«O meu começo de livro favorito é de um romance de L.P. Hartley, escritor que suponho ninguém lê mais. Leio eu. A primeira frase diz assim: «O passado é um país estrangeiro. Fazem coisas diferentes, lá.» E desse país estrangeiro que continua a existir paralelamente ao presente emerge de vez em quando um abraço, uma frase, uma palmada enternecida que me poisa no ombro numa levezazinha esperançosa
- Lembras-te de mim?
e os olhos da alma com dificuldade em focá-las, uma recusa interior em aceitar os desmandos da sorte, a certeza mais ou menos trémula de ser ainda um homem para mais tarde. Quantos anos tenho? Dá-me ideia que poucos, acabei de nascer. Nunca perguntei a ninguém
- Lembras-te de mim?
porque sou outro sempre. Lembrarem-se de quê? O da escola ou do liceu ou da faculdade ou da tropa é um parente vago, um antepassado difuso entre criaturas difusas, um fulano que provavelmente nunca existiu, inventado por fotografias e recordações imaginadas.»
António Lobo Antunes
Devagarinho, abri a porta do sótão e o álbum continuava lá. As fotos são na sua maioria pequeninas, sem cores vivas, algumas desbotadas, mas nítidas e prazeirosas ao toque. Têm um rendilhado no corte e cheiram a infância, a calor e a sol, a pé descalço na areia da praia, a bota pisando o capinzal do rio, fazendo splash na água a ver o ninho dos patos.
Nestas imagens mínimas está a quietude dum tempo que já vivi numa vida outra, de que a memória reserva algumas emoções e afectos, muitos afectos. Mas aqui, neste papel lustroso e amarelecido, estão gravados cenários e rostos que acendem recordações mais reais. São os documentos da vida, o filme que não havia, o DVD. O que virá a seguir?
Nas minhas mãos, esta foto resgatada ao fundo do tempo em que eu não era ainda, minha mãe de esperanças; risonha, amparando meu irmão, junto da Amiga que a acompanhou como tal até ao fim dos dias, na amargura pela perda prematura desse menino.
As máquinas marcam o tempo como um relógio.
Quando cheguei, o Peugeot de matrícula L-4005, de que mantenho a lembrança, com os faróis ainda dentro da grade frontal.
Oito anos passados, na casa nova e a máquina outra, um Sumbeam Talbot. O automóvel que permanece outros oito anos depois, no casarão da fazenda, e o mesmo que nós os dois conduzimos na maioridade. A mesma máquina, outros oito anos mais tarde, atravessou o oceano e me levou à igreja, a mesma que permaneceu e levou a família para acompanhar meu pai à sua última morada.
Olhando as máquinas, apenas as máquinas, observando o espaço mais recente das nossas vidas, espanto-me com a celeridade da vida à medida que os anos passam. Quantos mais automóveis manuseei nas décadas que se seguiram!
As mentalidades alteram-se e, querendo ou não, por lúcidos que sejamos, a ânsia de consumo toca a todos, sem apelo nem agravo. A dependência das máquinas que nos assola a existência leva a uma poluição sem limites e desnecessária, se todos quisermos.
Mas, também aqui, não há Solidariedade.