sexta-feira, março 31, 2006

Mágoa

Eu nunca tinha lido o Diário XII de Miguel Torga quando a barca de Caronte levou esse homem grande da língua portuguesa, que pagou o seu óbolo deixando à eternidade dos homens a sua obra. Doeu-me quando o seu olhar, reconhecidamente duro e inflexível, há mais de quarenta anos varreu os espaços que eu conheci: «Escrevo diante da paisagem feia para que abri os olhos... embondeiros disformes, edemaciados, monstruosos... mamoeiros esgrouviados, sintéticos, de testículos ao pescoço...» O deserto, «um mundo seco, estéril, asséptico... um mundo onde nenhum poema de esperança teria sentido...»

Como é possível que alguém tivesse pousado os olhos no meu mundo de menina, no mundo de sonho de muitos que nem lá nasceram, e pudesse sentir essa repulsa, essa rejeição instantânea a uma natureza que apenas peca por ser diferente das penedias rudes e também estéreis da região transmontana? Miguel Torga olhou com os olhos da alma, com o corpo dorido de um Portugal esvaído, por mor de uma terra estranha, como os sogros olham um intruso que entrou na família mas não tem o seu sangue.

Como Camus sentiu na sua alma a terra que o criou - «J’ai mal à l’Algérie comme d’autres ont mal au poumon» - também a mim me dói Angola. E os meus sentidos obrigam desde logo a trocar na ortografia o e pelo i ao escrever imbondeiro, porque a grafia com e o torna logo mais identificado com um olhar que não é o meu; e fazem acudir a textura e o sabor impar da papaia; e obrigam a cerrar os olhos e ter a ilusão de descer a Leba a caminho da imensidão do Namibe e escrever como aos quinze anos: Sou filha da negra África / Brotada da terra inculta / E sinto que em mim se oculta / O trago que a torna única...

Para além das imagens de destruição e miséria que a televisão nos vai mostrando infatigavelmente, para além do que se publica sobre o mercado Roque Santeiro, para além dos que em nome da liberdade defraudam todo um povo e espoliam uma terra pródiga, para além das palavras doutas de Miguel Torga, há uma África que foi parte integrante de Portugal, e não sei se é inteiramente justo para as gerações do presente, que não seja mostrado o que eram essas províncias portuguesas em África. O bom e o mau, não regateio. Há documentos, e há ainda documentos humanos vivos, mas por pouco tempo, que as gerações morrem.

Também minha mãe foi quase transmontana e levou para longe as únicas recordações que lhe permitiram os seus parcos anos, as festas da Senhora dos Remédios. De meu pai recebi a saudade da sua Bairrada que ele nunca quis rever, mas que fez crescer em mim como se eu fora realmente filha das terras que ele me deixou da herança de seus pais, e em mim cultivou este imenso amor pelo idioma que eu encontrei aqui tão maltratado.

Registo, à laia de conclusão, algumas passagens das memórias que me deixou meu pai, da terra a que entregou a sua vida desde 1920, a que deu tudo, e onde está sepultado: «Lá vi a minha impotência... vi demonstrações de força, de cobardia, de suborno; vi a brutalidade do branco para o preto, a alma vil a descoberto (…) O mal vem de longe. A perseguição sistemática iniciada aos construtores de Angola vem de muitos lustros atrás. Não houve nada que não fizessem para mergulhar isto num caos. Não é com armas nem com leis que se constrói, que se eleva um património. Eleva-se e consolida-se com amor e persistência. As sanguessugas e os esbirros levam a revolta, podem construir pelo terror, mas não conservam. Com o látego as famílias dissolvem-se, não se consolidam. Amar Angola é amar Portugal, amar Portugal nem sempre é amar Angola.»

quinta-feira, março 30, 2006

Corrente

Estou de acordo com a lei que a TT propõe, só «não havia necessidade» de pôr aqui o meu nome... mas entro no jogo, embora tenha dificuldade em responder a algumas perguntas.

4 empregos que tive na vida
1 - Filha
2 - Mãe
3 - Analista de óleos usados (Laboratório Purfina-Angola)
4 - Professora+professora

4 Sítios onde vivi
1-Nova Lisboa (Huambo)
2-Lisboa
3-Sá da Bandeira (Lubango)
4-Benedita

4 filmes que posso ver vezes sem conta
1- E Tudo o Vento Levou (Tara!)
2- Casablanca
3- Guerra das Estrelas
4- Indiana Jones

4 pratos favoritos
1- leitão (só da Bairrada!)
2- arroz de pato
3- cozido de bacalhau com todos
4- açorda de marisco

4 séries que nunca perco
Normalmente não sigo séries

4 websites
1- Google
2- os blogues dos amigos
3- os blogues dos conhecidos
4 - os blogues dos não conhecidos

4 sítios onde gostava de estar agora
1- Toronto
2- Nova Zelândia
3- a navegar por aí no «Infante D. Henrique» ou «Príncipe Perfeito»
4- na Île de Migneaux (arredores de Paris)

4 vítimas

1 - planaltobie.blospot.com
2 - arliquidodois.blogs.sapo.pt
3 - ervilhas.weblog.com
4 - papoilasaltitante

quarta-feira, março 29, 2006

Salve!


O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante , luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, d’entre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre-cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro, d’entre a horta,
Dizia-lhe: «bons dias!»
E o velho padre-cura
Não gostava daquelas cortesias.

O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro:
Andava às lebres, pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente,
O velho disse um dia:

«Nada, já não tem jeito! Este ladrão
dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?»

Guerra Junqueiro

Tu sabes, mon Chagris, um pardal, já vimos o que lhe fizeste.

Agora anda um melro cantador pelo território que partilhas com o Matisse.

É vivo e ladino e vai fazer-te negaças .
Mas vai encher-te as pupilas e alongar-te o corpo em jeito de ataque,
de cauda a abanar de excitação.

É todo teu.

terça-feira, março 28, 2006

A Minha Cidade

«O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia…»

Cresci no coração de Angola, no planalto do Huambo, na cidade mais linda que nunca foi aldeia ou vila sequer; nasceu cidade por decreto de Norton de Matos em 8 de Agosto de 1912. Vicente Ferreira a fez capital da então colónia portuguesa (por três dias apenas, que S. Paulo de Luanda mais não permitiu) e lhe deu a graça de Nova Lisboa, com um sonho mais alto: o de vir a ser a capital do Império.

Os impérios entram em decadência inexoravelmente, os países demoram a encontrar o seu equilíbrio, as cidades degradam-se, as vilas esmorecem, as aldeias são engolidas pelo progresso. Mas os rios permanecem enquanto as nuvens se derramarem em chuva, as neves dos cerros derreterem em cada Primavera, enquanto brotar água da nascente. As recordações também. Por isso a minha cidade é a mais bela.

«Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.»
Alberto Caeiro

As mais belas cidades do mundo cresceram junto a um curso de água. De Lisboa a Paris, Londres ou Budapeste, o rio é a alma das cidades, de início o elo de comunicação que as ligava aos outros povos, outros mundos. A minha cidade nasceu por obra e graça do CFB (Caminho de Ferro de Benguela), o Nilo de Angola, que atravessava todo o país até ao Congo, às minas fabulosas do Katanga.

Porém muitos rios de Angola nascem no planalto central, a cerca de 2000 metros de altitude, e os rios que povoaram a minha infância estavam ali ao lado. O Kurimahala e o Kunhungama eram local de piqueniques ao fim-de-semana para umas belas pescarias; o Kuando, lugar privilegiado para passeios domingueiros, alimentava uma central eléctrica e estendia-se por largos quilómetros acima; tinha-se tornado uma praia fluvial, perto da Missão Católica, e alimentava os gostos dos caçadores pela abundância de patos bravos que ali faziam criação. Também as javas, eventualmente gansos selvagens, faziam ali as suas paragens migratórias, talvez nidificação, pois chegavam aos bandos, de longo pescoço e batidas de asas espaçadas, o que as distinguia dos outros patos. Foram sempre as minhas preferidas, detentoras para mim do poder de voar alto, de mergulhar, de trazer consigo a sabedoria de outras paragens e não gostava que meu pai as visasse com a sua arma, embora fosse ponto de glória para ele caçar alguma. O Kolongo, o Keve e o Kuito estão dentro de mim e voltarei a eles, como o Kunene que também nasce no Huambo.

A minha cidade não é mais a mesma e os meus rios não são iguais, estão cheios de minas, mas a minha memória persiste incólume e não tenciono regressar onde fui feliz; além disso, citando outra vez Neruda: «Quando estamos longe da pátria nunca a recordamos em seus Invernos».

Todavia o cacimbo regressa em todos os Maios, as chuvas continuam a alimentar os veios de água que vão adensar os rios que eu conheci e dar caudal intenso aos grandes rios africanos.
Por alguma razão a água é o símbolo da eternidade.

domingo, março 26, 2006

Às vezes neva...

«Começou a onda branca e meses infinitos no maior país do mundo…»

Assim me escreveu bonito, quem eu amo do outro lado do mar. Por cá, em tempo, mal o branco chegou à Serra da Estrela, teve honras de abertura nos telejornais portugueses. É que a neve aqui altera a paisagem e a vida de quem vive num país que teima em não estar nunca preparado para a sua vinda, inexorável embora.

As estradas continuam a serpentear estreitas e as aldeias de outrora transformaram-se em vilas e cidades onde não passam carros de bois ou, se passam, ombreiam com os carros de luxo dos turistas que querem subir à Torre. Como se a neve não fosse neve um pouco mais abaixo, como se a serra não tivesse estrelas derramadas pelas encostas, como se a torre que lhe marca a altura erguesse mais alto os Montes Hermínios.

Aqui tudo muda, mas nada muda afinal, e o que muda nem sempre é para melhor. Os rebanhos permanecem, entregam o seu manto branco aos homens em cada Verão para as fábricas de tecelagem e vertem o seu leite para alimento dos zagais e para o queijo que, há um século atrás, esse verdadeiramente artesanal, se fabricava na serra, no domínio da noite e do silêncio, como Ferreira de Castro descreve primorosamente em «A Lã e a Neve»:

«... uma dúzia de apertões em cada úbere e logo outras tetas entre os dedos. O leite muito branco lá no fundo da vasilha ia subindo e expulsando lentamente aquela poalha escura com que a noite próxima enchera a ferrada e tudo quanto em volta existia. Horácio avançava, de cócoras, entre as ovelhas, empurrando para trás de si as que já mungira. Uma ave nocturna passou na escuridade, soltando um agudo pio. (…) Horácio coava o leite, derramando-o das ferradas cheias para uma grande ferrada vazia, na boca da qual estendera um pano. Os cães seguiam-lhe todos os movimentos. Viram-no colocar no leite assim filtrado o pedaço de cardo que devia produzir o coalhamento …»

Mas a leveza do branco que cobre os telhados e campos, que dá luminosidade diferente ao mundo que habitualmente nos rodeia, que verte a água dos céus em farripas de brando cair, também chegou ao sul deste nosso país ensolarado. E a vista que desfrutei não sei descrever, com os telhadinhos dos alpendres todos brancos e branca toda a paisagem, só um melro muito negro de bico amarelo teimando em cirandar por aí, tornando mais branco o branco do jardim coberto de neve. E o céu insistia em entornar-se imaculado por sobre as árvores de ramadas em vénias, desfazendo as nuvens ainda cinzentas mas tornadas alvas ao descer à terra, como se o ar filtrasse as ramas escuras para surpreender quem olhava por detrás das vidraças, para matar a saudade dos imigrantes, para obrigar a um novo olhar, para lembrar às gentes que há outros mundos, outras latitudes.

Foi intensa a queda de neve, mas por breves horas. Chegou porém para pintar os montes, matizar as árvores, interromper viagens, encerrar auto-estradas, fazer rodopiar os automóveis e escorregar os incautos, acomodar os sem-abrigo, suscitar alegria, tristeza, saudade, solidariedade. Só por isto, bem-haja a neve.

O calendário marca a Primavera.
O melro continua por aqui, canta para continuar a vida.

sábado, março 25, 2006

Prosaísmo


Coimbra do Choupal / ainda és capital / do amor em Portugal /ainda
Coimbra onde uma vez / com lágrimas se fez / a história dessa Inês / tão linda
Coimbra das canções / tão meigas que nos pões / os nossos corações / a nu
Coimbra dos doutores / p’ra nós os teus cantores / a fonte dos amores / és tu

Coimbra é uma lição
De sonho e tradição
O Lente é uma canção
E a Lua a Faculdade
O livro é uma mulher
Só passa quem souber
E aprende-se a dizer
Saudade
Fado (filme «Capas Negras»)



Quando a tarde se espreguiça num dia mais longo e as roseiras ainda não floriram, acontece o repetir de saudades já mortas ou que nunca o foram.

Quatro décadas em comum não esgotam afectos nem histórias recontadas, daí valer a pena marcar mais fundo num sorriso, as marcas do tempo nos rostos.

Algures pelos anos cinquenta, os estudantes universitários que se ficavam pelo «parecê-lo» acabavam por assentar praça, sem apelo nem agravo.

Parece que havia em Coimbra, no Regimento de Santa Clara, um oficial superior muito zeloso da sua horta. Desgostoso com o assédio das lagartas ao seu couval, destacou três elementos recém-incorporados da estudantina, para o combate ao inimigo que, pela calada da noite, atacava as suas couves.

Munidos de uma lanterna de mão, iniciaram a patrulha da zona, devidamente organizados nas suas tarefas: o primeiro identificava o atacante, o segundo colocava-o no solo e o terceiro esmagava-o com a bota.

Vozes de comando em três timbres soavam na noite, atroando o Choupal:

– Atenção lagarta!
– Lagarta aqui!
– Lagarta abatida!
– Atenção lagarta!
– Lagarta aqui!
– Lagarta abatida!
– Atenção lagarta!
– Lagarta aqui!
– Lagarta abatida…

quarta-feira, março 22, 2006

Hora de vésperas

A lareira ainda arde, sabe bem quando a noite chega.

Laivos alaranjados sobre o fundo negro da tijoleira escurecida, o lar cheio de cinza, os troncos de azinho traçados, cativam o olhar perdido e aquietam-no. Um crepitar mais intenso acende outra fogueira noutro tempo, noutro espaço, noutras latitudes.

Os fins de tarde de cacimbo, quando o dia arrefece ao sol-pôr entre as dengas e jacarandás, quando a brisa pára e a serra ao longe se coroa de púrpura, quando os velhos conversam em surdina, quando os lebréus se alongam junto à matilha humana, quando as andorinhas cansadas da corrida veloz repousam sob os beirais e um ou outro morcego ciranda e parece sem tino, uma fogueirinha se acende com carolos e gravetos recolhidos a esmo. Então a quietude se instala e a paz acontece.

A noite chega de manso, acordam os tambores no quimbo, e o serão prossegue na caça aprazada, no tecer das rendas, no contar dos fios, no bordar dos linhos à luz forte do candeeiro, até ao regresso dos caçadores. Lá fora a fogueira ainda brilha; a seu lado os cães, o ciciar dos homens fiéis que guardam a casa e as senhoras.


«Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa
Do tempo em que eu ajoelhava, orando, ao pé de ti.
Caía mansa a noite; e as andorinhas aos pares
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares,
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci.
Era a hora em que já sobre o feno das eiras
Dormia quieto e manso o impávido lebréu.
Vinham-nos da montanha as canções das ceifeiras,
E a Lua branca, além, por entre as oliveiras,
Como a alma dum justo ia em triunfo ao Céu!...»


Guerra Junqueiro in «A Velhice do Padre Eterno»

terça-feira, março 21, 2006

Primavera



«– Cuco do Minho, cuco da Beira: quantos anos me dás de solteira?

O que foste fazer! O malandro do pitoniso, se há pouco foi cruel, desta vez requintou.

– Cucu… Cucu… Cucu… Cucu…

Parecia uma ladainha! A lengalenga não parava mais. Ou de propósito, ou porque o mundo, naquele instante, era um orfeão aberto, o ladrão dava mais anos de solteira à rapariga do que estrelas tem o céu.

Desapontada, a cachopa regressou às ervas daninhas do lameiro. E, num amuo justificado, deixou correr as horas. A seu lado, comprometida, a Isaura, que tinha garantido o noivado a curto prazo, falava, falava, sem conseguir adoçar-lhe no espírito o fel da desilusão.

E quando a noite se aproximou, disposta a selar com negrura aquela tristeza humana, foi preciso que Farrusco, o melro, novamente solidário com os direitos da moça, saltasse da espessura da sebe para o cimo de um estacão, e fizesse ressoar pelo céu parado e quente uma segunda gargalhada.

Discordância de tal maneira fresca, sadia, prometedora, que a rapariga ganhou ânimo. Pôs os olhos em si, na força criadora das margaridas abonadas, no ar de coisa sã que toda ela ressumava, e sorriu.

Depois, confiante, juntou a sua alegria à alegria do melro. Soltou então também uma risada cristalina, que partiu da verdura do milhão, passou pelas penas luzidias do Farrusco, e foi bater como um castigo no ouvido desafinado do cuco.

Um segundo a natureza esteve suspensa daquela gargalhada.
A vida homenageava a vida.

Depois continuou tudo a cantar.»

Miguel Torga in «Bichos»

segunda-feira, março 20, 2006

Escrito ao Novo Mundo



Eu nasci em África, nos Idos quarenta, bem à beirinha dos trinta.

No tempo em que a fazenda de férias da minha infância era um imenso pomar sempre verde de laranjeiras copadas, enormes, altas como as não vejo. Era pequenina eu, parecer-me-iam maiores as árvores… talvez. O certo é que meio século depois, uma viagem tranquila de comboio de Toronto a Niagara Falls me fez sentir outra vez menina, pequena entre as árvores grandes, enormes, donas do céu e da terra quente do Verão de Agosto.

Deve ter sido por pequenos sentires como este que se fixaram no Canadá muitos dos portugueses que demandaram um chão firme, quando a terra prometida lhes faltou, na África que julgaram deles para sempre e onde nasceram os seus filhos. Eu regressei à terra dos meus pais, ambos beirões, mas o pulsar da Europa não passa de uma gaiola dourada para um pássaro da fauna africana.

Numa época em que ainda me sinto com alguma energia, quem dera sentir-me gazela outra vez, voar tranquila por sobre o Atlântico e pousar num velho ninho de cegonha algures por aí. No terceiro milénio tudo é possível em termos de comunicação, até voar uma gazela. E eu queria manter viva a alma da diáspora portuguesa. África e Portugal estão em mim de todas as maneiras; encontrei nessa parte do continente americano uma mistura equilibrada do que me apraz sentir e a ela voltarei sempre que tiver oportunidade.

Porque tenho quase a certeza de que irei chegar a essas terras da neve e ser lida por alguém da comunidade portuguesa que faz parte dos canadianos de hoje, porque nesse espaço reside hoje metade do meu corpo e da minha alma, a eles dedico esta página como a primeira das que se seguirão com sabores daqui e da terra que me viu crescer, páginas doces como o mel de abelha que sorvi do pedaço de favos que me deu ontem o Leonel. O Leonel é um primo de profissão marceneiro, bem a sério como leva a sério tudo na vida. Tem o chão de seus pais que preza acima de tudo, onde refez uma casa de campo, um lugar de churrasco sobre um pátio lindo e largo de calçada à portuguesa, um alpendre de colunas enroladas de glicínias a dar as boas-vindas em todas as primaveras.

Não sei se pela tez curtida do sol, pelas rugas precoces do seu sempre sorriso, pequena estatura ou patilhas de ribatejano, lembra-me o Malhadinhas: «desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças, à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava jaleca curta de montanhaque, sapato de tromba erguida, faixa preta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata e Aveiro vai, Aveiro vem, no ofício de almocreve…»

Homens destes já não há no nosso Portugal europeu, mas o pensamento de Aquilino, pela boca do seu Malhadinhas, ainda vai tendo voz nos períodos difíceis que atravessamos: «Não tenho cataratas nos olhos, ainda que me hajam rodado sobre o cadáver quase dois carros de anos, mas os dias de hoje não os conheço. Ponho-me a cismar e não os conheço. E quanto mais cismo, mais dou razão ao Miguelão da Cabeça da Ponte, que falava como livro aberto, o grande bruxo. Muitas vezes lhe ouvi dizer quando estava de boa lua, o que nem sempre assucedia: “Tempos virão em que governarão as terras vãs e os filhos das barregãs”.»