terça-feira, março 31, 2009

Percepção


(…) Ser vadio e pedinte, não é ser vadio e pedinte:

É estar ao lado da escala social,

É não ser adaptável às normas da vida,

Às normas reais ou sentimentais da vida –

Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,

Não ser pobre a valer, operário explorado,

Não ser doente de uma doença incurável,

Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,

Não ser, enfim, daquelas pessoas sociais dos novelistas

Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,

E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor. (…)

Álvaro de Campos




Pobreza é aquela palavra que na escola antiga se acomodava à nomenclatura de substantivo – não ainda nome – não concreto, não visualizável como objecto com forma, tamanho ou volume, não palpável ao tacto. Teria sabor…? Odor…? Era um substantivo abstracto. Integrava-se mais no mundo da espiritualidade das palavras, era qualquer coisa que se sentia para além dos cinco sentidos estudados. Era um estado.

Quando muito menina, por essa altura em que esgrimia o concreto e o abstracto dos substantivos – de que agora nem é preciso ter a menor noção para se conseguir o 12º ano – não me recordo de me sentir incomodada com pobreza para além da palavra escrita com s ou com z. Pobreza era só falta de dinheiro e ser pobre era ser feliz, assim ensinava aquele texto do livro da primeira ou segunda classe do pai que trazia para casa um cacho de uvas. Pobreza era um conceito desejável porque era o caminho directo para o céu, ensinavam na catequese.

Havia ainda os pobres: eram os mendigos que passavam regularmente lá por casa, eram sempre pretos, sempre velhos. Havia um ainda novo, que caminhava velozmente com a sua muleta debaixo do braço e reclamava da nossa vizinha que o via chegar e logo dizia «vai com Deus, vai com Deus» sem esmola. Ele entrava no nosso jardim e dizia entre dentes «Deus é feijão». Talvez porque minha mãe não dava um prato de sopa como diziam os livros, mas tinha sempre um pão e cinco tostões, às vezes uma caneca de feijão. Não era pobre, aquele pobre de pedir.

Antigamente, antigamente, pobreza não existia. Não se sabia o que era. Quando se inventou a riqueza, então, surgiu a pobreza. E a riqueza consome a água dos lagos imensos em África, as florestas da América, os gelos do Árctico, destrói o ambiente dos povos que sempre viveram do que a terra lhes proporcionava, destrói a fauna e a flora dos continentes, destrói os outros sem piedade, sempre os outros, para que nós possamos ser ricos, ter mais do que o necessário à sobrevivência.

Eis que a pobreza chega até nós. É uma avalanche imparável, porque é imensa e cruel, é a pobreza de bens e a pobreza de espírito que nos assola. E nos consome.

Então queixamo-nos dos outros. Sempre dos outros.



sexta-feira, março 27, 2009

Primavera para ti


as fogueiras levantaram o seu grito

e as aves, não temendo o vento nem a sede,

vieram até mim e falaram-me de um tempo

em que o sangue do poema

haveria de unir todos os lados do mar.

as Mães, então, entoariam

uma dulcíssima canção,

embalando as crianças

para sempre adormecidas nos seus braços.

depois, com gestos muito lentos, guardariam

a imensidão do seu amor

num pequeno lenço de rosas

e névoa.

esse foi o tempo que eu esperei e vivi

ou recordei,

durante a estação da grande quietude.

talvez fosse, agora, o momento de contar como as flores

da primavera

tudo inundam de vida, de luxúria, de cor

e de intensos aromas.

mas a minha voz perdeu-se numa esteira

de deserto

silente



Na sua Ínsua, a Aquilária dedicou-me este poema belíssimo e eu só posso retribuir-lhe a gentileza com flores desta Primavera.









quarta-feira, março 25, 2009

Relance

(…)

Os dois sabem que são doidos, estendem os dedos na escuridão
entre as luas. Os dois sabem que mais adiante podem arder
de repente no meio do Verão, consumidos pelos segredos


e pela indiferença. Noites sem sexo são perfeitas, também;
e raras, e condenadas e incompletas. Borboletas no estômago,
batendo asas contra todas as paredes do corpo – não deixando
que ele adormeça, inquieto e insatisfeito, voltado para dentro

e para o passado. Românticos que se encontram quando nenhum
deles esperava outra oportunidade, outro caminho. Nunca estamos
preparados, diz um. Nunca estamos, repete o outro, quando
a primeira borboleta sossega depois de um beijo em dívida.


Francisco José Viegas




O palácio da vida é sumptuoso e vário. Sempre uma escada, aberta em degraus mais ou menos íngremes, mais ou menos largos, mais ou menos arredondados. Mais ou menos espaçosa, quantas vezes apertada entre paredes de pedra húmida e negra.


Subir é preciso. Na escalada emergem os momentos de prazer e de raiva, de esplendor e infortúnio. Crescem o musgo a hera, os fetos, a manta clara e ovo das primaveras. Dos patamares periódicos surgem as mãos que nos damos, as amizades, os amores, os desamores, a aprendizagem do convívio, as dores da separação dos afectos, o caminho árduo da sobrevivência. Por entre a cor, as flores, os pássaros chamando a vida, a chuva escorrendo, a tempestade troando, a água afagando as rochas, desejando-se em rios, perseguindo o mar.


Cumpre a nós escolher os passos, alisar as pedras, amainar as tempestades que pisamos, porque o caminho é de retorno. De retorno à solidão em que surgimos no caminho primeiro de chegada à vida. E a sabedoria está onde é preciso ser firme, equilibrar-se sem corrimãos onde os patamares escasseiam e um único piso se abre em galerias de perder a respiração.


Percorrer então uma a uma, vagarosamente, as penas que nos cobrem tornando-nos mais leves, o espaço abrindo-se. A águia sobrevoando o ninho. O cisne mirando-se no lago. Quem sabe o beija-flor prestes a ser comido pela serpente.



sexta-feira, março 20, 2009

A Anta


Em dia de aniversário, vale a reportagem a fazer pensar as leis que se foram registando ao longo dos tempos sobre a relação do Homem com Deus, a ideia de uma vida para além da morte, o respeito pelos espíritos dos que se foram, ou tão só o respeito pelo repouso daqueles que viveram antes de nós e nos possibilitaram o simples facto de estarmos aqui.


O Parque Nacional da Serra d’Aire e Candeeiros é o exemplo acabado das potencialidades que este país oferece a um turismo de qualidade, espaço de reserva que o não é para os interesses que se sobrepõem às leis da nação, nichos ainda de beleza natural incompreensivelmente adulterada, rasgada por pedreiras que se afundam, alargam, já para não citar os parques eólicos a quem pessoalmente dou o benefício da dúvida pela necessidade imperiosa da energia não poluente – do ar, que não dos olhos.


As imagens foram colhidas nas faldas da serra, algures pelas Alcobertas, onde existem grutas lindíssimas há longos anos fechadas, abandonadas, por incapacidade de organização condigna de visitas devidamente acompanhadas para contenção dos atentados às belezas das estalagmites e estalactites vandalizadas.


Aqui, uma igreja cresceu no território de um dólmen, recolhendo no seu interior, gentilmente, piedosamente, o monumento fúnebre ateu, evangelizando-o, ligando-o ao interior da nave principal, colocando-lhe um altar cristão, enfeitando-o a azulejo, cobrindo-o com telha…!


Sem mais, pois deixo os comentários para os fiéis de qualidade que o meu lugar foi cativando ao longo destes – já! – três anos de escrita!









terça-feira, março 17, 2009

Oportunidades


Bulia perto um corgozinho, e nele e nos frutos selvagens se foi restaurar. Não sentiu em redondo frauta de zagal, nem ferra de estorgador. Pois logo na manhã do segundo dia, vieram aves de todas as bandas, o carriço bonifrate, o pardal travesso e chalreador, a calhandra perluxosa, o tejasmo monástico, o pintassilgo mestre de solfa, toda a voz musical daqueles bosques, toda a asa daquele céu, e poisando sobre a cabana, cantando, pareceu a Gonçalo que com ele rezavam laudes à Virgem Mãe. E porque não haviam de ser anjos encarnados nos seres bonitos da terra? Em prova real do milagre, a todo o âmbito, nos lesins da fraga e na toalha de areia, cresceu a relva e desabrochou um jardim que nem que Maio tivesse chegado ali da terra gorda da promissão.

Aquilino Ribeiro



Retomo o leme da nau à deriva, que sem ela meus caminhos se desvanecem. Navegar é preciso, disse o poeta. Viver, nem sempre. Porque nem sempre a vida acontece para gáudio dos deuses, nem sempre a vida é suficiente para justificar a vida.

Há os fundos de glória, os prazeres da memória e o canto dos pássaros em cada esplendor de primavera. E há assomos de histórias cansadas que dormem no fundo de cada rosto cortado de rugas, do tempo, do momento, do sentimento. E há as vozes que debitam as palavras. Para além do sentido coordenado delas, há o tom que repassa e não mente, onde transparece a vibração da existência. Nem é preciso um olhar ou sequer a presença, basta o timbre para medir a pulsação da vida. Como as madrugadas acordam já fogosas de sons, como os dias pousam generosos de azul, o planeta roçando o equinócio.

A crise sobe de tom mas o sol adormece os dias de desespero, ergue-se o tempo das colheitas onde vai sobrando para quem não semeou; é a compensação dos grandes, dos intermediários, dos que não sujaram as mãos na terra. É o tempo dos melros que fazem pela vida, nem sei que sentido menos belo possa ter o animal de minha tão grande simpatia. Mas tem. E há muito melro por aí. Dizem. Que eu só conheço o casal que frequenta os meus campos, ele tem um bico amarelo e atrevido, ela é menos atraente; mas ambos têm o tal negro, brilhante e luzidio tom de que falou o vate.



terça-feira, março 10, 2009

Memorial


CÓLOFON OU EPITÁFIO

Trinta dias tem o mês
e muitas horas o dia
todo o tempo se lhe ia
em polir o seu poema
a melhor coisa que fez
ele próprio coisa feita
ruy belo portugalês
Não seria mau rapaz
quem tão ao comprido jaz
ruy belo, era uma vez


Ruy Belo























Um cemitério é um lugar de paz.


Ainda os há recatados e simples, para além de uma cancela, atrás de uma igreja humilde. E poetas descansando sob as palavras que escreveram em vida, quem sabe sonhando mais tempo para outros dizeres.


S. João da Ribeira é pouco mais que um largo cuidado a seu modo, enfeitado a azulejos, como convém. Ao fundo, a igreja de torre e poço de pedra a contarem da presença dos mouros, logo a seguir o lugar de repouso eterno. Ali nasceu Ruy Belo e a sua lembrança jaz numa campa rasa e sem flores.


Talvez ele a quisesse assim.


domingo, março 01, 2009

Diadorim


“Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas rendas… A noiva, com o alvo véu de filó…”

Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava ensinando a gostar de minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, se sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma história recontasse. Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais.

João Guimarães Rosa



Li há poucos dias que os Judeus atribuem grande responsabilidade aos pais quando decidem o nome a dar a seus filhos. Parece que é essa palavra que os vai ligar às coisas, às pessoas, aos lugares, e assim por diante. Achei curioso porque me identifiquei com isso e senti-me bem quando recordei quem decidiu o nome que dei aos meus. É que sabia na altura que era costume aceitar a opinião dos padrinhos, que não consultei.


Depois, tudo é uma questão de fazermos ligações, encontrar coincidências, procurar adaptar o nome a nós, ao que somos; claro que não em função do nome que nem sempre aceitamos mas não podemos na prática alterar (embora seja possível), mas em função de nós próprios, do nosso pulsar de vida. Afinal temos gostos, desgostos, amores, desamores, sabores e dissabores.


Os outros também podem embrulhar-nos o nome em pratas como os bombons de antigamente: o texto, que serve de entrada ao post de hoje, é um passo de um livro eterno – Grande Sertão:Veredas –, não para ser lido de uma vez, mas para se ler e reler aqui e além porque é profundo, porque é simples na sua complexidade de escrita, porque diz tão bem, tanto do que é natural e eu procuro sempre. Assim releio o autor que mereceu de seu grande amigo Carlos Drummond de Andrade o poema de que se transcreve o final a seguir e cujo fac-símile aparece no início da obra referida – publicado três dias após a sua morte, no jornal Correio da Manhã, periódico brasileiro do Rio de Janeiro que não sobreviveu ao regime militar instaurado no Brasil por meados dos anos sessenta.


(…)Embaixador do reino
que há por trás dos reinos,
dos poderes, das
supostas fórmulas
de abracadabra, sésamo?
Reino cercado
não de muros, chaves, códigos,
mas o reino-reino?


Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?

E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?
Tinha parte com... (não sei
o nome) ou ele mesmo era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
de se pegar.


Carlos Drumond de Andrade


Jawaa é uma palavra onomatopaica: repete o som da ave que voa. A semi-vogal inicial é correspondente ao meu nome de registo e as outras repetem-se no segundo nome. Com outros atributos que se colam, nem foi mal escolhido o nick, que o foi na altura por razões outras.


Uma forma de olhar o mundo. Há dias assim.