sexta-feira, maio 28, 2010

Estremecimento


Se as mãos pudessem (as tuas,
as minhas) rasgar o nevoeiro,
entrar na luz a prumo.
Se a voz viesse. Não uma qualquer:
a tua, e na manhã voasse.
E de júbilo cantasse.
Com as tuas mãos, e as minhas,
pudesse entrar no azul, qualquer
azul: o do mar,
o do céu, o da rasteirinha canção
de água corrente. E com elas subisse.
(A ave, as mãos, a voz.)
E fossem chama. Quase.

Eugénio de Andrade







No leito das palavras moram todas as emoções, pousam todas as sensações colhidas pelos espaços do sonho e da verdade, descansam todas as inquietações e desassossegos que se aquietam entre a trama dos tecidos, aquela rede fina onde se afundam e se perdem na memória do tempo.

As insónias não são mais que o acordar desses monstros que crescem com o escuro, se alimentam da solidão e do medo, predadores impiedosos duma razão nem sempre edificada em conformidade com a natureza anterior a nós, antes instituída por uma racionalidade impiedosa, como o homem constrói o seu ninho em paredes lisas com arestas duras afrontando os caminhos do vento, onde só o arquitecto catalão consegue espelhar o exemplo das pedras e das grutas, dos covis e das luras, dos ninhos dos pássaros.

Só depois as ruínas são adoçadas pelos anos, limadas pelos ventos, esboroadas pelas chuvas, as ruínas onde crescem os tons belos do musgo e o espreguiçar das silvas, onde se aspira o odor da madressilva nas primaveras de cada ano. Já não abrigam o ser que domina a terra, mas é o paraíso dos que fazem da terra um paraíso para quem domina. Por enquanto.

segunda-feira, maio 24, 2010

Fronteira



De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente
.
 Vinicius de Morais




Os homens não se contentam em olhar as rosas, eles mergulham nas veias que rasgam o corpo das pétalas e procuram a fonte que lhes dá cor e vida. Terão esse direito?

Se não ferirem, se descerem mansamente por entre os caminhos oferecidos, é partilha de saberes que conduz necessariamente a novas conquistas com vista a um futuro melhor. A água, a seiva, o sangue que flui dá força à vida que brota e se exibe orgulhosamente bela, mas logo fenece ao mais forte sopro de vento, batida pela chuva, pelo granizo que a fere de morte.

O problema, no caso das rosas, é sempre o aproveitamento excessivo da oferta de cor e calor, de sabor e odor que faz proliferar o pulgão, em breve tolhendo o brilho e a vida. Nobel inventou a dinamite e o uso que lhe deram dilacerou mundos.

Criou-se vida em laboratório pela primeira vez usando apenas produtos químicos. Um marco histórico da Humanidade que convém registar pela gravidade de que se reveste, pela persistência, vontade de saber, de chegar ao fundo das coisas. As consequências serão incalculáveis por agora, mas eu ainda acredito na evolução dos homens no sentido da cultura, da educação para a solidariedade e tolerância entre os povos.


sábado, maio 15, 2010

O pequeno salto



«Lá dentro, espera-o uma assembleia composta sobretudo por religiosos e religiosas. Mas quando o Pontífice entra o templo é um cenário de concerto pop: palmas e gritos, pessoas em pé sobre os espaldares das cadeiras e dezenas de telemóveis ao alto, a filmar e a fotografar. Não chega contemplar e sentir, parece, nem sequer entre aqueles a quem a seguir o Papa vai falar, na sua voz pausada, agora cada vez mais rouca, às vezes quase inaudível, sobre saber escutar com o coração e dar disso o exemplo.»
Fernanda Câncio in DN




A visita do Papa ao nosso país, também ele Chefe de Estado, desencadeou protestos de todas as bocas, por este ou aquele motivo. Também houve quem se insurgisse contra a animosidade a uma figura inquestionavelmente inteligente, e humana que baste para a sua condição de Sumo Pontífice de uma Igreja que dominou, e domina ainda, uma parte importante do mundo. As palavras que proferiu nas homilias não foram ditas com o coração, eram discursos pré-escritos, agravados pelo facto de serem proferidos numa língua que o Papa praticamente desconhece. Mas espero que tenha sido tocado pela fé que os Portugueses ainda demonstram por olhos cheios de lágrimas de emoção perante a sua figura, por actos inomináveis diante de uma Virgem em cujo poder e milagres acreditam.

No terceiro milénio depois de Cristo, não poderia um homem com o seu poder alterar pela positiva uma doutrina que já não diz nada aos verdadeiros cristãos de hoje? Todo o fausto, todo o cerimonial, toda a expressividade demonstrada pela multidão como em «um cenário de concerto pop», a publicidade à sua volta, a tudo a Cúria se adapta. Por que não avançar para uma palavra sã, dita ali na hora certa, de que a generosidade da Senhora de Fátima não depende dos sacrifícios corporais a que se submetem os seus fiéis? Para quem crê, para quem sente a religiosidade profundamente, uma palavra doce no momento certo iria fazer a diferença. E o Papa seria então o representante de Deus na Terra, aquele que tudo pode, o que veda o sofrimento, o que orienta as almas, o que diz a verdade que se espera.

Disse, e bem, que o mal da Igreja está dentro dela. Também Portugal tem o mal dentro de si e urge apontá-lo e enfrentá-lo e revertê-lo. Acabar com a mentalidade vinda da ditadura, do orgulho da fuga aos impostos e ao trabalho, das baixas para férias, do miserabilismo instalado. É preciso reagir neste país de rastos e não é desonra fazer pela vida, ainda que em circunstâncias menos satisfatórias ou consideradas menos apropriadas ao saber de cada um. A Ditadura, felizmente acabou. A Democracia, somos nós que a conduzimos, o Estado, somos nós. Temos uma sociedade constituída e, para além de termos o Dever de trabalhar para ela, temos o Direito de exigir conhecer onde e como estão a ser aplicados os nossos impostos. Quando elegemos um dirigente, se o elegemos, temos de confiar também na sua responsabilidade perante o país e não esgrimir contra ele quotidianamente. Temos eleições periódicas e há sempre o direito de alterar o que não nos parece bem.

A comunicação social tem responsabilidades acrescidas quando esquece a sua função que deveria ser de independência estabilizadora e atenta, e enche os telejornais de desgraça e misérias, sem notícias alargadas ou sequer resumidas de quanto actualmente nós damos cartas ao mundo em múltiplos saberes, que vão da investigação nas várias vertentes da Ciência à expressão das Artes. Nós temos um país de beleza inigualável, nós somos um povo com História, a divulgação da Cultura tem de ser uma prioridade para afastar os fantasmas da iliteracia vigente.

Citando Aristóteles, a identidade e a diferença entre os homens exprimem-se e medem-se pelas suas paixões.  

terça-feira, maio 11, 2010

Cálice



«Só dois reis elegeu Deus por si mesmo, que foram Saul e David, e a ambos os tirou de pastores, para que, pela experiência dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam de tratar os vassalos; mas seus sucessores, por ambição e cobiça, degeneraram tanto deste amor e deste cuidado que, em vez de os guardar e apascentar como ovelhas, os roubavam e comiam como lobos: Quasi lupi rapientes praedam.»

Padre António Vieira in Sermão do Bom Ladrão





Hoje deixaram de passar os romeiros por aqui. Os romeiros que não vão a Roma, mas vão ver quem vem de Roma e representa Deus na Terra, dizem os Católicos, Apostólicos, Romanos, pelo menos. Liguei o computador e li que não havia muita gente nas ruas a receber o Papa.

Benza Deus – como dizia a minha avó que Deus haja – quem se deixou ficar em casa a gozar estes dias santificados de tolerância de ponto, benza Deus quem tem alguma lucidez, para além da fé de cada um que é inalienável.


Não tenho nada contra o Papa, mas não foi o Papa quem chegou, foi o Rei. Embora nada tenha contra as monarquias, não sou monárquica pela simplicíssima razão de que aceitar um rei é partir do princípio que terei de aceitar todos os seus filhos só porque são de sangue azul e eu tenho a certeza de que o sangue deles tem a mesma cor do meu. Então este Rei que chegou representa o Cristianismo à boa moda do frei Tomás: pregar a pobreza e viver no luxo, incitar à oferta e não partilhar o pão, jurar castidade e abusar dos inocentes. 

Eu gostaria que o representante máximo da Igreja viesse a Portugal e me lembrasse o espanto de existir, me fizesse engolir as palavras e os pensamentos que são mais do que as palavras. Eu gostaria que o Santo Papa, se fosse o tal dito Santo na Terra, aceitasse a taça de prata desenhada por Siza, o tapete trabalhado manualmente noite e dia por artesãs devotadas, o serviço de porcelana especial de Vista Alegre, e mais o que eu não sei, juntasse tudo à flor de ouro que traz como oferta de luxo a Fátima. 

Seguidamente, que colocasse tudo isso na Christie’s ou Sotheby’s para leilão, e, como bom samaritano, fizesse reverter o produto final para acabar em Portugal com a «sopa dos pobres» de más memórias.


sábado, maio 08, 2010

Apesar das rosas



– "Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?"
– "Sei, oh meu pai! – prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. - Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?"
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então: - "Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver."

Alexandre Herculano in «Lendas e Narrativas»

 

O fascínio da água cresce devagar por entre a chuva que eu gosto de olhar nas gotas pousadas no verde das folhas, nas pétalas das flores, principalmente quando o sol descobre e se reflecte nos cristais das lágrimas contidas.

Das brumas, do outro lado do oceano, o mundo novo que dominou a última metade do século, quer eternizar-se no poder. O poder que cria dependência e onde todos os métodos são válidos quando o objectivo é irracionalmente a droga, seja ela qual for, sem impedimentos no uso de todos os meios para justificar o único fim. Que importa a pobreza, os suicídios, a destruição das conquistas tão sofridas de gerações, que importa a miséria e a fome, o sofrimento dos outros. A posse dos bens materiais acima de todos os afectos, acima do que dá sentido à vida, do que faz do homem o ser racional, solidário e leal, o homem que sonha um mundo melhor.

O velho mundo tem de manter-se eternamente humano e digno, crente na manutenção dos seus valores de integridade, para que possa dominar pelas melhores razões, dominar pelo perfume das rosas que os ventos espalham nas pétalas que voam, nas sementes dos choupos que revolteiam e cobrem a terra escura de branco.

Tem de magoar-se nos espinhos, deixar sangrar os dedos, abrir-se aos ventos, deixar-se vergar até que a tempestade passe. Misturar as lágrimas com a chuva, semear, plantar a horta, onde só há jardim. Apesar das rosas.