terça-feira, fevereiro 27, 2007

Permanência

«O meu começo de livro favorito é de um romance de L.P. Hartley, escritor que suponho ninguém lê mais. Leio eu. A primeira frase diz assim: «O passado é um país estrangeiro. Fazem coisas diferentes, lá.» E desse país estrangeiro que continua a existir paralelamente ao presente emerge de vez em quando um abraço, uma frase, uma palmada enternecida que me poisa no ombro numa levezazinha esperançosa

- Lembras-te de mim?

e os olhos da alma com dificuldade em focá-las, uma recusa interior em aceitar os desmandos da sorte, a certeza mais ou menos trémula de ser ainda um homem para mais tarde. Quantos anos tenho? Dá-me ideia que poucos, acabei de nascer. Nunca perguntei a ninguém

- Lembras-te de mim?

porque sou outro sempre. Lembrarem-se de quê? O da escola ou do liceu ou da faculdade ou da tropa é um parente vago, um antepassado difuso entre criaturas difusas, um fulano que provavelmente nunca existiu, inventado por fotografias e recordações imaginadas.»

António Lobo Antunes


Devagarinho, abri a porta do sótão e o álbum continuava lá. As fotos são na sua maioria pequeninas, sem cores vivas, algumas desbotadas, mas nítidas e prazeirosas ao toque. Têm um rendilhado no corte e cheiram a infância, a calor e a sol, a pé descalço na areia da praia, a bota pisando o capinzal do rio, fazendo splash na água a ver o ninho dos patos.

Nestas imagens mínimas está a quietude dum tempo que já vivi numa vida outra, de que a memória reserva algumas emoções e afectos, muitos afectos. Mas aqui, neste papel lustroso e amarelecido, estão gravados cenários e rostos que acendem recordações mais reais. São os documentos da vida, o filme que não havia, o DVD. O que virá a seguir?

Nas minhas mãos, esta foto resgatada ao fundo do tempo em que eu não era ainda, minha mãe de esperanças; risonha, amparando meu irmão, junto da Amiga que a acompanhou como tal até ao fim dos dias, na amargura pela perda prematura desse menino.

As máquinas marcam o tempo como um relógio.

Quando cheguei, o Peugeot de matrícula L-4005, de que mantenho a lembrança, com os faróis ainda dentro da grade frontal.























Oito anos passados, na casa nova e a máquina outra, um Sumbeam Talbot. O automóvel que permanece outros oito anos depois, no casarão da fazenda, e o mesmo que nós os dois conduzimos na maioridade. A mesma máquina, outros oito anos mais tarde, atravessou o oceano e me levou à igreja, a mesma que permaneceu e levou a família para acompanhar meu pai à sua última morada.

Olhando as máquinas, apenas as máquinas, observando o espaço mais recente das nossas vidas, espanto-me com a celeridade da vida à medida que os anos passam. Quantos mais automóveis manuseei nas décadas que se seguiram!

As mentalidades alteram-se e, querendo ou não, por lúcidos que sejamos, a ânsia de consumo toca a todos, sem apelo nem agravo. A dependência das máquinas que nos assola a existência leva a uma poluição sem limites e desnecessária, se todos quisermos.

Mas, também aqui, não há Solidariedade.


sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Zeca Afonso


Olha o sol que vai nascendo…

Anda ver o mar!

Os meninos vão correndo, ver o sol chegar…

Ver o sol chegar!

Menino sem condição, irmão de todos os nus,

Tira os olhos do chão, vem ver a luz!

Menino do mal trajar, um novo dia lá vem

Só quem souber cantar, virá também.

Negro, bairro negro

Bairro negro…

Onde não há pão, não há sossego…

Menino pobre o teu lar

Queira ou não queira o papão,

Há-de um dia cantar, esta canção:

Olha o sol que vai nascendo…

Anda ver o mar!

Os meninos vão correndo, ver o sol chegar…

Ver o sol chegar!

Se até dá gosto cantar, se toda a terra sorri,

Quem te não há-de amar, menino a ti…

Se não é fúria a razão, se toda a gente quiser

Um dia hás-de aprender, haja o que houver

Negro, bairro negro

Bairro negro…

Onde não há pão, não há sossego…

Menino pobre o teu lar, queira ou não queira o papão,

Há-de um dia cantar, esta canção:

Olha o sol que vai nascendo…

Anda ver o mar!

Os meninos vão correndo, ver o sol chegar…

Ver o sol chegar…

Ver o sol chegar…!


domingo, fevereiro 18, 2007

O tempo


Só esta liberdade nos concedem

Os deuses: submetermo-nos

Ao seu domínio por vontade nossa.

Mais vale assim fazermos

Porque só na ilusão da liberdade

A liberdade existe.

Ricardo Reis




A voz do povo é desde sempre a mais sábia: o tempo perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem, e o tempo respondeu ao tempo que o tempo tem tanto tempo, quanto tempo o tempo tem. Esta frase contém em si todo o significado que possamos dar ao que chamamos tempo, a quarta dimensão de Einstein.

O tempo é Deus, só existe porque nós inventámos os relógios e os calendários. Chamamos tempo a um espaço de vida balizado entre dois limites. Cada um de nós pode ter tempos diversos dentro de si e, mais ainda, eles podem coexistir. Exemplo acabado está em Pessoa ortónimo, que conviveu com os seus heterónimos fazendo parte da vida destes.

Le temps est notre pire ennemi, escreveu Camus e não tenho a certeza de que ele estivesse a pensar no limite final de vida, nosso inimigo porque nos conduz à morte. É o nosso pior inimigo porque o não podemos vencer, é Deus porque o não podemos enganar. Ele é probo e inflexível. Não se corrompe, continua a sua marcha inexoravelmente e temos de conviver com isso.

Se não o podes vencer, junta-te a ele, e esta frase também não é da minha lavra. Para quê recusar a nós a dádiva do tempo? Para que ocultar a beleza das cãs, as rugas do riso que nos marcam a face, o andar sem pressa, a consciência de tudo conhecer, a certeza de saber tão pouco?

O tempo do frio

O tempo da praia

O tempo das vindimas…


O tempo das chuvas

O tempo do café – o tempo dos cafezais em flor, quando o branco pousa e domina todo o imenso espaço verdejante

O tempo do milho – a faina, as histórias do milho-rei, as saudades outras de desfolhadas de aldeia

O tempo…

O tempo é um rio que corre para o mar e nunca esgota a água nem acrescenta o oceano. Gosto de sentir-me o Cubango, o rio que nasce no meu planalto, corre para sul e se afunda, desaparece lentamente nas areias do Calaari.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Dia dos Namorados

Precisamente hoje, uma amiga enviou-me esta história de adopção, com legendas em inglês. A cadelinha Giselle, antes do nascimento das suas crias, fora por duas vezes buscar o esquilo à sua gaiola, para o colocar na sua cesta.
Decidi divulgar aqui as imagens neste dia, dito dos namorados.
A verdade é que eu gosto muito de animais e estas imagens enternecem-me.
Este namoro não é bonito?








sábado, fevereiro 10, 2007

Feição

- Como te chamas?
- Ana Menina!


É a apresentação que me cumpre fazer de quem comigo partilha agora este espaço.

Filha. Continua a ser a minha Ana Menina, mas cresceu nela a amiga dos momentos difíceis que a vida tece.

Mulher. Inteligente, lutadora, solidária. E, principalmente, generosa.


Esgotada física e intelectualmente no meu último ano de trabalho, propôs-se cumprir por mim o objectivo que delineara para iniciação à poesia que eu vinha a sentir sem condições de concretizar. Em duas
sessões de trabalho a convite, conseguiu que cada um dos alunos escrevesse, sozinho, em jeito de Boris Vian, o seu poema de vida. Inserida no grupo, ela própria escreveu:


Eu quero uma vida em forma de vida

Em forma de silêncio à beira-mar

Quero uma vida em forma de concha numa arca escondida

Eu quero uma vida em forma de tinta permanente

De traço de arquitecto, em forma de gato feliz

Eu quero uma vida em forma de instante,

De planície, de infinito a perder-se de longe

Ou de caixa fechada

Guardada no fundo de alguém à minha espera

Eu quero uma vida em forma de outra,

De pessoa sozinha em alto-mar sem medo

Eu quero uma vida em forma de fotografia por tirar

De envelope colorido por abrir, em forma de jóia

Eu tenho-a, mas ainda não é o bastante

Eu um dia vou «ser» contente.


terça-feira, fevereiro 06, 2007

Escritas


Às vezes a vida pára tão quieta dentro de mim que ouço o motor suave do pensamento e a pressa do sangue a latejar no fundo dos ouvidos. Não gosto particularmente deste som, deste quase zumbido, deste adejar manso e falso. Espero um tempo que me parece pouco e nem sempre o é.

Recebi hoje, de uma amiga, o texto que se segue e condiz com o meu estado de espírito. Não vale a pena. «Tudo vale a pena se a alma não é pequena» é pura poesia para quem tem o corpo a mirrar. Para quê cansar-me? Para quê ensinar o que está provado já não ser preciso aprender?

Ainda um laivo de rebeldia: quem não souber ler fluentemente, será que compreende a mensagem que para mim é clara?

3M D14 D3 V3R40, 3574V4 N4 PR414, 0853RV4ND0 DU45 CR14NC45 8R1NC4ND0 N4 4R314. 3L45 7R484LH4V4M MU170 C0N57RU1ND0 UM C4573L0 D3 4R314, C0M 70RR35, P4554R3L45 3 P4554G3NS 1N73RN45. QU4ND0 3575V4M QU453 4C484ND0, V310 UM4 0ND4 3 D357RU1U 7UD0, R3DU21ND0 0 C4573L0 4 UM M0N73 D3 4R314 3 35PUM4.
4CH31 QU3, D3P015 D3 74N70 35F0RC0 3 CU1D4D0, 45 CR14NC45 C41R14M N0 CH0R0, C0RR3R4M P3L4 PR414, FUG1ND0 D4 4GU4, R1ND0 D3 M405 D4D45 3 C0M3C4R4M 4 C0N57RU1R 0U7R0 C4573L0. C0MPR33ND1 QU3 H4V14 4PR3ND1D0 UM4 GR4ND3 L1C40; G4574M05 MU170 73MP0 D4 N0554 V1D4 C0N57RU1ND0 4LGUM4 C0154 3 M415 C3D0 0U M415 74RD3, UM4 0ND4 P0D3R4 V1R 3 D357RU1R 7UD0 0 QU3 L3V4M05 74N70 73MP0 P4R4 C0N57RU1R. M45 QU4ND0 1550 4C0N73C3R 50M3N73 4QU3L3 QU3 73M 45 M405 D3 4LGU3M P4R4 53GUR4R, 53R4 C4P42 D3 50RR1R! S0 0 QU3 P3RM4N3C3 3 4 4M124D3, 0 4M0R 3 C4R1NH0.

0 R3570 3 F3170 D3 4R314

Só o que permanece é a amizade, o amor e carinho.

O resto é feito de areia.

Cerâmica

Passo, este ano, no corredor do pavilhão das oficinas todos os dias e a tristeza do fim da cerâmica na minha escola ainda me tolhe o coração. Está, hoje, como a F. a deixou em Julho:trabalhos recentes dos alunos, outros ainda por catalogar, o laboratório que mais parece uma 'pharmacia', material, ..., enfim, o cenário de uma oficina fechada e vazia à espera da porta aberta.





















segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Imagens d'aqui e d'além






Esta última imagem foi copiada do site Sanzangola