quarta-feira, abril 30, 2008

Outra vez Maio


«Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como uma baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário em todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. »

Mia Couto




É lugar comum referir quem tenha uma pedra no coração, ou um coração de pedra, num desses noticiários insanos de fait divers tornado notícia de abertura de jornal. A pedra imagina-se aí informe e cheia de arestas, pontuda, cinzenta, enegrecida de sentido pejorativo.

Há outras pedras, porém. Lisas, polidas, suaves ao tacto, branqueadas pelas águas a que dão o nome de seixos. Rolam, não ferem, apenas pesam como as outras.

Às vezes acordo com uma no peito. Também é lugar comum, mas a sensação existe. Não sei definir bem o local, talvez mais perto da boca do estômago, no peito, enfim. E não é um seixo, não. É uma pedra. Como a quiserem imaginar.

Então sinto-me com um peso que não é o meu, de seu natural. Tento saber o porquê daquela companhia, quem a trouxe – se alguém o fez – ou se não passa de um daqueles cadinhos que não coube nas memórias da noite e acabou rolando para outro lugar. Foram os sonhos, os pesadelos, as incertezas, as angústias de um sonho mau.

Pois bastas vezes lá sinto o peso da pedra e, sem esforço, vejo-a. Já morei num lugar longe onde havia pedras como as não vejo por aqui. Pedra ferrosa. De cor castanho ferrugem, arredondadas, crivadas de orifícios circulares onde moravam duendes e fantasias de criança. Às vezes grilos.

Essas pedras enormes bordejavam a casa do tempo de férias, formavam um degrau, era lá que nos sentávamos a ver chegar o gado, recolher os bichos que cirandavam com o sol e procuravam então o abrigo da noite. Com outros bichos junto de mim, quietos. Outros voltejando no ar.

Essas pedras permanecem, tenho a certeza. A casa não.

Foi ali que nasceu a jawaa, quem sabe iria pequenina esbracejando dentro daqueles círculos, criando asas dentro do ovo, vendo a luz através da casca, em cada noite já sem sono, em cada ida às perdizes, em cada cacimbo, em cada madrugada, em cada entardecer.

Eis que chega um novo Maio.

As minhas flores já abriram.

São inigualáveis.

domingo, abril 27, 2008

Passou Abril, vai chegar abril.

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo para mim

Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim

* Letra original,vetada pela censura; gravação editada apenas em Portugal, em 1975.




1978
(segunda versão)




Foi bonita a festa, pá
Fiquei contente
E inda guardo, renitente
Um velho cravo para mim

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto do jardim

Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar

Canta a primavera, pá
Cá estou carente
Manda novamente
Algum cheirinho de alecrim



Parece que o tempo da vida se esvai num dia de cravos vermelhos.

Cravos vermelhos que pintaram uma revolução de esperança e de paz, porque – ó jovens! – não houve mortos. Houve apenas cravos da cor de sangue que não foi derramado e uma criança, um puto, um gaiato de Lisboa a colocar um no cano da arma de um soldado português, como quem enfeita uma jarra de cristal. Como a foto bonita que correu mundo, Chico Buarque imortalizou Abril numa canção de solidariedade como só um irmão sabe fazer, sujeitando-se à mesma censura que nos afogara.

Cada vez menos se vêem cravos nas lapelas, nos cabelos e mãos das mulheres. Os que agora cantam as canções nas ruas nem sabem por que o fazem, nem seus pais decerto recordam a opressão e o jugo.

Restam os cravos derramando-se pelas floreiras em cada casa onde se festeja a liberdade, as liberdades que também trouxeram mágoas, onde ainda se recorda a simbologia que vai permanecer como a insígnia do povo português.


domingo, abril 20, 2008

As Melodias do Som

«…Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.»

Bernardo Soares.


Já conduzia pela mão jovens serpenteando o caminho da escrita – como a chuva ajuda a abrir as rosas – quando praticamente se aboliu a grafia dos acentos graves. Início dos anos setenta.

Assim, ao cuidado de agradàvelmente dar uma volta ao acento quando transformava o adjectivo em advérbio de modo (ainda se nomeiam assim?...), também tinha de o fazer se precisasse de abrandar o chá em chàzinho, deitando-lhe um pouco de leite. Para não ficar só, ou sòzinho, que é mais doce se não quiser o açúcar. Restou o «à» e o «àquele» com seus companheiros de tribo.

Foi fácil, era só não pôr o acento.

Nessa altura já não tinha meu pai a protestar terem acabado com o trema – que nunca usei em Português mas lhe admitia estatuto – acento que já não constava da minha tranquilidade, era meu pai quem se sentia arguido. Agora ouço o mesmo protesto do outro lado do Atlântico.

Mas concordo com o Acordo Ortográfico, é bem de ver. Facilita quem já escreve mal, os que vão aprender, os que nunca aprenderam até hoje. Os que sabem escrever sem erros ortográficos, enfim, que aprendam a desembaraçar-se de letras inúteis, nem é difícil. Bem dizia Camus: c’est l’habitude

Pelo que li sobre o assunto, as línguas europeias disseminadas pelo mundo têm uma forma de acordo, tácito ou escrito, de respeitarem entre si as diferenças de grafia. O que não podia, não deve continuar a haver, é uma língua, o Português, com duas grafias oficiais.

Portugal, não somos nós, os que aqui habitamos; é hora de lembrar Pessoa, o homem da futurologia. Temos é a obrigação de preservar a Língua Portuguesa, falada por mais de 200 milhões de pessoas, numa grafia única. Tudo o resto é paisagem, e digo-o com o sentido duplo de que a cada paisagem a sua tonalidade oral, o seu encanto único, os sotaques próprios de cada espaço.

Há lá coisa mais bonita do que encontrar num mundo longe um conterrâneo e identificá-lo como oriundo das Ilhas, do Norte, do Alentejo, de Angola, Brasil, Timor…?!

quinta-feira, abril 17, 2008

O Vento


...Preciso habituar-me
a substituir-te
pelo vento,
que está em toda a parte

e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.
Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão

felicidade a ninguém.
Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.
Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.
Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.

E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

Raul de Carvalho



O Namibe, ao sul de Angola
* Imagens tiradas daqui

O espectáculo da natureza não tem rival.

A rosa resplandece entre o sol e a chuva. Abre, altiva, o seu rosto ao vento, o corpo inchado de humidade, as raízes acariciadas por solo fértil, o ar enchendo de calor os pulmões. O tempo de cada flor é breve, floresce em uma primavera, mas o perfume perdura em ondas, na sinestesia da cor, na leveza e no dispor das pétalas, na multiplicidade de tons, ou num só, como um sorriso.

Nem sempre a chuva lhe toca manso. Nem sempre o vento lhe murmura melodias brandas, mas sempre lhe conta de outros lugares, de outras latitudes onde a chuva não cai e o sol fere de morte os seres. Dos homens e animais que caminham ainda, indefinidamente, guiados pelas estrelas, esquivos do mundo, dos horários, da globalização, felizes na sua ignorância dos novos tempos que assolam as almas. Procuram incessantemente a água dos poços, o deus, a deusa palpável que teremos adiante. De horizontes vastos de imensidão infinita onde o sol se funde e cria vapores de quente, onde nascem e se desconcretizam os sonhos dos homens, apagada a miragem.

Um dia as rosas cresceram lá. Um dia a floresta deu sombra, os lagos cobriram a terra, os rios serpentearam.

Agora a areia cresce para nós, ameaçando as rosas.

quinta-feira, abril 10, 2008

Eternidade


No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.

Os anjos olham-no com reprovação,
e plumas caem.

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor
caem, são plumas.

Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.


Carlos Drummond de Andrade




A melhor aprendizagem da vida é saber estar só.

Acordar na noite longa e gostar da insónia. Ler, escrever o que os sonhos trazem à memória que não é, que nunca foi sequer, mas aparece real como as trevas. Entender o outro lado das coisas, entrar na alma dos que sofreram vexames, humilhações, dos que sofreram pela cor da pele, pela humildade de carácter, pela obediência a uma religião iníqua, compreender o incompreensível por décadas de educação severa, na intemporalidade do ser.

Acordar o espírito e não poder mexer o corpo, coordenar o sono para acordar mais tarde, corpo e alma juntos no mesmo pulsar, ou esforçar a mente, exigir do corpo que não responde a acção que ele não consegue executar. Que fio é este que não se liga?

Acordar é tão difícil, assim. E, se acontece, o sono é tão pesado que a vontade de não voltar a ele subleva uma enormidade de sensações capazes de construir um outro mundo. É então que o levantar acontece em passos titubeantes procurando sofregamente um copo de água.

A água e a eternidade vão bem no dicionário dos símbolos. Só pode ser. Mas a eternidade não existe por aí, só dentro de nós. Porque o corpo não a tem e não deixa que nos esqueçamos disso. Dia a dia. Compassadamente. Mas é bom que não nos olhemos ao espelho e façamos de nós uma pintura de Magritte, ao nosso jeito, olhando no espelho a nossa nuca ainda esguia.

Que bom, a chuva. Agora que os dias se espreguiçam mais e mais, que o frio já se foi, o calor vem aí, esperemos que manso. E o encontro do cheiro a maresia, das ondas, da areia, das pedras, das algas, do sol a lembrar uma outra eternidade.

terça-feira, abril 08, 2008

Novos tempos


«Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos — nem mais nem menos —
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê) …
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.»

Fernando Pessoa




Quando a noite vem chegando e apaga devagarinho o brilho das gotas de chuva pousadas nas rosas que vão abrindo, outro brilho se acende no interior das casas, roubando a cada um de nós o sabor do escuro quieto de fim de dia. O acender da lareira com pinhas secas, depois as labaredas lambendo o azinho, deixando sombras e luz nos objectos em volta, o gato aninhando-se no quente. Já nem há candeeiros para acender. E os poucos que o fizeram noutros tempos, depressa esqueceram o ritual.

O brilho que se acende nas casas tem luz e tem som e movimento. Tem melodias e cor. Traz cultura de outras gentes, mas nela muito mais dor. Traz o mundo ao contrário de alguns anseios, traz um espelho de Bosh: um homem barbado, ufano da sua gravidez avançada; uma criança em gestação que vai nascer diferente, vai nascer de um pai; um homem negro, bem longe da civilização dos seus ancestrais, enfrenta os microfones do mundo e anuncia, em nome de um chefe de estado: «Estamos a preparar uma guerra contra o povo!»

O milénio avança e os humanos adaptam a si as transformações em catadupa.

Assim continua o poeta.

«Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos —

Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.»

sábado, abril 05, 2008

Abraço



Vou levar-te comigo.

A ternura no trato, o cuidado no olhar, o jeito de sorrir, às vezes triste, que me passas e eu embrulho numa lágrima que não escorre porque os olhos cresceram com tudo o que me deste. Brilham mais agora, aquecidos de ti, do que colheste de mim, do que floresceu da pedra gasta, marcada de sulcos que eu preferia não ter, não ver.

Há quem pense que o sempre não existe, mas não é verdade. É tanto o que permanece, mau grado os anos, a idade, a distância, o espaço, os espaços. Apesar do peso da vida, dos desenganos, dos desencantos, dos desencontros. Para além das incertezas, das inconveniências, das incoerências, das aparências.

Sentir está para além de tudo.

Só depende de nós. Dos anos desfiados, das primaveras floridas de rosas, dos cacimbos azuis, das chuvadas torrenciais, das chuvas mansas, das neves esparramadas pelos telhados a escorrerem em gelo no dealbar da nova estação que se anuncia.

Ainda nos meus olhos a lava branca sobre a imensidade dos campos, desenhada de árvores nuas e eu deixo-te – o quê? – encharcada de sonhos repletos de infâncias, de cumplicidades, de alegrias, de afectos, de ternuras, de saudades já .

E as tuas mãos por cima dos meus ombros.

Vais permanecer comigo. Sempre.

Até ao último pulsar.


quarta-feira, abril 02, 2008

Regresso




Na quietude de um voo intercontinental, as horas escorrem lentas para quem se mantém desperto.

Do levantar do chão e ainda em rasa altitude sobrevoar as cidades, fica-me um sabor a pássaro. Noutra vida – porque decerto não terei seguido à risca, ainda desta vez, os preceitos de um bom vivente – hei-de regressar bicho de asas. Migrar, conhecer de cor o perfil dos continentes, cruzar os oceanos, ser talvez um albatroz. Ou uma simples monarca.

Por enquanto, sem status social ou económico para viajar em jacto particular, como o fazem alguns dos meus conterrâneos deste país pobre (ou pobre país?), as horas decorrem confinada a um assento estreito – sempre junto à janela – com um espaço insuficiente para desdobrar os jornais que oferecem à entrada, exíguo até para as refeições servidas ao longo das largas horas em que me sinto como que liberta da força da gravidade.

Sem a lotação esgotada, alguns aproveitam para acertar o jet lag com algumas horas de sono estirados na correnteza dos bancos vazios, enquanto as televisões passam filmes inomináveis. Há os que lêem, os que passeiam pelos corredores, os que conversam. Eu faço as palavras cruzadas. Escrevo. Já não consigo ler. Na escuridão, levanto-me devagar e ajoelho-me no banco para descansar as pernas.

Sinto então um leve perder de altitude e logo a seguir o altifalante anuncia o início da descida. Preparo-me para o único momento que me inquieta numa viagem de avião. Observo cuidadosa e atentamente os movimentos dos flaps das asas. Bonito de ver. De perceber como e porquê o avião desce com suavidade ou se provoca enjoos com o brincar dos comandos.

Desta vez tive sorte. O grande pássaro desceu leve e de mansinho.

Pouso na Primavera.