domingo, setembro 30, 2007

Melancolia


«O tipo tem tanto sentido de humor quanto um rafeiro com sarna. Não aprecia a vida. Na minha opinião passou demasiado tempo em Portugal. Eu também gosto de visitar Lisboa, vou às livrarias, ao cinema, vejo exposições de fotografia, e acho tudo isso muito bom para lavar a alma. Mas nunca fico mais de duas semanas. Três no máximo. A melancolia portuguesa corrompe o espírito, escurece-o, como o frio do Outono amarelece e mata as folhas das árvores.»

José Eduardo Agualusa



Eu não me recordo se trouxe a melancolia comigo, aquela dorzinha no peito que deixa a gente lassa, sem força para rir com gosto, para rir bonito, apenas sorrir com trejeito amargo, sem voz, sem alma, sem vida. Às vezes vive cá dentro, escurece a minha alma, tira-me o sorriso, mas procuro que uma brisa a espante, leve que seja, nunca deixo que me danifique por inteiro.

O tempo invade a minha disposição, entra na pele, mergulha nos ossos e a alma treme. Muitas vezes sofrendo por antecipação. Este Outono manso, a encolher os dias, puxando a noite com uma brisa que já não é, antes vento que sopra e se entranha, lembra-me o Inverno que vai chegar e me pára o sangue.

Agora a chuva é bem-vinda para eu respirar mais fundo e aceitar os dias menos quentes, as noites mais longas. Vou ter por companhia o crepitar do lume na lareira, o estalido dos troncos de azinho, oliveira, contando histórias de gentes e bichos de outros tempos, de Torga e Aquilino e até Junqueiro, com melros zombeteiros de alma romântica no seu melhor.

Mas as noites anunciam-se demasiado longas. Como a vida se espreguiça para além do que é lucidamente desejável. Como o progresso alucinado que torna tudo breve, sem tempo para bater compassado, numa arritmia que incomoda porque o corpo já perdeu a firmeza, a agilidade, a fortaleza, a magnitude. E a graça.

Resta a experiência de vida que obriga a fincar os pés no chão, a olhar a chuva miudinha que faz brotar a relva, a ouvir a música dos beirados, a deixar que os ventos troquem o rumo dos dias de ontem e de amanhã.

E não perder a capacidade de amar.

sexta-feira, setembro 28, 2007

Luuanda


«Luanda. Ou Lua, como é conhecida na intimidade. Também Loanda. Literariamente Luuanda (veja-se Luandino Vieira). De seu nome completo, S. Paulo da Assunção de Luanda, foi fundada em 1575 por Paulo Dias de Novais (…)

(…) Hoje, misturam-se pelas ruas de Luanda o umbundo oblongo dos ovimbundos. O lingala (língua que nasceu para ser cantada) e o francês arranhado dos regrês. O português afinado dos burgueses. O surdo português dos portugueses. O raro quimbundo das derradeiras bessanganas. A isto junte-se, com os novos tempos, uma pitada do mandarim elíptico dos chineses, um cheiro a especiarias do árabe solar dos libaneses; e ainda alguns vocábulos do hebreu ressuscitado, colhidos sem pressa nas manhãs de domingo, em alguns dos mais sofisticados bares da Ilha. Mais o inglês, em tons sortidos, de ingleses, americanos e sul-africanos. O português feliz dos brasileiros. O espanhol encantado de um ou outro cubano que ficou para trás.

E toda esta gente movendo-se pelos passeios, acotovelando-se nas esquinas, numa espécie de jogo universal da cabra-cega. Moços líricos. Moças tísicas. Empresas de esperança privada. Chineses (de novo) em revoada. Meninos vendendo cigarros, chaves, pilhas, pipocas, cadeados, almofadas, cabides, perfumes, telemóveis, balanças, sapatos, rádios, mesas, aspiradores. Meninas vendendo-se à porta dos hotéis. Meninos apregoando quimbembeques, espelhos, colas, colares, bolas de plástico, elástico para o cabelo. Meninas negociando cabelo loiro, «cem por cento humano», em tranças, para tiçagem. Mutilados hipotecando as próteses. Quitandeiras mercadejando mamões, maracujás, laranjas, limões, peras, maçãs, uvas suculentas e remotos quivis.

Tio! Paizinho! Meu padrinho! Ai, olha aqui o teu amigo.

Carapauê!

Vai por quinhentos o disco, meu brother!

…Lavo…

…Guardo…

…Engraxo…

Se fosse uma ave, Luanda seria uma imensa arara, bêbada de abismo e de azul…»

José Eduardo Agualusa

quinta-feira, setembro 27, 2007

Missangas



«Moi je t’offrirai

Des perles de pluie

Venues de pays

Où il ne pleut pas

Je creuserai la terre

Jusqu’après ma mort

Pour couvrir ton corps

D’or et de lumière

Je ferai un domaine

Où l’amour sera roi

Où l’amour sera loi

Et tu seras reine»

Jacques Brel




O som seco de um tiro ao longe vem lembrar-me que hoje é quinta-feira e acabou o defeso – abriu a época de caça aos bichos de aviário – e já o ar fresco da manhã se deixa marcar pelo bafo quente da respiração.

Eis o Outono que vem chegando.

Mergulho agora as mãos numa taça de missangas cor de marfim pequeníssimas e, de repente, elas saltam coloridas como se reagissem à cor imposta. Querem ser incertas de muitas cores, misturadas de céu e de terra, de relva e de sangue, de milho e de prata. Querem cingir os pulsos das meninas negras, o colo e os cabelos, querem alegrar o fato da menina branca mascarada em cigana.

Os fios de gelatina longos e ondeantes, descendo na correnteza leve da nascente acima, colares de missangas de uma só cor, prendidos aqui e além por pedras e tufos de erva dos bordos da vala. Escorregadias, missangas negras enroladas nos tornozelos, nos pés descalços, deslizam, fugidios, por entre os dedos das mãos que os querem prender.

Era o recomeço da vida nas primeiras chuvas de Setembro.



segunda-feira, setembro 24, 2007

Globalização



«O homem não sabia que as cidades que se rodeiam de altos muros (ainda que brancos e com árvores) não se tomam sem luta. Não sabia o homem que antes da batalha pela conquista da cidade outro combate teria de travar e vencer. E que nessa primeira luta teria de lutar consigo mesmo. Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor.»

José Saramago




Numa das suas últimas crónicas, e com a lucidez que lhe é peculiar, António Mega Ferreira toca uma ocorrência de ordem universal, que vai longe, vai até ao âmago do problema que nos vai conduzir à extinção: o domínio intenso, a prevalência, cada vez mais desproporcionada, da língua a que ele chama anglo-americana, sobre todas as outras.

Essa força que nos faz pensar a nós, Portugueses – um povo com quase nove séculos de História independente, duzentos milhões de falantes espalhados pelos cinco continentes –, que conhecer devidamente a nossa língua (ler Aquilino…) é de somenos importância quando se domina bem o inglês. Se, como se constata, os interesses económicos prevalecem sobre todos os outros, é bem certo que os milhares de milhões gerados pelos mais de milhão de chineses vão justificar que nos rendamos rapidamente ao mandarim…

Esqueçamos agora a língua, que deve permanecer traço de união entre povos, sim na sua divulgação e estudo nas várias vertentes, não na simplificação grosseira que apenas alimente a preguiça universal.

A globalização da economia parece que dói. Só não dói, antes apetece cada vez mais, a quem está no topo da cadeia. Ao homem não custa a destruição em massa, a extinção das espécies animais que todos os dias se verifica por falta de espaço no planeta que partilhamos.

O Ocidente impõe a «sua» democracia em todas as partes do mundo, mesmo onde é uma ideia peregrina, inaceitável, incompreensível para as civilizações que não fizeram o percurso devido para que essa forma de enquadramento sócio-político surgisse naturalmente como a mais respeitadora do «outro».

Uma enormidade quando olhada com singeleza: a democracia original floresceu num povo de escravos e estes não contavam, eram carta fora do baralho. Os ocidentais são mais hipócritas: dizem-se preocupados com os povos de África e Médio-Oriente, quando apenas têm interesse nos seus diamantes e seu petróleo. Que importa o povo do Darfur ou do Ruanda, do Iraque ou do Afganistão?

São escravos.

Continuemos a consolidar a nossa «democracia».

Até quando?




quinta-feira, setembro 20, 2007

Infância


O regresso às origens deve ter o seu tempo em cada um de nós.

Nunca voltar porque os outros voltam.

Não voltar se nunca o tempo for propício.

Viriato da Cruz é um nome grande na poesia primeira africana de expressão portuguesa sem necessitar de apresentação. Por puro acidente, num livro de Cartas de África e Alguma Poesia coligidas e seleccionadas por Salim Miguel, revelando correspondência assídua, em meados do século passado, entre jovens escritores brasileiros de Santa Catarina e as então províncias portuguesas de África, encontrei um poema de Viriato da Cruz – dedicado a Agostinho Neto – que me encontra menina, quando anseia que «cada criança goze a infância como se comesse uma maçã de aurora e de mel» na terra em que nasci:

«Para além da alegria multímoda deste parque acolhedor

– tarde soalheira! Florões amarelos o cicio do vento

nos ramos balançando balançando dos altos eucaliptos.

Para além do olhar amplo mar manso das crianças

um olhar contendo a confiança nos homens

e a certeza de vida no futuro

Para além deste par enamorado um ao outro harpando

a doce música do amor

Para além desta meiga presença de minha mãe

na carta que ontem me escreveu

Para além de quanto me dá esta emoção positiva, eu vejo

a mão no arado, a mão no tear, a mão na enxada, eu vejo

o tubo de ensaio suspenso da mão paredes subindo debaixo

da mão

a agulha na mão debaixo da mão tachos no fogo que a mão

domou, eu vejo

cabeças na escora da mão pensando aumentar da mão o

poder, eu vejo

o livro na mão o Homem a Mão, eu vejo

o trabalho crescendo na Paz criadora oh a Paz

– o modo humano da existência fecunda!»

Viriato da Cruz

Nova Lisboa – Angola, 1953

sexta-feira, setembro 14, 2007

Comunicação

«Se um homem escreve bem só porque está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu fígado sofre com isso, respondo: o que é o seu fígado? É uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.»

Bernardo Soares




Isto não é um diário.

A função da escrita é inata a quem é alfabetizado e lê. Gosta de ler, entenda-se. Quem é estimulado a ver desenhos e pinturas, a apreciá-las desde cedo, desenvolve a vontade de também criar. Como a música, como a construção na areia, como qualquer outra actividade. Este o grande desafio da educação que, como é mais do que óbvio, não começa propriamente na escola.

E assim aprendem as crianças, repetindo o rito. Principalmente se os assuntos surgem naturalmente, como algo que dá prazer, pouco a pouco inferindo que vale a pena conhecer melhor, saber mais, tirar prazer e proveito ao mesmo tempo.

Escrever é também comunicar. Para estabelecer empatia, seduzir à leitura, transcrevem-se vivências que nos tocaram a nós, desvenda-se o que a noite nos disse em segredo, o que trouxe o dia em alvoroço. Nessa escrita é reconfortante ter algum retorno, a mensagem fundamental de valer ou não a pena continuar. Que seja para rebater, qualquer função é aceitável, desde que conduza ao diálogo, ao aperfeiçoamento, se possível. O prazer de brincar com as palavras, o que se vai construindo, o limar das arestas, pintar, matizar as cores, leva à ficção, conduz ao nascimento de personagens, lugares, figuras, sensações pessoais em universo novo, criado, imaginado. Nem sempre real. E, se real, tão real como o cachimbo de Magritte.

É um percurso natural. Comunicar, apenas isso. Outras vezes ponderar as razões do leite derramado.

E deixá-lo infiltrar-se no solo, alimentar a Geia.

terça-feira, setembro 11, 2007

Adeus praia...

«O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo»


Sophia de Mello Breyner Andresen







domingo, setembro 09, 2007

Setembro


«…Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser...»

Álvaro de Campos






Setembro é um mês mágico.

Lembra-me o entardecer do Verão exalando todos os odores da fruta colhida, assomando pela casa um cheiro à compota que vai adoçar o rigor das estações seguintes, o acender da esperança num novo ano de trabalho.

Os dias serenos, mais curtos já, nem sempre menos quentes, derramando-se pelas praias num estertor luminoso e numa quietude que nos deixa ouvir o mar, apenas o mar, e nele ponteando em grupos, aqui e além, os surfistas parados à espera do vento que não sopra e das ondas largas que não acontecem.

Recordar Sophia a ver o mar não é inédito. Sophia de Mello Breyner Andresen está presente em todos os lugares que o lembram. No Oceanário de Lisboa. Nas vagas alterosas das escolas também. Os programas de LP do E. Básico têm Sophia como sugestão de leitura orientada (obrigatória?): desde A Fada Oriana no 1º Ciclo, passando pela Menina do Mar, A Floresta, A Árvore, O Rapaz de Bronze no 2º Ciclo e ainda O Cavaleiro da Dinamarca no 3º Ciclo. A par de outros autores, entenda-se.

Mas a publicidade sempre esteve mais ao serviço dos que sabem usá-la e as desigualdades de oportunidades sucedem-se, isto sem pretender – nem por sombras! – desmerecer a qualidade de uma autora, de uma poetisa, deste gabarito (saiu a talhe de foice, foi o mar que a trouxe aqui) e de outros que lhe sucedem. Sempre me pareceu despropositado o excesso de obras dum mesmo autor para leitura recomendada, tendo em vista o universo alargado que felizmente existe de literatura infanto-juvenil.

Nesta linha de pensamento surgem alguns bons escritores contemporâneos que se debatem por “um lugar na frente”, ofuscados quase sempre por uma implacável máquina publicitária que impõe a massa informe de literatura de consumo corrente. Como o vinho: misturado, mas serve, haja o que beber.

Aquietem-se porém os escritores dignos desse nome que deixam a marca sentida do seu testemunho em letras que honram a nossa língua. Por entre o nevoeiro espesso da manhã, o sol vai romper. Melhor. À hora em que o ardor da chama já não queima, num areal comprido em que as pegadas prevalecem ao vazar da maré.

Ainda há lugares como este. Sem casas brancas nem dunas.

Apenas falésia.



quinta-feira, setembro 06, 2007

Cantigas de Amigo


«…Bailemos nós já todas três, ai amigas,
so aquestas avelaneiras frolidas
e quem for velida como nós, velidas,
se amigo amar,
so aquestas avelaneiras frolidas
verrá bailar…»


Airas Nunez de Santiago (séc. XIII)



Os pássaros da felicidade enfeitam ainda hoje a memória dos acontecimentos no Oriente, nomeadamente os vestidos de noiva na China. São na verdade magníficos na sua elegância estes grous sem coroa.

Também temos os nossos símbolos de ventura, amuletos da sorte, fascinação por alguma espécie de magia ou encantamento, independentemente da condição de cada um de nós. Benzer com o sinal da cruz a boca de uma criança que boceja, dizer «santinha» quando espirra, por exemplo, tem explicações que remontam a crenças antigas, e ainda as há por aí. Ainda digo «saúde!» a quem tenta perto de mim controlar um espirro, que os micróbios vicejam mesmo sem essas manifestações intempestivas.

Pois eu sou fã dos «lenços de namorados» indispensáveis nos enxovais da região do Minho, para darem sorte nos amores, bordados geralmente durante o pastoreio do gado pela rapariga apaixonada que ia transpondo para o lenço os sentimentos que lhe iam na alma em poemas, verdadeiras cantigas de amigo, escritas na repetição da oralidade. A rapariga passaria a usá-lo ao domingo na missa, no bolso do avental; mais tarde oferecê-lo-ia somente ao rapaz que amava como compromisso de amor, e este deveria usá-lo ao pescoço ou no bolso do casaco do fato domingueiro.

Os que conheço mais elaborados têm belíssimas bainhas abertas ao redor, tecidas em várias cores e quase sempre uma quadra de amor onde predominam os tons vivos e populares. Pássaros, flores, corações, chaves e coroas, pode dizer-se que são os motivos que os adornam repetidamente, sendo alguns bordados num único tom. Actualmente retomado o gosto pelos «lenços de namorados», é usual enfeitarem paredes de salas mais íntimas, devida e singelamente emoldurados.

Eu gosto de bordar, gosto de linhas e cores e passo muito do meu tempo – agora mais longo – de agulha e dedal, às vezes bastidor. Invento lenços de namorados que disso não têm tudo. São marcadores, com datas, com ditos, com nomes, com gregas e galões, mantenho os símbolos da chave do amor guardado, mia senhor, meu rei. É certo que os tenho feito apenas para os amigos, as amigas, personalizo cada um, se o desejam. Não faço dois iguais e tiro prazer disso. As férias acabaram, o calor já não deixa suar as mãos.

Deixo aqui o último que fiz para o meu querido amigo, o meu «filho» mais novo que é um pingo de ternura. Este é oferecido para a sua casa nova, aqui perto, no casal, em tons a condizer com o ambiente que ele criou. Embora singelo, sei que vai gostar.



domingo, setembro 02, 2007

En Attendant Godot

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. [...]

Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos [...]

Guerra Junqueiro




Vai mais de cem anos, o nosso país era assim caracterizado por quem pertencia a uma elite de pensadores que deixaram marca na nossa história literária. Seria exagero, mas um crítico que se preze caricaturiza, para além de redigir meros aspectos da realidade que lhe dói.

Um bom escritor é tanto maior, quanto as suas palavras possam parecer ainda reais, séculos volvidos; é sinal de que os seus olhos viam para além das aparências, tocavam mais fundo na alma dos povos. Daí a perenidade de Camões, a eternidade de Pessoa.

Tenho entre mãos uma obra de Rocha de Sousa, um livro que vou digerindo porque não cabe numa refeição só. Do que conheço de sua vivência – seus blogs, pintura, desenhos, fotografia, escritos – o autor está lá, nas sucessivas referências à pintura surrealista – Magritte, Magritte, que, ao que sei, não se queria nessa gaveta – saltos pontuais mas repetitivos a fagulhas de guerra em África, referências a Camus e Sartre e Beckett, na pele de um narrador em procura de resposta sem réplica da presença de Deus em quadros sucessivos de Hieronymus Bosh, como ele em virar de século.

A escrita é impetuosa, fluente, a parte formal lembra António Lobo Antunes. Não só. As referências ao período de guerra, o horror dos hospitais para dementes que – ao que conheço, não li toda a sua obra – Lobo Antunes apenas aflora e Rocha de Sousa descreve com todo o realismo, com a segurança de quem fez o trabalho de casa, com intensidade e sentimento.

Estou a ler « A Culpa de Deus» na hora certa: quando são reveladas as cartas de Madre Teresa de Calcutá – Diga-me Padre, porque há tanta dor e escuridão na minha alma? – e eu me pergunto se é lícito divulgá-las, quando ela tinha deixado expresso que as queria destruídas, embora o seu conteúdo venha acrescentar a minha paz.

Vou continuar a ler. Até aqui, partilho as considerações sobre o livre arbítrio, as decisões que cabem a cada um de nós para que se cumpram os limites que impomos a nós próprios.

Aquilo a que chamo dignidade.