terça-feira, maio 11, 2010

Cálice



«Só dois reis elegeu Deus por si mesmo, que foram Saul e David, e a ambos os tirou de pastores, para que, pela experiência dos rebanhos que guardavam, soubessem como haviam de tratar os vassalos; mas seus sucessores, por ambição e cobiça, degeneraram tanto deste amor e deste cuidado que, em vez de os guardar e apascentar como ovelhas, os roubavam e comiam como lobos: Quasi lupi rapientes praedam.»

Padre António Vieira in Sermão do Bom Ladrão





Hoje deixaram de passar os romeiros por aqui. Os romeiros que não vão a Roma, mas vão ver quem vem de Roma e representa Deus na Terra, dizem os Católicos, Apostólicos, Romanos, pelo menos. Liguei o computador e li que não havia muita gente nas ruas a receber o Papa.

Benza Deus – como dizia a minha avó que Deus haja – quem se deixou ficar em casa a gozar estes dias santificados de tolerância de ponto, benza Deus quem tem alguma lucidez, para além da fé de cada um que é inalienável.


Não tenho nada contra o Papa, mas não foi o Papa quem chegou, foi o Rei. Embora nada tenha contra as monarquias, não sou monárquica pela simplicíssima razão de que aceitar um rei é partir do princípio que terei de aceitar todos os seus filhos só porque são de sangue azul e eu tenho a certeza de que o sangue deles tem a mesma cor do meu. Então este Rei que chegou representa o Cristianismo à boa moda do frei Tomás: pregar a pobreza e viver no luxo, incitar à oferta e não partilhar o pão, jurar castidade e abusar dos inocentes. 

Eu gostaria que o representante máximo da Igreja viesse a Portugal e me lembrasse o espanto de existir, me fizesse engolir as palavras e os pensamentos que são mais do que as palavras. Eu gostaria que o Santo Papa, se fosse o tal dito Santo na Terra, aceitasse a taça de prata desenhada por Siza, o tapete trabalhado manualmente noite e dia por artesãs devotadas, o serviço de porcelana especial de Vista Alegre, e mais o que eu não sei, juntasse tudo à flor de ouro que traz como oferta de luxo a Fátima. 

Seguidamente, que colocasse tudo isso na Christie’s ou Sotheby’s para leilão, e, como bom samaritano, fizesse reverter o produto final para acabar em Portugal com a «sopa dos pobres» de más memórias.


5 comentários:

Rocha de Sousa disse...

Magnífico Sermão da Montanha,o seu.
Também a minha avó Angélica dizia o
que escreveu: Benza-Deus.O povo me-
rece o louvor, o Papa que é rei,vem
para receber ofertas, não vem ofe-
recer nenhuma. Nem pão,nem inocên-
cia, nem humildade.
Lindo destino para as ofertas: um
leilão cujo rendimento teria muito
a quem servir.

Justine disse...

Hipocrisia. Circo, para entretar as gentes e desviar-lhes a atenção do que é essencial. Aceita a miséria na terra, e assim terás o eterno júbilo!
Jawaa, reconheço-me no excelente texto que escreveste e só me apetece é usar vernáculo para classificar o escândalo desta visita e a subserviência dos nossos poderosos...

Nadine Granad disse...

Muito feliz em ver em atividade esse espaço!
*-*

E concordo com o colega... haha... Muito belo o seu Sermão da Montanha!


Abraços carinhosos =)

boutique de ideias disse...

Fascinante!! Brilhante sua análise e percepcoes!! Tiro meu chapéu!!!!
Parabéns! Sempre é um deleite ver espacos criativos e ler bons textos!!!
Sua visita será uma honra, geyme.blogspot.com

Aquele beijo!!!

Manuel Veiga disse...

dói como espinho cravado, não é? sente-se no teu texto o palpitar dessa dor!

mas Igreja e pobreza não rimam. Igreja rima antes com Poder...e poderio!

excelente.

beijo