem por isso deixa de me assistir uma inexorável justiça.»
Aquilino Ribeiro in «O Arcanjo Negro»



O meu país desgosta-me a cada passo. 

Digo mal: os homens e as mulheres que gerem os destinos do meu país desgostam-me, não me representam, e por isso eu decido agora não votar em qualquer das eleições que se avizinham. E digo-o de coração partido, porque desde sempre pensei que era uma desonra, era de uma enorme cobardia não participar nas decisões importantes, fundamentais, da construção de nós. Se votar é um direito que me assiste, por que tanto se lutou durante décadas da minha própria vida, votar é bem mais do que um direito, é uma obrigação. Sempre pugnei pelo voto, voto que fosse em branco, mas voto, porque o acto de votar é uma obrigação do cidadão. 

Só que não me sinto cidadã, é uma palavra que foi morrendo devagarinho cá dentro. 

Digo isto assim, ao ouvir as notícias da manhã que me despertam em cada dia. As palavras que dizem que o governo, com o dinheiro que anunciam diminuir ainda mais a minha reforma, o governo que gere os impostos que eu paguei durante 4 décadas de trabalho – e que continuo a pagar – vão ser destinados a financiar as escolas privadas independentemente de haver nos locais onde existem escolas públicas, para que os filhos de Portugal possam escolher a melhor (???!!) escola. E para quê? Para irem mais tarde aplicar os seus conhecimentos fora do país porque aqui não há caminho para eles, aqui só há caminho para os analfabetos, os imigrantes de baixa escolaridade, os velhos. Ah, e os muito ricos, cada vez mais engrossada essa estirpe superior (Não têm pão? Comam croissants!) que se distancia mais e mais dos ideais de solidariedade, igualdade, fraternidade, que nos legou a Revolução Francesa. 

Mais parcerias público-privadas? Algo parecido, com outros nomes, mas mais do mesmo. O que é preciso é exaurir o país até à última gota, diminuir os salários, as reformas (menos as dos juízes e diplomatas – em nome de que Justiça?), atirar para o desemprego mais uns milhares, mas manter as mordomias dos altos dignitários do Estado, aumentar o rol dos incompetentes e desonestos que proliferam como cogumelos pela política e nunca perdem estatuto. E não me venham com nomes de partidos políticos porque, mesmo os que se dizem de esquerda radical, quando toca a falar-se de reformas que lhes toquem, também a eles, logo se unem aos de extrema direita. Por isso não tenho em quem votar. Não convém, nunca conveio, dizer da importância do voto em branco, explicar ao povo a importância do voto em branco, e por mim não vale a pena lutar, nesta altura já nem tudo vale a pena. 

Perdoe a quem me lê os buracos na rede da escrita, o que queria dizer mais é tanto que nem caberia aqui. Termino com a constatação definitiva da ignorância que grassa pelas altas esferas da política e me envergonha pesadamente: a designação para Alto Comissário da Casa Olímpica da Língua Portuguesa no Brasil do Sr. Miguel Relvas.  

O país que temos, o país que somos. À mulher de César já nem basta não ser séria, é preciso mostrar que não o é.

sábado, agosto 03, 2013

CINISMO

Passados quinze dias o doutor partiu. Percebeu de repente que tinha de ir à procura da sua infância noutro lugar. Em Munique descobriu um anuário: Klara Sollner, Schwabing, rua e número. Avisou-a da sua visita e pôs-se a caminho.
Uma mulher esbelta deu-lhe as boas-vindas numa sala cheia de luz e bondade.
“E ainda te lembras de mim, Georg?”
O doutor estava maravilhado. Por fim disse: “Então és tu, a Klara…” Ela manteve o rosto calmo com a fronte pura e inteiramente imóvel, como que a dar hipótese de ele a reconhecer. Isso levou o seu tempo. Finalmente, o doutor parecia ter descoberto qualquer coisa que lhe provava que a sua companheira de infância estava, de facto, na sua frente.

 Rainer Maria Rilke in «Histórias do Bom Deus»


Nasci num planalto a quase dois mil metros de altitude e a duas centenas de quilómetros do mar que encontrei pela primeira vez aos oito anos de idade. Dessa mesma altura a primeira viagem de avião, num novíssimo Dakota, com meia dúzia de passageiros a bordo, eu e a minha amiga dilecta de ainda hoje, ambas entregues aos cuidados de uma hospedeira. Descida no aeroporto do Lobito e finalmente Luanda, os tios, os avós à espera.

E assim o mar. Aquela massa imensa de água que findava para além do horizonte, as ondas chegando, uma e outra vez altas e logo a correrem na areia a baterem com força nas pedras em espuma branca a salpicar-me o rosto. E as gaivotas voando em círculos, pousadas na areia, pousadas nos dongos dos pescadores, eles concertando as redes sob as palmeiras da Samba. Foi mais, foi muito mais, foi maior do que o rio e as lagoas mansas do meu planalto.

Ainda hoje essa paixão se mantém. Não consigo entrar nas águas demasiado frias da costa do Atlântico nestas latitudes, mas olhar o mar, apenas olhar o mar, ouvir o som do mar, é um prazer sem tamanho. É junto ao mar que me encontro, descanso nas minhas raízes, nos meus sonhos de antanho, antes da praia se encher de gente, a praia vazia, vazia até das conchas coloridas, os búzios que já não há, das pedras que incansavelmente rolavam brilhantes, dos milhares de pequeníssimos caranguejos que corriam à frente dos nossos pés e se escondiam nos orifícios da areia. 

O mar me ajuda a constatar que tudo mudou. Tudo mudou menos o mar. A força do mar, a suavidade do mar, a beleza do mar. Porque as faces das pessoas não se envergonham das mentiras, olham nos olhos e faltam à verdade. Olham nos olhos e dizem o que não sentem, olham e defendem o que todos sabem não ser a verdade. Asseveram as falsidades que nos enredam num caminho sem volta, que nos tolhe todos os movimentos, que nos derrota. 

Só o mar não mudou, nas praias sem bichos, sem pedras, sem palmeiras, sem coqueiros, sem dongos.