segunda-feira, abril 22, 2013

DISPOSIÇÃO




Durante quatro anos suportaram os aliados embates sobre embates dos Alemães. Aguentaram-nos conforme os Deuses foram servidos, ora bem, ora mal, ora confiando, ora descrendo, até que o mais velho dos Deuses, o Tempo, lhes concedeu a vitória. E durante esses quatro anos, e através da dura experiência que eles foram, aprenderam — com que proveito, ainda se não sabe — pelo menos uma coisa. Repararam que a força da Alemanha provinha, não da valentia notável dos componentes individuais dos seus exércitos, não da perícia especial dos seus chefes militares, mas de ser na guerra o que era na paz, e na disciplina particular da vida guerreira o que era no geral de toda a sua vida — uma nação plenamente organizada, coerindo dinamicamente em virtude de uma aplicação inteligente e estudada dos princípios de organização. A inveja é mãe do estímulo, como a curiosidade o é da ciência; da inveja da organização alemã nasceu o falar-se tanto em organizar tanta coisa.
 
Fernando Pessoa in  «Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional» 1919
 
 
Amanheci. A luz esgueirando-se lentamente por sobre os pensamentos estremunhados, sem assustar os que se refugiam ainda nas sombras da noite que se esvai, a claridade a anunciar o sustento dos que dela recebem vida. Sem soberba, sem a pretensão de dominar o mundo porque sabe que a sua duração é passageira, antes com a humildade de quem tem consciência do poder imenso que rege o universo, que regula os espaços e os lugares, o poder que segura as rédeas do cosmos, ciente de que um dia a escuridão vai prevalecer.

Cresci como a glicínia que se espreguiça no muro e floresce em tons de lilás transpirando perfume a convidar ao banquete oferecido. O mundo é diferente agora, só porque chegou a primavera. Que me importa saber que o verão vai sugar-me um pouco mais, vai vincar mais rugas, o outono vai fustigar-me de vento e deixar-me sem folha, sem fôlego, o inverno logo ali, mais branco, mais cãs, mais cansaço.

Este ano há muitas rosas – e mais uma rosa! – no meu espaço, porque a terra se manteve húmida por largos meses, porque o sol chegou e trouxe calor. Este ano vou encher os olhos delas, aspirar-lhes o perfume, e deixar encerradas as janelas que me fazem assistir à incapacidade de organização, à derrocada dos edifícios que também me empenhei em ajudar a construir.

quinta-feira, abril 04, 2013

PRIMAVERAS

... Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...
 Florbela Espanca








 Gerânios, pelargónios, até malvas, a tudo se dá o nome de sardinheiras e como tal as conheci desde sempre, as flores predilectas de minha mãe de quem herdei o gosto por flores, pela alegria que transmitem, quem sabe o apelo das suas cores vivas. Crescem em qualquer vaso, descem pelas sacadas, sobem rente aos muros, gostam de alguma humidade e calor. E afecto, acrescento. Como qualquer planta, como qualquer ser vivo.

A primavera está aí, a temperatura a dizer que passou o equinócio, o sol a romper por entre as nuvens apesar da chuva, e os campos cheios de cor, pintados de branco e amarelo. Além das sardinheiras, plantas de cultivo doméstico, há estas flores delicadas, simples, de pétalas ordenadas em forma de sol, de todas as cores, a que se dá o nome geral de malmequeres. Manéis, margaridas, bem-me-queres outros nomes mais que desconheço, mas malmequeres humildes, violentados pelas raparigas de outrora, humildes como eles, que os desfolhavam sem piedade procurando a resposta ao seu amor inquieto: mal-me-quer, bem-me-quer, muito, pouco, nada, os franceses usando uma gradação mais intensa: Il m’aime, un peu, passionément, à la folie, pas du tout.

São as flores da primavera e eu hoje quero apenas ver jardins floridos, sejam de cores vibrantes abertas ao sol, sejam cores de cinza e prata sorrindo à claridade da lua. Não importa se as nuvens cobrem o céu, o meu horizonte está para além delas, tenho o espaço do cosmos olhando por mim, para além da cortina de chuva, para além das águas que cobrem a terra. Tudo me pertence, o coração pulsa inundando as veias na alegria que não cabe dentro e se verte em lágrimas de emoção.

O mundo repousa agora no meu regaço, quieto, sereno, infinitamente doce, suave como aquela noite há quarenta e seis anos, quando ela floriu para mim, encerrando a Primavera.