segunda-feira, março 16, 2015

RECOMEÇAR

Eu sei, é preciso esquecer,
desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
os nossos mortos anseiam por morrer
e só a nossa dor pode matá-los.

Tanta memória! O frenesim
escuro das suas palavras comendo-me a boca,
a minha voz numerosa e rouca
de todos eles desprendendo-se de mim.

Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?
Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde
no que pode ser dito. Onde estavas
quando chamei por ti, literalidade?

E todavia em certos dias materiais
quase posso tocar os meus sentidos,
tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,
os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.
Manuel António Pina


Os dias arrastam-se pesados, mas eis que chega o equinócio da primavera a lembrar que a natureza continua a celebrar a vida, a vida em constante renovação, alheia aos sinais de decrepitude que os homens insistem em celebrar. É certo que os humanos morrem vitimados pela idade, pelas doenças e pela fome que a fartura de poucos produz; mas é certo também que os outros seres da natureza seguem o mesmo percurso inexorável de renovação da vida sem a angústia de Sísifo.

Hoje quero celebrar a vida deste espaço que teve início aqui, vai quase uma década. Foi uma tarefa sugerida num tempo em que foi preciso ajuda para não soçobrar, foi uma tarefa nem sempre fácil mas certamente de fruição plena. À medida que os anos foram passando, o espaço de libertação foi encontrando fronteiras e caminhos fechados, por vezes encruzilhadas onde era difícil escolher sem bússola, e o cansaço a pouco e pouco foi deixando marcas. A exemplo de outros, tempo de fechar a casa.

Porém não sou capaz. Foram muitas as alegrias partilhadas, foi muita entrega, foi o tirocínio para publicação de um livro, para outras escritas que me roubam o tempo para este espaço, para pensar numa renovação. Mas é tudo uma questão de método para gerir as horas de insónia e de lazer, é apenas querer. Estes nove anos completados deram frutos dentro de mim enquanto semeava pedaços de vida que ninguém queria ouvir, pedaços soltos de lava em que estava atolada. Ficou a cratera e bem no fundo a lava ainda arde, mas repousada.

Olho-me ao espelho e o meu retrato mudou. Pintei-me de branco, das tantas vezes que saltei o oceano para travar conhecimento com mais um continente onde mantenho aquele pedaço de mim que refiro no primeiro post, onde encontrei Mr. Binx menino e mimado, o Mr. Binx promovido a Lord a quem presto homenagem no último post. Pintei-me de branco e risquei-me de rugas com os amores, os afectos mais perto que hoje me acrescentam, me ocupam os dias que restam.

A nossa hora de verão está a chegar, já os campos se cobrem de amarelo e branco e as mimosas alegram as estradas, nos jardins florescem os jacintos odorosos, os narcisos, as prímulas, os amores-perfeitos. Este ano temos um eclipse solar: pode ser, como criam os antigos, que seja uma mensagem dos deuses.

Vou tentar regressar ao meu espaço com passos mais certos, reciclar leituras, esquecer aqui o desencanto pelos figurantes da política do nosso país bonito, manchado de cinismo, hipocrisia e indignidade. 

 

quarta-feira, janeiro 14, 2015

PERDA


«... Chorei em frente a ele, e choro aqui em frente de todos os que me lêem. Não quero saber se sou piegas. Não tenho medo de parecer ridículo: o meu amor pelos animais será sempre maior do que isso. Morreu-me o gato, morreu uma parte importante da minha vida com a minha mulher. Vou ter de habituar--me. Não sei se me habituo.»

Rodrigo Guedes de Carvalho




Mr. Binx era um senhor.

Manso, cordial, majestoso. Chamavam-lhe Lord Binx, tal a dignidade com que se investia da mesma placidez quer perante a paisagem branca da neve que se acumulava do outro lado da janela quer entre as orquídeas que trazia o sol quente das primaveras.

Do aconchego do fundo da cama nos invernos longos, erguia-se com pontualidade inglesa para a primeira refeição, que exigia com falas doces a quem com ele partilhava a vida. E era compreensivo. Sabia esperar, vigiando a chegada de cada um ao fim dos dias solitários pela casa que deixavam à sua guarda.
Mal os primeiros bolbos de jacintos e narcisos furavam a neve, fofa da temperatura mais amena, abrindo cores a anunciar o verão, Mr. Binx preparava a agilidade para os primeiros passeios de fim-de-semana nos jardins, a quedar-se em esperas por algum chipmunk incauto ou esquilo ou passaroco, o verão a apetecer-lhe já, num gozo antecipado.

Era vê-lo então, nas noites quentes dos julhos, escutando os recantos mais secretos, farejando os odores pelas verduras e flores, já a água cantarolando no pequeno regato, límpida e fresca. Manhãzinha e Mr. Binx, cansado da estúrdia da noite, sentava-se com o seu porte habitual na pedra grande junto à soleira da porta das traseiras, até que um assobio lhe dava o sinal para recolher a casa, para o descanso merecido, enquanto os seus irmãos humanos iniciavam a labuta diária.

Apreciava sobremaneira os passeios de fim-de-semana prolongados ao longo do lago Ontário para a pesca. Novos lugares, novos cheiros, espaços largos, a segurança de escutar o assobio quando já se sentia perdido, embriagado pelos ventos e odores insuspeitados. É que os anos iam passando, o corpo a pesar, e os sentidos a mentirem cada vez mais.

Longe os tempos da juventude, quando o seu amigo o deixava liberto em casa térrea, entrando e saindo a seu bel-prazer, indepententemente das estações do ano. Mais elegante, mais musculado, a neve não o impedia das aventuras no exterior, encontros por vezes desagradáveis com os pouco amistosos racoons. Porém o tempo não perdoa e não lhe deu mais tréguas. Bem sentiu a impotência de quem não quis deixá-lo abandonar este espaço sem luta. Só que o destino é inexorável e ele saltou para outra dimensão.

Mr. Binx, Lord Binx, era tão só um gato.

Um gato que partilhou durante dez anos a vida de um ser humano exilado, o esteio que o não deixou soçobrar na solidão de um país distante, desconhecido, frio, agreste. 


Por isto será para sempre recordado com gratidão, como um nobre, Lord Binx!