O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora
engrandecido dentro do novo olhar.
Fiama Hasse Pais Brandão
Sei como as mulheres se protegem do frio com galochas à altura das saias de fazenda escura, chapéu enterrado na cabeça e casacos cobrindo parte do avental lavado. A idade já não permite que trabalhem fora e os anos mal deixam erguer os braços para dependurar a roupa na corda, o corpo mal se equilibrando nas pernas arqueadas, quando carregam a lenha no carro de mão.
Sei do tempo de espera, do olhar ansioso de fera acossada daqueles dois irmãos que escondem misérias sob a miséria do telhado aberto da casa em ruínas, e do velho pequenino que passa na beira da estrada carregando às costas os troncos húmidos do pinheiro caído com a força dos ventos, arrastando-os pelo asfalto.
Sei que o fumo que sobe dos telhados deixa o lar aquecido, que por detrás das janelas cerradas há lida e há vida. Há vidas borbulhando como nos troncos das roseiras cortadas, há crianças à espera do sol como as sardinheiras plantadas na soleira das portas.
Sei quando as manhãs abrem mais cedo e o melro levanta o cascalho do jardim à procura de alimento na humidade do chão, quando os pardais discutem em bandos a hora da procriação, quem sabe o território ou a fêmea mais requestada.
Sei também que Deus nem sempre parece justo e perfeito como dizem que é, e assim há hoje um pedaço de terra que é parte de nós, onde os telhados se abriram, as paredes ruíram, o chão se esventrou, filhos e mães se perderam, rolaram nas águas e jazem em lama no fundo das trevas.