sábado, março 24, 2007

Diferenças


Passa um rei – é o Poeta.

Não pela força de mandar,

mas pela graça mágica e secreta

de imaginar.


O ceptro, a pena – a lançadeira cega

do seu tear de versos.

O manto, a pele – arminho onde se pega

A lama dos caminhos mais diversos.


Um grande soberano

No seu triste destino

De ser um monstro humano

Por direito divino.

Miguel Torga




Na minha caminhada pelas artes do ensino – pois que o magistério é uma arte das mais sofisticadas e complexas – tive oportunidade de conhecer bem de perto uma senhora de grande sensibilidade, de sua graça Maria Helena, que me ensinou a desmistificar o drama que me parecia ser, a essa altura, o facto de ser-se invisual. O meu fascínio pela cor, pela luminosidade, pelo movimento, enfim, só me parecia apreciável através da visão, não poderia conceber a percepção completa da vida de outro modo.

Essa senhora fazia o acompanhamento de uma aluna da minha escola, nascida já sem o poder da visão, mas com um aproveitamento escolar dos melhores, acompanhando as lições com a sua máquina de escrever em Braille. Não frequentava as minhas aulas, pois tinha escolhido uma Língua Estrangeira que não era a que eu ministrava, mas pertencia à minha turma, que era dividida pela metade nessa hora, já o Francês em declínio. Eu ainda subia as escadas e já ela me identificava avisando os colegas da minha chegada; se eu evitasse tocar o chão com os saltos, era a voz, era o perfume; com a convivência, chegou a intimidade e tocava-me de mansinho nas mãos, no braço: «Traz uma pulseira bonita… Posso ver o seu colar?... É de pedra?... De que cor é? Tão bonito!»

Arrepiava-me. Como poderia saber o que era lindo?

Harmonioso, agradável ao tacto, essa a sua noção de beleza, aprendi. Aprendi também que o facto de não ver, não nos deixa tão distantes do mundo como não ouvir. Aqui, está-se muito mais longe de tudo o que constitui o espaço em que vivemos, a natureza, a percepção de todo o que nos rodeia. Não escutar a voz, o canto, a música, o marulhar das ondas, a chuva, a água a cair, o ciciar da brisa, o vento, o turbilhão de ruídos que povoam o mundo actual, iguala o silêncio à escuridão sem sombras.

Quem não vê, quem nunca viu, idealiza; com toda a miríade de sons, de odores, de sabores, de sentires, a que tem acesso. Quem alguma vez viu, continua a idealizar; com as cores ainda gravadas no disco, aprofunda e enriquece os outros sentidos - tão vulgarmente subestimados - tirando deles uma qualidade verdadeiramente superior.

Na nossa caminhada para um mundo melhor, sem discriminações, com mais qualidade para todos, urge que se tome consciência do nosso egoísmo, que se entre no mundo dos que são diferentes para que lhes seja facilitada a integração, pois eles são cidadãos de direito pleno e não podem sentir-se injustiçados numa sociedade que se diz igualitária. Que a globalização aconteça onde deve.

Quantas vezes um afago, um aperto a duas mãos, um abraço, calam mais fundo do que todas as palavras...

3 comentários:

vidavivida disse...

Que tudo quanto mencionas nas tuas belas palavras se concretize "ONTEM".
Bj.

jorge esteves disse...

Uma vez, alguém face a uma incomensurável beleza paisagística, pedia à companhia de ocasião: 'ajuda-me a olhar!'...
Abraços!

M. disse...

Gostei muito tas tuas palavras.