terça-feira, janeiro 30, 2007

Pais Verdadeiros


Encontrei uma preta

que estava a chorar,

pedi-lhe uma lágrima

para a analisar.


Recolhi a lágrima

com todo o cuidado

num tudo de ensaio

bem esterilizado.


Olhei-a de um lado

do outro e de frente:

tinha um ar de gota

muito transparente.


Mandei vir os ácidos,

as bases e os sais,

as drogas usadas

em casos que tais.


Ensaiei a frio,

experimentei ao lume,

de todas as vezes

deu-me o que é costume;


nem sinais de negro,

nem vestígios de ódio.

Água (quase tudo)

e cloreto de sódio.

António Gedeão


Está hoje um daqueles dias nevoentos e frios, de chuva miudinha, verdadeiro dia invernoso.

De consulta marcada no Centro de Saúde, mal necessário a quem não é pelo menos deputado ou ministro, pela segunda vez o médico faltou. Tem esse direito, é claro como água, apenas eu julgava que os utentes também tivessem o direito de ser informados disso, durante a manhã, já que a consulta era mais tarde. Mas a estes só resta agradecer o facto de não serem obrigados a passar lá a noite para a marcação de consulta, como acontece noutras localidades (no ranking dos 25, nós até estamos em 24º lugar…).

Pois ali fui cumprimentada por uma senhora, mãe de duas meninas gémeas de que em tempos fui directora de turma. Recordo-me bem dessas duas pequenas, de temperamento e capacidades intelectuais diferentes, mas sempre unidas na sua cumplicidade, educadas e cumpridoras. Ao que soube, ambas frequentam actualmente o ensino superior. A mãe é uma senhora que transmite firmeza, segurança, não esconde um orgulho imenso pelas suas filhas.

A empatia estabeleceu-se entre nós por motivo de um qualquer diferendo surgido na época entre duas alunas, já nem posso precisar a questão; quem lida com adolescentes sabe bem como estes podem magoar profundamente alguém sem disso terem consciência, principalmente quando não recebem da parte dos seus educadores o exemplo mais correcto e precavido. Sei que, a este propósito, fiquei a saber que esta senhora não era a mãe biológica das gémeas. Seu marido teria tido um relacionamento ocasional e teria depois ficado com as crianças à nascença, tendo-as registado como filhas do casal.

Quando lhe perguntei agora pelas filhas, os seus olhos brilharam, e porque ainda recordei os nomes, marejaram-se. Eu também me senti comovida por aquele amor intenso que sempre entrevi, aquele desvelo, o orgulho de ter conseguido dar às suas filhas o melhor que para elas almejara. Mostrava um rosto radioso.

Claro que tudo isto vem a propósito de Esmeralda.
Como há coragem para, em nome da justiça, retirar uma criança aos seus pais?
Que justiça?
Que lei?
Que cumprimento de lei?
Como é que se pode explicar a uma criança de menos de cinco anos que os pais
, afinal, não são seus pais?


sábado, janeiro 27, 2007

Fotografias


«…O tempo a elas deve

a solenidade esbelta

com que nos aparece

às vezes como poalha

esgueirando-se entre troncos.

O tempo a elas deve o nosso

afecto pelo tempo. Servi-

doras e devotas, coisas

mesquinhas, cheias de linhas

nítidas, contornadas por uma

claridade enérgica diária.»

Fiama Hasse Pais Brandão




Nunca tive jeito para fotografias. Complexo. Por mais que me esforçasse, o resultado era sempre desastroso: a nitidez, não estava lá, o enquadramento deixava a desejar. A culpa não era minha, era da miopia… depois tinha de acertar uma celebérrima luzinha amarela e eu, concentrada em focar um ponto determinado demoraaaaaava um certo tempo; isso impacientava quem esperava que eu fosse mais lesta no ofício; se ainda me fosse preocupar com o enquadramento conveniente nunca mais era, e acabava disparando aos tremeliques. Para ser menos cáustica, as minhas fotografias deixavam a desejar. Achei sempre mais conseguidas as fotografias dos outros e há que reconhecer que não se pode saber tudo.

Vem-me agora à memória, como um flash, um mini-curso que fiz em Poitiers sobre fotografia, durante um estágio. No final havia um trabalho a apresentar e foram-nos distribuídas máquinas fotográficas para que pudéssemos ilustrar o tema que escolhêramos. Nós próprios revelávamos as nossas fotos. Divertidíssimo! Fechados numa câmara escura, colocávamos o rolo num produto e rodávamos o mesmo para a direita, depois para a esquerda, um determinado número de vezes, se nos enganássemos estragava-se tudo. O meu grupo apresentou antes em diapositivo, porque era mais fácil. Foi apenas uma semana, para que pudéssemos concluir devidamente o nosso estágio na OAVUP. Fiquei com algumas luzes, mas não foi o suficiente para me entusiasmar.

Ainda tenho comigo a máquina fotográfica de casa dos meus pais, aquela que tirou as fotos – a preto e branco - que tenho aqui apresentado da minha infância. É uma preciosidade. Continua dentro do estojo negro, que aparece a tiracolo da menina que eu era, aqui junto de minha mãe. Também tenho guardada para a posteridade a que usei para marcar os momentos capitais dos meus pequenos, comprada por seu pai, ainda solteiro, com o primeiro ordenado recebido como oficial miliciano, ainda em Coimbra, por final dos anos cinquenta. A velocidade, direi a voracidade, da ciência trouxe até mim a máquina digital dos tempos modernos. Aí consigo finalmente captar uma razoável imagem entre cada cinco, enfim, passe a imodéstia...!

Tudo isto para revelar a quem me lê que todas as fotografias que constam do meu blog, inclusive as do Flickr, são prata da casa. Quando isso não acontece, eu dou a indicação da origem. Só que a casa não sou precisamente eu e já confessei acima as minhas incapacidades. Quase todas são da autoria de minha filha, e eu aproveito uma ou outra porque as acho bonitas e porque de algum modo se enquadram no que escrevo. Isto principalmente para responder à Daniela cujo olhar me seduz e é sempre tão amável nos comentários.

O post da esperança em verde foi carinho de irmã, apenas para lembrar ao filho ausente e distante a feira mensal da sua infância, hoje deslocalizada (há que entrar na onda…) por força do progresso, que deixou memórias diferentes numa e noutras mentes: eu, professora, paraquedista recém-chegada de outro continente, horrorizada com os ruídos e animais de grande porte entrando Externato adentro em cada dia seis; ele, ela, crianças ansiosas em cada mês pela excitação daquele dia diferente, forçadamente de aulas diferentes…



terça-feira, janeiro 23, 2007

Beatitude


As entradas marcadas por árvores em alas são sempre um convite à intimidade que nos vai faltando nas zonas urbanas ou urbanizadas em que a solidão é ruidosa e por isso dói mais.

A solidão mentirosa no fundo das áleas, sejam de plátanos ou castanheiros, já ficou nos verdes que falam da natureza que somos, da pureza inicial onde regressamos paulatinamente, caminhando devagar, com a delicadeza das folhas que se desprendem e caem sobre nós como um afago.

Se houver tempestades, façamos por gerir os estragos, serenamente, porque ela passa e nós ficamos. Varrer as folhas no chão, escutar a brisa que resta, procurar no céu as estrelas, encontrar a nossa. Depois, olhar para ela, fixá-la como um espelho.

Temos brilho, energia, cintilamos entre todas as que nos rodeiam, há em nós uma força que parece extinta quando o sol é o astro maior, mas é avassaladora quando a noite chega. Nós cintilamos ainda e, mesmo perecidas, ainda há olhos que nos vêem, séculos adiante.

Temos o hábito que nos inculcaram de olhar o mundo de dia e a cores, mas a noite é parte integrante do dia, só alguma pobreza de língua impede a utilização aqui de vocábulos distintos. A natureza de noite é mais forte, mais rica, mais produtiva. O dia fornece-lhe a energia mas queima e agride, tanto mais, quanto mais quente a atmosfera. A noite cálida proporciona o bem-estar, a digestão perfeita da energia acumulada. A subtileza do escuro faz emergir as sensações obliteradas pela luz, a voluptuosidade dos cheiros, dos silêncios, do encontro dos corpos. A visão esmorece, mas tudo é tão mais forte que mesmo o olhar encontra o que apenas se adivinha.

Na praia, a areia morna nos pés descalços é um prazer sem tamanho. Se a onda chega, devagar, traz consigo os sonhos perdidos, os risos na espuma branca, os segredos sussurrados nos búzios, ouvidos dentro, destapados num sorriso, num afagar de mãos.

A solidão é mentira.

domingo, janeiro 21, 2007

sábado, janeiro 20, 2007

Fiama Hasse Pais Brandão

Começa a alba, a luz,
existe a harmonia



«...Porque me apareceu a visão renovada
do terror antigo com o sentido novo,
porque me escolhi, entre as Crianças,
para narrar a Peregrinação,
com a letra que é a do meu tempo
e o espírito da infância com os seus Olhos?

E não esqueceu o Ouvido essa Criança,
entre sinos e preces e gemidos,
e, um dia depois, na punição vivida
até à recompensa, em que soou no fim
a água a escorrer liberta para o Sol.

Agora pensei que os que sofriam ali
eram os que foram traídos neste século,
em que Moloch prometeu indústrias
e trabalho e os ócios para todos.
Vi-os com o seu esgar triste e cúpido,
olhar o frontão da capela iluminada,
e escutei o Homem Só a dizer alto
que lhe haviam tirado o Deus antigo
para ser mais livre e seu.

Porque aquela de quem era filha
me levou como peregrina outrora
onde não soube ver senão os rostos
e os percursos que a memória trouxe,
sou hoje a narradora, até ao milénio,
desta peregrinação e da catábase
com que me torturo e salvo, nestes versos,
em nome dos homens do meu século...»

F.H.P.B., (Este) Rosto, 1970

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Eolo, o deus dos ventos


«Que c’est triste Venise

au temps des amours mortes

Que c’est triste Venise

quand on ne s’aime plus

On cherche encore des mots

mais l’ennnui les emporte

On voudrait bien pleurer

mais on ne le peut plus…»

Charles Aznavour


Os dias pardacentos destes invernos sem chuva têm no meu espírito um efeito devastador. São o reflexo de mim, e eu preciso continuamente do fulgor dum farol para me manter longe da costa, já que o meu caminho é o mar alto. O mar alto e com vagas, sob um céu estrelado ou sol brilhante, causam-me menos receio que a água plana num banco de nevoeiro.

Em viagem, olho a montanha engalanada e lembro os moinhos da infância, de velas pregadas com um punaise na extremidade de uma cana de bambu. Agora corro ainda, mas na estrada de asfalto, e as velas que vejo rodam, rodam devagar, porque, como eu, já não têm pressa.

São belas porque giram e giram e cantam ao vento. Os seus corpos, altaneiros, do alto da serra olham a paisagem longe, sopram segredos no vale, aspiram os odores da fruta olorosa dos campos, choram o esventrar da terra nas pedreiras claras a ferir a serrania.

Por companheiros humildes a urze e a esteva, o carrasco e o pilriteiro, o rosmaninho e o alecrim.

E a gralha de bico vermelho.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Poema do Futuro

Conscientemente escrevo e, consciente,

medito o meu destino.


No declive do tempo os anos correm,

deslizam como a água, até que um dia

um possível leitor pega num livro

e lê,

lê displicentemente,

por mero acaso, sem saber porquê.

Lê e sorri.

Sorri da construção do verso que destoa

no seu diferente ouvido;

sorri dos termos que o poeta usou

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;

e sorri, quase ri, do íntimo sentido,

do latejar antigo

daquele corpo imóvel, exumado

da vala do poema.


Na História Natural dos sentimentos

tudo se transformou.

O amor tem outras falas,

a dor outras arestas,

a esperança outros disfarces, a raiva outros esgares.


Estendido sobre a página, exposto e descoberto,

exemplar curioso de um mundo ultrapassado, é tudo quanto fica,

é tudo quanto resta

de um ser que entre outros seres,

vagueou sobre a Terra.

António Gedeão


quinta-feira, janeiro 11, 2007

Caça

«Quem de nós falará aos homens que hão-de vir

quando o grande clarão encher de luz

e pasmo as nossas bocas?

E como?

Que língua entenderão eles?

Que símbolos, que sinais, que apagados murmúrios,

lhes falarão de nós,

desta fluida e versátil multidão

destes seres que aparentam rosto humano

e como tal comovem,

mas que olhados do alto são lepra do planeta...»

António Gedeão


































A caça fez parte da minha vida. Sempre.

Sem escolha, nasci naquele país longínquo, naqueles tempos longínquos da 2ª Grande Guerra.

Quando dei fé de mim, quatro, cinco anos, onde posso situar uma ou outra lembrança, a caça está presente. Nas fotografias resgatadas à descolonização, mal posso saber como, tenho registos da minha alta infância; porém não possuo, dos meus filhos, mais do que aquilo que pude aqui recuperar da família para quem enviava uma ou outra foto. Perdi, como tudo o resto, esses documentos preciosos.

Mas, dizia eu, a caça está presente, eu estou presente entre a caça. Caça era uma palavra que me fazia vibrar, porque representava sempre excitação, alegria, amigos, conversa, comunicação, enfim. Os amigos da casa caçadores eram sempre os mais divertidos, deixavam as crianças participar nas conversas, contavam histórias entre gargalhadas – parece que há um provérbio que assegura que um dos momentos em que os homens mais mentem é após uma caçada... – novos e velhos tinham peripécias que escorriam pelas noites mornas, alongando os serões.

Das caçadas com os amigos resultavam sempre almoçaradas de bifes de lombinho grelhados com gindungo, acompanhados de enormes e suculentos cogumelos (kema eram os melhores e trazidos também pelos caçadores no início da época das chuvas, ali por Setembro…), arroz de pato no forno, perdiz estufada com ervilhas e ovos de pomba escalfados, pernas de nunce ou chissóvio assados também no forno enorme de lenha.

A preparação das grandes caçadas anuais era sempre rodeada dum ritual que me encantava. A ida ao Sul de Angola, para a espera aos elefantes, determinava o planeamento cuidadoso dos oito dias normais de estadia. Os companheiros habituais eram o meu pai, meu tio Kamenino, o tio Albino da Cangonja, e o nosso comum primo Mim, que baptizou o «cesto mágico» de meu pai. E a este propósito havia sempre, no regresso, estórias divertidas para contar, entre gestos e gargalhadas que nunca vou esquecer. Era um pequeno cesto de verga, que meu pai conservava longe dos olhares, e do qual, nos últimos dias, quando os mantimentos comuns escasseavam em qualidade, surgiam acepipes inesperados, pois meu pai reservava um cuidado especial na composição do seu conteúdo. Não faltava aí o bom presunto, queijo da serra, umas garrafas de vinho e uns enlatados especiais. Era ainda tempo de limpar muito bem a sua espingarda, uma 10-75, arma de bala especial que apenas era usada nessa altura, passando o resto do ano embrulhada em massa lubrificante. As caçadas nos terrenos da fazenda, já tive oportunidade de as referir aqui, eram precedidas de longas conversas ao fim de tarde, frente à casa; longos conciliábulos entre meu pai e os sobas para decidirem, com a aprovação de todos os presentes, em círculo, do melhor dia para o gebo, a melhor oportunidade para o início da queimada.

Espingardas, convivi com elas desde a infância. Estavam sempre descarregadas, mas sabia que não podia pegar nelas sem ser na presença de meu pai. Uma vez única experimentei a caçadeira em que peguei vezes sem conta, a 22 LONGO que ficou depois para meu irmão; tinha dois canos, um ao lado do outro. A de meu pai tinha os dois canos sobrepostos, era linda, a coronha tinha uma protecção na ponta, a culatra era toda gravada com figuras de patos num lago cheio de canas, a argola em volta do gatilho também. A limpeza dos canos era obrigatória à chegada da caça e constava de um serviço meticuloso: havia um estojo com umas peças longas e finas de metal amarelo que enroscavam umas nas outras para dar o comprimento necessário, na ponta duas peças do tamanho de cartuchos alternavam, uma para limpar como que raspando os canos, e finalmente uma outra para limpar o pó.

Todas as armas de caça e pistolas que havia na casa de meu pai, foram entregues, já nos anos 70, a um dos três movimentos (ditos) de libertação que conviviam na terra já devassada pela guerra, à FNLA, que ocupou a casa onde cresci em Nova Lisboa, na altura desabitada largos dias porque minha mãe, viúva, passava longas semanas na fazenda.

Esta parte não quero lembrar.

terça-feira, janeiro 09, 2007

Nevoeiro


Tu que crês num mundo melhor e maior,

Grita bem alto que o céu está aqui.

Tu que vês irmãos, só irmãos em redor,

Crê que esse mundo começa por ti.


Luís Góis




Corro a cortina e o nevoeiro permanece.

Para além do nevoeiro, miríades de imagens se sobrepõem e não consigo afastar. O sol que vejo queima a terra vermelha dos mutilados da guerra, dos sobreviventes da sede, do calor húmido e pestilento duma terra injusta porque liderada por homens insanos.

Eu nasci em África, num lugar menos quente, menos árido, bem mais acima do mar, bem mais fecundo, de montanhas e vales traçados por rios que lavam ainda o sangue dos mortos e espalham ferrugem nas minas deixadas pela guerra. Meu pai foi aí um colonizador, nunca lhe chamaria um colonialista, com toda a carga negativa adstrita. Foi um homem probo. Não tocou na herança que seus pais lhe deixaram quando abalou para África em 1920, depois de cumprido o serviço militar, nem para aqui trouxe rigorosamente nada do que Angola lhe deu. Os seus restos mortais repousam algures, como sei que gostaria, na terra que ele amou como sua.

Eu regressei em 75 porque tinha dois filhos e o meu mundo eram eles. Nunca me arrependi da decisão tomada em horas difíceis, quando homens armados de movimentos de libertação saltavam os muros do meu quintal e no ar zumbiam morteiros que só me tiravam a angústia quando explodiam longe da casa onde os meus filhos brincavam debaixo das camas. Egoísmo? O que quiserem que seja. Foram três dias de inferno num Agosto inesquecível que me escuso a recordar, para além da imagem de dois homens em casa, a cortarem em três cada um dos cigarros que restavam porque era impensável sair à rua.

A minha infância foi um sonho bom, a minha adolescência bem mais real. Pardacenta. Reservada. Restringida. Lembro a proximidade de minha família com os Dáskalos. Recordo amizades de uma vida, minha Mãe e a Baronesa, sem filhos, mas sofrendo pelos irmãos, pelos sobrinhos queridos. O sofrimento, a saga de uma família que apostou tudo numa terra que tudo lhes tirou. Desde menina me recordo de ouvir falar no Zé, no Luís, estudantes já universitários, presos e humilhados pela PIDE, seu tio Sócrates, refugiado em Argel, depois o David, que ofereceu a Angola a sua vida de médico, a quem retalharam o corpo bem depois da independência. E Zaida, a Zaidinha, a mestra por excelência de várias gerações, do velho Colégio Ateniense, que foi a última a regressar, octogenária perseguida. Não sei se ainda está neste momento em Luanda a Maria Alexandre, mas creio que não. Todos dedicados à cultura, à pedagogia, à ciência, ao ideal de uma terra imensa de corpo multicolorido e alma enérgica, grande elefante conduzindo a manada de todas as tribos, todas as línguas, todas as religiões. Com segurança e prosperidade.

Ontem como hoje, o meu mundo é aqui. Não sei se muito melhor, mas decididamente menos perigoso e um pouco mais justo. O preço do crude desceu e os combustíveis aumentam para todos, a Santa Casa da Misericórdia não tem o necessário para acudir aos que precisam, mas tem o suficiente para promover o Dakar de que a França desistiu e a Espanha abandonou. Mas aqui - como na escola - só é preciso que o povo se sinta feliz. E o povo continua a jogar no euromilhões e a ir em peregrinação a Fátima para deixar o óbolo à Igreja, para ela erigir mais monumentos, para arrecadar os milhões de que se orgulha, mas com que não ajuda os pobres. «Quem dá aos pobres empresta a Deus». A Igreja é Deus, não precisa de emprestar-Lhe nada.

Eu não sou deus, nem sou pobre. Sou apenas povo e não frequento a igreja. Nunca dei um quilo de arroz para ajudar os meus Irmãos em Angola. Nem tenciono. Devo ser egoísta.

sexta-feira, janeiro 05, 2007

Boas Festas de Québec







Parece ter sido num dia distante de Julho de 1534, que o explorador francês Jacques Cartier entrou, pela primeira vez, no golfo de St. Lawrent, subindo depois o rio de Saint-Laurent, como é ainda hoje designado pelos habitantes da província do Québec, que continuam de expressão francesa num Canadá maioritariamente anglófono. Cartier procurou nele ouro e diamantes, além de pensar que o rio o levaria ao caminho marítimo para a China e Índia. Não encontrou uma coisa nem outra.

Foi Cartier quem deu à nova terra descoberta o nome de Canadá, partindo da designação que os nativos davam àquele lugar, «Kanata», e com quem se limitaram a negociar, nos primeiros anos, as peles dos animais que ali havia em abundância. Foi porém Samuel de Champlain, no início de 1600, quem construiu as primeiras habitações de madeira, local a que os índios logo chamaram Québec. A cidade de Québec é a capital da província com o mesmo nome, parte integrante do Canadá, embora com um número significativo da sua população a pretender uma autonomia mais concretizada.

É uma cidade moderna que preserva fortemente as suas raízes europeias, onde podemos encontrar ainda edifícios e igrejas belíssimas dos séculos XVII e XVIII.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Bom Ano!

«Saúdo todos os que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo

Quando me vêem à minha porta

Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

Saúdo-os e desejo-lhes sol,

E chuva, quando a chuva é precisa,

E que as suas casas tenham

Ao pé de uma janela aberta

Uma cadeira predilecta

Onde se sentem, lendo os meus versos…»

Fernando Pessoa






Bom ano 2007!

Ontem uma estimada amiga enviou-me um daqueles documentos PPs que circulam por aqui, nem sempre de bom gosto, num português nem sempre bom, com aquele final respectivo de promessas de sorte e amor. Para ler e descartar quase sempre. Guardo porém alguns, pela beleza, pela graça das imagens, pela música, pela poesia. O de ontem já não consta; as imagens desfocadas e nada de nosso na escrita. Mas da mensagem ficou-me o leve sopro que aqui deixo e me parece acertado para recomeçar.

Contava a história de um mendigo que havia colocado a seu lado um cartaz dizendo que era importante e bonito, que tinha uma vida de sucesso e bem estar, e referia os bens materiais que lhe proporcionavam saúde e felicidade. As pessoas passavam, sorriam, algumas deixavam uns trocos. Um dia, um indivíduo achou-o criativo, ofereceu-lhe um emprego na sua empresa, a partir dessa altura a vida sorriu-lhe.

Anos mais tarde, contando numa entrevista o seu percurso de vida, a sua interlocutora perguntou-lhe a razão daquele cartaz. Ele respondeu que, durante muito tempo, tinha mostrado a miséria e infelicidade em que vivia e ninguém lhe prestara atenção. À consideração irónica de que uma simples placa lhe teria mudado a vida, retrucou:

- Ah, não! Antes disso, eu próprio tive de acreditar no que lá estava escrito!

Parece-me claro que temos de lutar contra a nossa depressão comum, esse cão que fila e não larga. Temos de começar o ano com a esperança em dias melhores, acreditar que o pão já não vai aumentar 20% em 2008, que os combustíveis e a prestação da casa vão descer um pouquinho. Que o desemprego vai acabar na União Europeia, porque África vai deixar de ser governada por ditadores sem escrúpulos e os povos vão saber tirar proveito das riquezas dos seus países e dar oportunidades de emprego a todos os que debandaram. Que o Mais Velho continente vai saber dar a mão a outros povos de outros credos e vai saber ensinar que, afinal, Abraão foi o Mais Velho de todos os Muçulmanos, Cristãos e Judeus. Que as decisões de Quioto vão finalmente ser acatadas por todas as grandes potências económicas.

O nosso mundo é bonito e diverso. Vamos tentar ser tolerantes e ter fé em nós próprios.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

Claridade



Um dia juntei todas as palavras

que já aprendera e

busquei para elas novos sentidos,

novas maneiras de soar e de voar

até ao coração dos homens.

Censuraram-me por tê-lo feito

e houve até quem dissesse:

«as palavras são o que são

e procurar para elas novos significados

é pura perda de tempo e ofensa aos deuses.»

Eu não lhes dei ouvidos

e continuei a escrever, aprendendo

o sabor de casar a palavra «água»

com a palavra «vento» e a palavra

«corpo» com a palavra «terra»

e a palavra «homem» com a palavra «sonho»

e a palavra «natureza» com a palavra «vida».

Foi assim, um pouco sem o querer,

um pouco sem o esperar, que usei

pela primeira vez a palavra «poesia»

que viaja comigo, companheira eterna,

para todos os lugares aonde vou,

desde a memória do homem

até aos últimos esconderijos da noite

até ao fundo da claridade dos dias.

José Jorge Letria