quinta-feira, outubro 30, 2014


Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz de um coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça 
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

Antero de Quental 


Os Santos, O Pão por Deus, as broas, o Halloween importado, nada disto consta da minha memória de criança. Só o Dia dos Finados, o Dia dos Fiéis Defuntos, me inspirava o respeito que os mais velhos lhe atribuíam, a missa da manhã em que as senhoras trajavam de negro, os homens de fato escuro, a romagem ao cemitério.

Do que me lembro da terra longe em que cresci, era feriado o Dia de Todos os Santos e, na manhã do dia seguinte, Dia dos Finados, havia tolerância de ponto para cumprir a veneração aos Féis Defuntos, a que o dia era dedicado. E porque os meus antepassados repousavam a milhares de quilómetros dali, por estas aldeias beirãs, eu entrei muito tarde num cemitério, local de culto qual igreja, porque sempre que passávamos de carro, em frente dele, minha mãe se benzia com recolhimento.

É um lugar equívoco para mim ainda hoje. Não tenho a certeza de sentir o peso  dos sepultados, talvez porque os espaços que frequento esporadicamente estejam coloridos e bem cuidados, talvez porque prefira observar todo o conjunto como marca de cultura dos povos. Eu recuso-me a aceitar que alguma vez possa eu própria ali repousar, entre flores que seja, fechada em mausoléus ou coberta de mármores, recuso qualquer lápide com o meu nome inscrito. Prefiro viver na memória dos que em vida me encheram de flores, dos que se lembram do meu vulto nas suas vidas, dos que cruzaram o meu caminho e seguiram mesmo sem olhar.

Os meus defuntos estão vivos em mim, cultivo cá dentro o jardim de rosas perfumadas e espinhosas, de cactos agrestes que também florescem, de relva plana, de terra batida, de pedras e de estrume. Sou um jardineiro atento, um arquitecto paisagista, a minha visão é limitada ao meu corpo, ao meu sentir, a verdade dos outros nem sempre é a minha verdade.
E quando é, quando isso acontece, a entrega não tem limites no tempo que me resta.

E porque um dia "hei-de ser pó e cinza e nada", quero que a natureza me receba já pronta, em cinza, em pó, dentro do nada a intemporalidade dos afectos, dentro do nada os sonhos imaterializados.



sexta-feira, outubro 10, 2014

Ave do Paraíso


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

                                                                                    Florbela Espanca



Chegou o Outono em passos ardentes de Verão, e logo a serenidade chegou, a amenidade dos dias, os fins de tarde a pedirem um agasalho leve, a chuva embrulhada nos flocos de algodão que povoam o azul bem no alto.
Este ano chegou com as estrelícias, uma planta exótica, trazida da ilha do paraíso das flores – erguida no meio do Atlântico para regalo de quem a habita. As suas flores são deslumbrantes no seu desabrochar: lembram um pássaro em voo plano e soberbo, abrem outras asas depois, outras ainda e outras mais sem que perca o garbo e o colorido invulgar.
Alguns anos, vários anos de espera a olhar as folhas grossas e esguias perfilando-se primaveras adiante, até que finalmente este Outono fez chegar a oferenda ansiada. Conheci-as quando há larguíssimas décadas – era uma menina então à descoberta do mundo novo – as encontrei no alto da ilha, como pássaros descolando dos tufos de folhas, imagem que partilho ainda hoje.
Como o amor floresce, uma e outra vez, como a vida desabrocha devagar, a mesma flor abrindo, erguendo asas, murchando umas, outras com o mesmo fulgor se abrem uma e outra vez até que já sem forças se deixam envelhecer, perder a cor, perder o viço, até se apagarem para que outra flor ao lado recomece o caminho antes palmilhado.
Desta vez em outro caule esguio, do outro lado da planta, outra perspectiva, outros olhares, a mesma beleza, sempre, renovada.