quinta-feira, dezembro 30, 2010

O dobrar dos sinos

DA MINHA ALDEIA vejo quando da terra se pode ver no Universo....
Por isso a minha aldeia é grande como outra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista a chave,
Escondem o horizonte, empurram nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a única riqueza é ver.

Alberto Caeiro in «O Guardador de Rebanhos»


Aldeia é um dos nomes bonitos da língua portuguesa. Como rainha. Como menina. Como Campolide, um nome que sabe bem dizer, embora eu não tenha uma referência muito correcta do seu espaço entre os bairros de Lisboa. Aldeia era a terra dos meus pais, de meus avós, era o lugar de que sentiam saudades e eu não conhecia. Onde se faziam as desfolhadas, se matavam os porcos, se faziam romarias e promessas de subir escadarias sem fim, onde se ia ao monte pastar as cabras, comer pão com azeitonas, pão com uvas, pão com figos. Liberdade para andar pelos campos, para comer apenas o que gostava.

Aldeia, eram os desenhos que a minha professora da primária fazia no quadro para ilustrar a palavra paisagem – ao tempo ainda considerado um galicismo. Aldeia, eram os livros que fui lendo de Trindade Coelho (Os Meus Amores), Eça (A Cidade e as Serras), Júlio Dinis, Aquilino e Torga.

Mas a aldeia cá dentro encontrei-a muitas décadas depois, quando aprendi a voz dos sinos. Os sinos tocam matinas, também as vésperas, repicam as aleluias, os baptizados e dobram nas manhãs dos Outonos gelados numa cadência, um lamento de alguém que partiu.

Havia uma igreja a encimar não mais de cem metros de rua – a Avenida da Igreja – e se enchia de povo, vestes escuras, passos cuidados, flores, terço ou chapéu na mão, e seguia em silêncio saindo do adro, a curvar ao fundo em direcção ao cemitério da aldeia.

Resignado, aliviado da vida, obediente, o morto segue o cortejo, entre as tábuas que lhe destinaram, quieto na sua última viagem sem retorno. Ao fundo, na esquina da rua, a nazarena que ali vende peixe fresco há quase 30 anos limpa as mãos ao avental colorido, ajeita o nó do lenço sob o queixo e benze-se à passagem do carro funerário.

Os sinos dobram e dobram, marcando os passos. 

segunda-feira, dezembro 20, 2010

Discriminar, não vale!

São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Gonçalves Dias


Na minha comunidade, o meu clã familiar da Web, pede-se «briga» esta semana. Perto do Natal, quando se fala de solidariedade nem sempre cumprida, ou não cumprida simplesmente, ou cumprida por coacção, para proveito maior dos que menos necessitam (estou a falar obviamente das grandes empresas que aproveitam a época para auferirem lucros, descontos nos impostos, em nome dos necessitados – vá lá, sempre ajudam afinal! – com o dinheiro dos outros, o dinheiro que muitos nem têm), foi complicado encontrar a foto desejada para enviar.  
Para cumprir o meu dever de briga a preceito, precisava de ter a máquina a postos naquele momento certo, que é curto e breve. Não acontece, é claro, o tempo e a lembrança dela fogem, no mesmo tempo que sorrio e me espanto. Eu conto:

Na aldeia onde moro há gatos, como não podia deixar de ser. Há gatos e gatos. Há a gataria de bairro, que é livre e vadia, que briga e que grita pelas noites de cio, saltando telhados e muros em disputas de liderança a deixar marcas fundas de carnes rasgadas e olhos sem ver, antes ainda do inverno abalar. São malhados, coloridos, misturados de pêlos curtos e longos, esquivos, esguios, fariam um belo desfile de moda.

Depois há os outros gatos, os bem nascidos, os bem criados, pelo menos. Não são gatos nobres, siameses ou persas ou de outra estirpe de nobreza, mas são castrados, usam gravata ao pescoço, pêlo brilhante e bem escovado. Boa comida, bom trato, fazem deles uns burgueses bonacheirões. Nas redondezas há o Kido, o Mashroom, o Chatgris e um outro ainda novo, parece acabado de sair chamuscado de alguma lareira, coleira vermelha, brilhante, que se fica pelo telhado do alpendre a «ver as vistas», não vá o diabo tecê-las. Convivem aqui pelos quintais, visitam-se, andam aos pássaros, às lagartixas, correm para dentro de casa a qualquer ruído  anormal, de mais decibéis.

Pois há uns tempos, alguém abandonou por aqui uma gata listrada, uma tigresa linda, muito magra e ferida. Esquiva, assustada, foi ficando por onde lhe davam de comer e os meus vizinhos adoptaram-na, mas mora no quintal. Sabe bem quando eu saio a porta da cozinha, e logo salta o muro a pedir uma festa com uns olhos verdes de perder a cabeça. Quando não há Chatgris, bem entendido. 

Porque nenhum dos senhores burgueses a suporta: arqueiam o corpo, alteiam a cauda, crescem os pêlos e sopram. Qualquer deles o faz, nunca tinha visto antes. 

Ela simplesmente desaparece.

quinta-feira, dezembro 16, 2010

Procura

Olhava-me a desafiar-me, pensa, discute comigo, anda lá, a sua voz era suave e os seus olhos insolentes, diz-me são uns ateus, ardentes, contraria-me, anda lá, inteligentes, e tu, pensa, ouvi-la assustado e admirado: aquilo existia, Zavalita. Pensa: foi nessa altura que me apaixonei?

Mario Vargas Llosa in «Conversa n’A Catedral»

Foto oferecida por Teresa Deillot (Obrigada, Teresa!)

Não tenho a certeza de quando acordei para a consciência do amor à terra em que nasci. Quando procuro, quando olho para trás, parece-me que fui acordando aos poucos, como o dia esquentava nas manhãs frias de cacimbo atrás das perdizes, as nuvens de nevoeiro pousadas ainda nas faldas da serra do Andacá, depois o sol a abrir, a aquecer, a incendiar tudo.

Deve ter começado quando me empolgava com Eurico, nos morros do Calpe a responder ao grito Allah hu Acbar! de Tárique: «Terra em que nasci, se o teu dia de morrer é chegado, eu morrerei contigo». Terá sido quando senti o meu chão tremer, a minha terra agredida no despertar da adolescência, terá sido quando pela primeira vez deixei que o oceano se interpusesse entre nós, quando aceitei mais tarde viver longe dela, e depois, um depois que não devera ter existido, quando a abandonei.

A paixão viveu dentro de mim escondida por muito tempo, por muitos anos de pudor. Foi sedimentando e sarando feridas abertas por lá, o tempo não é o nosso maior inimigo – discordo de ti, meu Camus! Agora, esse tempo que me cobriu de rugas e de cãs, trouxe serenidade às duas, à terra e a mim. A guerra insana parou, ficaram as lutas pequenas que mantêm, que dão sentido à vida.

Por vezes é bom olhar para trás, a saudade faz tudo tão bonito, tão doce, tão macio e suave ao toque! Pode escolher-se os caminhos, evitar os pedregulhos, as rochas que rasgaram a carne, esquecido já o sabor do sangue. E esperar que se cumpram os ritos.


sexta-feira, dezembro 10, 2010

(In) Segurança


"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."

João Guimarães Rosa

  
Um dia destes o céu bramiu, troou com fúria, acendeu-se repetidamente. Abriu-se em sopros assustadores e derramou-se em cortinas de chuva.

Quase assomaram os medos de outrora naquele desabar de água tocada por um vento feroz, entre ribombos e luzes que acendiam o mundo a um tempo.

Inconscientemente, a exemplo da infância longínqua, a cama parece ser o refúgio perfeito para a tempestade lá fora. Parece, não. Não é, porque tudo mudou entretanto. Já não há cobertores «de papa» para nos proteger dos relâmpagos, não mais a voz da Mãe a repetir Santa Bárbara! a cada trovão, não mais os risos do irmão para espantar os medos.

O medo agora é diferente, já não é por nós. É a consciência da segurança e do conforto, ao lado da precariedade dos outros, os sem-abrigo da sociedade que construímos com muros de betão a separar os homens, sem portas, sem janelas, sem poderem dar-se as mãos e contar os segundos depois do raio, até chegar o som do trovão.

Sobram os encontros da web, os facebooks, os twitters e os outros, mas a natureza que pulsa, benigna ou assustadora, não está presente.

E ela é parte de nós.

quinta-feira, dezembro 02, 2010

Esperança

Quem ama a liberdade conhece que é idêntica
a verdade e a não-verdade o ser e o vazio
e por isso na sua celebração a metáfora expande-se
na liberdade de ser a ténue sabedoria
desse momento e só desse momento em que o arco cresce
Há então que procurar a chuva dessa nuvem
ou desdizê-Ia não para o nosso olhar
mas para um outro rosto de areia que cresce no vazio
e poderá ser de pedra ou de ouro ou só de uma penugem…

António Ramos Rosa

 A vida não é, decididamente, a preto e branco.
Há momentos de rara intensidade, de dor e impotência, de prazer que tolda os sentidos, riscados a carvão que se fixam com aqueles esquissos por mão segura que conduzem depois à obra final, onde se marcam com firmeza os verdadeiros contornos.
A vida é feita de cor e de momentos, não é sempre um lago tranquilo, antes um mar ondeado e vário sem cor definida, do azul ao verde, perdendo-se em cinzentos esbatidos de uma profundidade a que nem sempre acedemos, onde nos afundamos para o melhor e o pior.
Nada está bem ou mal, não há mentira sem fundo de verdade, menos ainda verdades sem remissão. Não há amor nem ódio, há desamor que se constrói em indiferença e esquecimento, há os contornos dos afectos que se enrolam em ondas, em rituais familiares que atravessam gerações, há as memórias a preservar. 
E finalmente há a esperança.
A esperança que nos faz ser eternos enquanto vivemos, porque nada se constrói quando o espectro do escuro nos tira o prazer de cada dia de luz. Como parece estar a acontecer neste país de sol, onde se vive de uma morte anunciada, como se a morte fosse o fim de todas as coisas, como se sobre cada fenecer não se erguesse outra, outra Primavera.