quinta-feira, março 29, 2007

Aguarela


Ah, quem me dera ser capaz de captar o riso das crianças nas vibrações das cordas e exprimi-lo por palavras. Mas estas são insuficientes. Penso na linguagem que usamos para descrever a música e em como estamos mal preparados para a infinidade dos tons. Mas, apesar de tudo, dispomos de processos para registá-la; na música, as nossas inépcias confinam-se unicamente às palavras porque podemos sempre recorrer a claves e a escalas. E, no entanto, ainda não descobrimos palavras para todos os outros sons, nem conseguimos registá-los por meio de claves e da escrita. Como posso descrever-te o que quero dizer?

Daniel Mason



Que importa o mundo injusto em que vivemos, se há outros mundos dentro de nós, se há outros brilhos em cada olhar, outros sons que não alcanço, outras cores no espectro solar?

As palavras são escassas quando o sentir estala dentro de nós. Como a terra é impotente quando o céu se abate em torrentes, se desfaz liquefeito na minha África ardente. Assim o mesmo céu se rasga em fendas de raio, quebrado vidro cor de cinza, troando forte a anunciar a tempestade, não vá a natureza esquecer a sua força. A força que faz brotar dum caule seco e recurvado a primavera em verde e a explosão das rosas.

O teatro ajuda a crescer as palavras. Dá-lhes cor, força, ímpeto, melancolia ou riso. Por isso a paixão do teatro a quem a cultiva, um pouco a exemplo do que leio ainda em Daniel Mason, no livro de fim-de-semana: «…esses lotófagos não empreenderam fazer nenhum dano aos nossos companheiros, logo lhes dando a provar lótus. Mas os que saborearam o gostoso fruto do lótus recusaram-se a levar qualquer mensagem, ou a partir, desejando antes morar para sempre com os homens lotófagos, alimentando-se de lótus e esquecendo de vez o caminho para casa.»

Gosto deste caminhar da Primavera em dias de sol e chuva, a temperatura macia, os primeiros arroubos das aves que povoam o jardim, o gato filando os saltaricos, as borboletas, de pata esticada entre as pedras logrando uma sardanisca, o cachorro mais leve no seu pêlo rasado pela tesoura, insensível à beleza da manta sedosa que o cobriu de Inverno. Gosto da paz que ouço, mas a quietude assusta-me. Prefiro ouvir o mar a bater nas fragas.

Quero dizer e não sei. Quero escrever e não posso. Apenas sinto em borbotões uma saudade do que não tem volta.

domingo, março 25, 2007

sábado, março 24, 2007

Diferenças


Passa um rei – é o Poeta.

Não pela força de mandar,

mas pela graça mágica e secreta

de imaginar.


O ceptro, a pena – a lançadeira cega

do seu tear de versos.

O manto, a pele – arminho onde se pega

A lama dos caminhos mais diversos.


Um grande soberano

No seu triste destino

De ser um monstro humano

Por direito divino.

Miguel Torga




Na minha caminhada pelas artes do ensino – pois que o magistério é uma arte das mais sofisticadas e complexas – tive oportunidade de conhecer bem de perto uma senhora de grande sensibilidade, de sua graça Maria Helena, que me ensinou a desmistificar o drama que me parecia ser, a essa altura, o facto de ser-se invisual. O meu fascínio pela cor, pela luminosidade, pelo movimento, enfim, só me parecia apreciável através da visão, não poderia conceber a percepção completa da vida de outro modo.

Essa senhora fazia o acompanhamento de uma aluna da minha escola, nascida já sem o poder da visão, mas com um aproveitamento escolar dos melhores, acompanhando as lições com a sua máquina de escrever em Braille. Não frequentava as minhas aulas, pois tinha escolhido uma Língua Estrangeira que não era a que eu ministrava, mas pertencia à minha turma, que era dividida pela metade nessa hora, já o Francês em declínio. Eu ainda subia as escadas e já ela me identificava avisando os colegas da minha chegada; se eu evitasse tocar o chão com os saltos, era a voz, era o perfume; com a convivência, chegou a intimidade e tocava-me de mansinho nas mãos, no braço: «Traz uma pulseira bonita… Posso ver o seu colar?... É de pedra?... De que cor é? Tão bonito!»

Arrepiava-me. Como poderia saber o que era lindo?

Harmonioso, agradável ao tacto, essa a sua noção de beleza, aprendi. Aprendi também que o facto de não ver, não nos deixa tão distantes do mundo como não ouvir. Aqui, está-se muito mais longe de tudo o que constitui o espaço em que vivemos, a natureza, a percepção de todo o que nos rodeia. Não escutar a voz, o canto, a música, o marulhar das ondas, a chuva, a água a cair, o ciciar da brisa, o vento, o turbilhão de ruídos que povoam o mundo actual, iguala o silêncio à escuridão sem sombras.

Quem não vê, quem nunca viu, idealiza; com toda a miríade de sons, de odores, de sabores, de sentires, a que tem acesso. Quem alguma vez viu, continua a idealizar; com as cores ainda gravadas no disco, aprofunda e enriquece os outros sentidos - tão vulgarmente subestimados - tirando deles uma qualidade verdadeiramente superior.

Na nossa caminhada para um mundo melhor, sem discriminações, com mais qualidade para todos, urge que se tome consciência do nosso egoísmo, que se entre no mundo dos que são diferentes para que lhes seja facilitada a integração, pois eles são cidadãos de direito pleno e não podem sentir-se injustiçados numa sociedade que se diz igualitária. Que a globalização aconteça onde deve.

Quantas vezes um afago, um aperto a duas mãos, um abraço, calam mais fundo do que todas as palavras...

domingo, março 18, 2007

Março de 2007


«Deixem-me só com o dia.

Peço licença para nascer»


Pablo Neruda










Fotos de Cibele


sábado, março 17, 2007

Novo ciclo

«……… Amo-as, amo-

-as, amo-as, amo-as, Não são

aquilo que ostenta uma frescura

falsa, a maravilha fictí-

cia. O Tempo a elas deve

a solenidade esbelta

com que nos aparece

às vezes como poalha

esgueirando-se entre troncos.

O tempo a elas deve o nosso

afecto pelo tempo. Servi-

doras e devotas, coisas

mesquinhas, cheias de linhas

nítidas, contornadas por uma

claridade enérgica diária.»

Fiama Hasse Pais Brandão





Ontem ouvi falar a Primavera.

Nas magnólias, nas camélias, nas orquídeas, nas ginjeiras agora em flor.

Na pintura, na música, na dança, na poesia.

Escutei ainda a alma da dita civilização, cada vez mais e mais longe da Natureza, numa relação hostil perante a nossa própria condição, perante quem rege a nossa sobrevivência, de quem dependemos em tudo e não somos capazes de respeitar.

Vi o Oriente longínquo, cada vez mais perto de nós, atraídos qual borboletas pela luz, e nós cada vez mais afastados da sua sabedoria milenar.

Vi a inteligência e a astúcia humanas usando a natureza para seu provento, os pescadores usando pelicanos, os homens das estepes e das montanhas usando águias e libertando-as no momento exacto para a sua procriação. Para não ferir, para não macular a sua integridade.

Isto é uma questão de respeito para com os outros, que afinal somos nós próprios, esse respeito que fomos perdendo e nos perde, essa distância que devemos aos outros e nos damos para criar o nosso lugar, o espaço a que temos direito.

Voltando às estações do ano, ao tempo que nos rege, esse tempo que nós inventámos, ao calendário que construímos, também me parece mais acertado o início do ano oriental que se situa algures em Fevereiro, quando o Inverno desacelera o seu rigor, quando o espaço da noite cede largos minutos ao dia, quando os bolbos da terra se espreguiçam, quando os jacintos florescem em tons de Inverno, em branco e lilás.

E é então que acontece tudo: a natureza acorda, desencadeia o novo ciclo a cumprir.

E a natureza somos nós.

terça-feira, março 13, 2007

quinta-feira, março 08, 2007

Ler

«… e vai sendo em cada minuto mais difícil não me agarrar a ti, deixar a minha lucidez, o meu bom senso de resignada já senil – porque em muito novos não tememos estragar, nem sofrer – cansada dos pormenores prosaicos e desagradáveis duma «aventura amorosa». Revolto-me por nada ser possível – como odeio «a minha lucidez», como queria ser a rapariguinha que se abraça ao seu primeiro namorado, apatetada e comovente – a rapariguinha que desenha, no entanto, as linhas frias e perturbadas da realidade aparente aos outros, todos a condenarão rapidamente, até que ela se cristalize na ordem desejada. Aqui me têm; o odioso coro do bom senso anuncia verdades eternas – como poderemos viver sem nos contentarmos com o possível? Cristalizo-me nos estatutos aprovados; recordo; imagino.»

Maria Isabel Barreno



Marie Hélène dessinant Arpad Szènes

A leitura é um acto individual em que cada um de nós mergulha com maior ou menor sofreguidão, levados que somos por motivos vários, nem sempre os mesmos, nas diversas ocasiões.

Um livro atrai. Olhá-lo, tocar-lhe com a ponta dos dedos para sentir a textura macia da capa, depois pegar-lhe, voltá-lo nas mãos, passar as folhas com os dedos, eventualmente ler umas linhas ao acaso, uma página talvez, um poema, ver o índice.

Levo, não levo? O prefácio. Quem?...

Melhor ainda é aquele livro que temos em casa, de que conhecemos de cor parágrafos inteiros, puídas as folhas de tanto manuseadas, alguns com notas ao canto – sempre a lápis, que os livros devem tratar-se como a nossa namorada, assim me ensinaram eles, os homens que eram os nossos mestres – a intriga que acolhe a nossa evasão, o poema que clama o nosso protesto, a voz já antes escutada que nos garante não sermos únicos, alguém já pensou isso antes, outrem sofreu o nosso calvário de amor e nostalgias; tão só um gibi do Chico Bento com a profundidade de todos os pensamentos expostos em parágrafos extensos, de todas os artigos bem estruturados em diplomas, de leis que nunca se cumprem.

Leio e releio Mestre Aquilino. Desculpem, sei que é difícil a leitura para quem não teve, como eu, um pai que só conhecia as histórias da raposa repetidas e reinventadas para nós a cada passo, a cada pedido. Encanto-me sempre com o observador da natureza humana, dos contrastes da sociedade, o narrador irreverente do viver das gentes mais rudes com quem conviveu e de quem fez um retrato preciso, opondo a rudeza do gesto à pureza de sentimentos.

E porque hoje é o Dia da Mulher - daí a Mª Isabel Barreno que, com a Mª Velho da Costa e Mª Teresa Horta deram voz à mulher portuguesa antes de Abril - deixo alguns excertos do olhar (o mais brando) dos homens das Terras do Demo sobre quem os deu à luz:

Rosalina, de olhos pestanudos e tão mexidos, que, a cada mirada, pareciam negacear a castidade de um santo!

Luísa, a morgada, vassoiruda, de largos encontros e corada como camoesa…

Rosa faceira e morena, era ver como os cabelos lhe borrifavam das tranças em anéis sobre a testa, cobrindo-lhe as fontes de uma sombra fagueira…

Florinda, toda sécia e perluxosa, inda que com mais presunção que virtude. Nanja que ela não tivesse uma legítima arredondadinha e não fosse mulher curiosa, asseada, toda videira, sabendo coser à máquina...

Mulherão aquela Zefa, nutrida, limpa e perluxosa que nem moça de padre-cura...

...uma moça limpa, videira, que saiba dar dois pontos numa camisa e fazer chá a um doente.

O peito dela palpitava; arfava forte; cantavam lá dentro todos os alegres pássaros do mundo.

À mulher que hoje sou, ergo loas, porque tenho o direito de ser, de estar, de dizer. Dizer que não é preciso haver um dia, pois todos os dias são da mulher, por mais que gritem que não. Para o mal e para o bem. Para a excisão, para a submissão, para a violação, para a mentira, para o desprezo, para a descriminação, para a fome, para a miséria, para o aborto.

E para a maternidade, para o amor, para a solidariedade.


quinta-feira, março 01, 2007

Temporal

«Subitamente, naquele vasto horizonte, até então puro na sua luz horrenda, dois castelos de nuvens cerradas e negras começaram a alevantar-se, um da banda da Europa, outro do lado de África.

Os bulcões conglubados corriam um para o outro e multiplicavam-se, vomitando novos castelos de nuvens, que se difundiam, flutuando enoveladas com formas incertas.

E aquelas montanhas vaporosas e negras rasgaram-se de alto a baixo em fendas semelhantes e algares profundos, e os seus fragmentos informes e cambiantes vacilavam trémulos em ascensão diagonal para as alturas do céu.

Ao aproximarem-se, ao dois exércitos de nuvens prolongaram-se em frente um do outro e toparam em cheio. Era uma verdadeira batalha.

Como duas vagas encontradas, no meio de grande procela, que, tombando uma sobre a outra, se quebram em cachões que espadanam lençóis de escuma para ambos os lados, antes que a menos violenta se incorpore na mais possante, assim aquelas nuvens tenebrosas se despedaçavam, derramando-se pela imensidão da abóbada afogueada.»

Alexandre Herculano


Não vi a tempestade chegar.

Era um fim de tarde e achei natural a cor esvair-se; não ergui o rosto, não olhei o horizonte, não vi as nuvens negras subindo de manso, avolumando-se e cobrindo o céu ainda azul.

Quando senti chover achei que não era, e fui à varanda saber do ruído. Ao abrir a porta, descendo o degrau, o mundo acendeu no mesmo instante, um trovão tirou-me o chão dos pés e eu estatelei-me desamparada no chão de ladrilho vermelho. Fiquei quieta, à escuta do silêncio para além das pingas grossas de chuva que continuavam a cair dos telhados, das árvores, que batiam nas pedras da entrada e espargiam em redor. Tenho a certeza de não ter perdido os sentidos, só não pensei em mover-me. Só quando senti junto de mim a Siriquita, a cadelinha pinsher, minha companheira de todas as horas, ganindo baixinho e tentando lamber-me a cara, quando o Velhote correu e quis pegar-me ao colo, reagi de alguma forma.

Nada me aconteceu para além do susto e do medo que ficou das trovoadas e relâmpagos.

Continuo a gostar da chuva, de vê-la cair com força, tocada pelo vento, mudando de direcção e riscando toda a paisagem, ou mansa e quieta deixando ouvir apenas os beirais carpindo. Às vezes consigo escapulir para o meu outro tempo e senti-la cair sobre o meu corpo, os meus cabelos, vê-la através dos óculos, abrir os braços e aspirar o odor da terra molhada.

Saudosismo apenas? Não creio.

Aqui a chuva esfria as mãos, não refresca o corpo.

O mar não afaga o corpo, gela os ossos.

O fogo não limpa, incendeia.

A vida não é. Passa.