segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Olhar



O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar 
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora 
engrandecido dentro do novo olhar.
Fiama Hasse Pais Brandão
 

 Sei agora como a chuva cai por aqui, como gotejam os telhados e como soa o escoar das caleiras gorgolejando nas noites invernosas. 

Sei como as mulheres se protegem do frio com galochas à altura das saias de fazenda escura, chapéu enterrado na cabeça e casacos cobrindo parte do avental lavado. A idade já não permite que trabalhem fora e os anos mal deixam erguer os braços para dependurar a roupa na corda, o corpo mal se equilibrando nas pernas arqueadas, quando carregam a lenha no carro de mão. 

Sei do tempo de espera, do olhar ansioso de fera acossada daqueles dois irmãos que escondem misérias sob a miséria do telhado aberto da casa em ruínas, e do velho pequenino que passa na beira da estrada carregando às costas os troncos húmidos do pinheiro caído com a força dos ventos, arrastando-os pelo asfalto. 

Sei que o fumo que sobe dos telhados deixa o lar aquecido, que por detrás das janelas cerradas há lida e há vida. Há vidas borbulhando como nos troncos das roseiras cortadas, há crianças à espera do sol como as sardinheiras plantadas na soleira das portas. 

Sei quando as manhãs abrem mais cedo e o melro levanta o cascalho do jardim à procura de alimento na humidade do chão, quando os pardais discutem em bandos a hora da procriação, quem sabe o território ou a fêmea mais requestada.

Sei também que Deus nem sempre parece justo e perfeito como dizem que é, e assim há hoje um pedaço de terra que é parte de nós, onde os telhados se abriram, as paredes ruíram, o chão se esventrou, filhos e mães se perderam, rolaram nas águas e jazem em lama no fundo das trevas.


quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Luz


«Estou velho. Há o sol e a neve e a aldeia deserta. O meu corpo o sabe, na humildade do seu cansaço, do seu fim. Alegria breve, este meu sabê-lo, esta posse de todo o milagre de eu ser. E a deposição disso para o estrume da terra. Sento-me ao sol, aqueço. Estou só, terrivelmente povoado de mim. Valeu a pena viver? Matei a curiosidade, vim ver como isto era, valeu a pena. É engraçado, a vida e a morte. Tem a sua piada, oh, se tem. Vim saber como isto era e soube coisas fantásticas. Vi a luz, a terra, os animais.» 

 Vergílio Ferreira, in «Alegria Breve»



Não há paisagem. A névoa na estrada, por vezes o nevoeiro cerrado, dissolve as casas e as árvores que passam à velocidade em que pouso sobre o asfalto, na mesma ilusão de antes de Copérnico, Apolo guiando a quadriga, a cegar os olhos dos simples mortais e a noite trazendo a luz mansa que faz erguer os oceanos, acender as lendas de lobisomens e dar a voz aos poetas. 


O manto negro pontilhado de estrelas desce agora em fantasia de Carnaval, preso aos ombros de figuras míticas da História e das Lendas, homens tornados deuses para apagar a dura realidade dos mortais. Escondem a tristeza pregada nos rostos, afivelando máscaras grotescas e exorcizam a seu modo frustrações e carências.

É isto o Carnaval e por isso gosto pouco dele. Deveria ser antes a festa da alegria e da graça, o teatro e a fantasia, o encanto das crianças. Mas, como é hábito, tudo se adultera: uma coisa são as ideias, outra coisa a concretização delas, nada que se não saiba já, vem de muito longe, de milénios atrás.



sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Amanhãs



– Está bem, dou-lhes todos os informes que desejam ter, mas sejam francos: quem são vocês e a que andam? Declaro-vos à fé de quem sou que nunca na vida vi em naus mercantes tanto mancebo junto, com ares de tudo menos de pegar fardos às costas. E não levem a mal que vos diga, ou na vossa terra as sedas da China são tão baratas que andam aos pontapés, ou tão pouco vos custaram que não lhes ligais grande estimação. Se assim não fosse, não estariam ali aqueles amigos a jogar aos dados peças de damasco, como se se tratasse de feijões!

Fernão Mendes Pinto in «Peregrinação

 


Apetece rasgar a névoa, a cassa que cobre o horizonte por detrás do cortinado de chuva branda em que acordou a manhã. Afinal, os dias crescem devagar, e os bolbos que ficaram na terra despontam em promessas de cor a anunciar a Primavera, a mesma que os ciclamens oferecem já ao calor e à luz que se entrevê.

Não há bem que sempre dure, nem mal que não cure, diz a sabedoria do povo. As mesinhas caseiras ou os remédios que propõe a indústria farmacêutica resolvem sempre a questão, quanto mais não seja, dando novo rumo aos males a que continuamos sujeitos, acordando outros piores ou alongando o sofrimento até à exaustão.

Assim parece acontecer na política que conduz os destinos deste país pequeno e bonito, que sofre de doença não diagnosticada ou de incapacidade dos médicos resolverem o que os exames confirmam. Não sei se é este o caso. Sei, com certeza, que é ao doente que compete ter vontade de ser restabelecido da doença que o consome. Sem isso, nada feito.

Mas nada é irreparável, também as flores morrem, que o fruto vem aí com as sementes para uma nova vida. Tudo se renova naturalmente, só o bicho-homem teima em permanecer, só o Homem insiste em perpetuar-se, como se não houvesse outro amanhã.