Por que me falas nesse idioma?
perguntei-lhe sonhando.
Em qualquer língua se entende essa
palavra.
Sem qualquer língua.
O sangue sabe-o.
Uma inteligência esparsa aprende
esse convite inadiável.
Búzios somos, moendo a vida
inteira nessa música incessante.
Morte, morte.
Levamos toda a vida morrendo em
surdina.
No trabalho, no amor, acordados,
em sonho.
A vida é a vigilância da morte,
até que o seu fogo veemente nos
consuma
sem a consumir.
Cecília Meireles
Ouço a voz do tempo escoando nos beirais suados, num sussurro igual ao espanejar das andorinhas pousadas no fio da corda velha suspensa nas traves da varanda.
Os passos suaves, as mãos delicadas colhendo cada tronco de flor envelhecida nas sardinheiras coloridas, pousadas no muro baixo e debruçadas, oferecidas à sedução do sol garboso da manhã.
O odor das folhas de malva chega em sinestesias de cor e textura, de sons, de calor. O cheiro que exala a cozinha velha. O cheiro ao doce de morango. O cheiro da chuva. Ao cheiro do café, a claridade da manhã alta nasceu cedo, na madrugada ainda escura.
Os ruídos, os cães cansados da caça às perdizes, as pessoas girando, as conversas, os risos. Os gritos. O cacarejar da bicharada à solta, as andorinhas pipilando nos ninhos altaneiros dos beirais.
A buganvílea junto ao portão grande, os agapantos brancos ao longo do muro a que chamavas coroas-de-henrique. As dálias surgindo no meio dos outros verdes, de cor vermelho-negro pincelado de branco, as florinhas em bando, pequenas e azuis, as alegrias-do-lar debaixo da laranjeira ali perto. As mãos de criança apertando o casulo das sementes e tornados vermes retorcidos. A melancolia do teu olhar mergulhado nas laranjeiras até ao fundo da horta. A humidade nas faces.
Nada é igual, só as sardinheiras.
Hoje tive saudades, Mãe.
Até à eternidade.