domingo, agosto 14, 2011

Devaneio

Não queiras, não perguntes, não esperes.
Isto que passa como vida e tu
medes em dias, horas e minutos,
ou como tempo passa e vais medindo
em rugas e lembranças e em sombrias
e plácidas visões de coisa alguma,
às vezes sorridentes, mas sombrias;
sim: isto, a que dás nomes, que separas
do resto em que surgiu, de que surgiu;
isto que já não queres, não interrogas,
de que já nada esperas, mas que queres,
por que perguntas sempre, e por que esperas;
isto que não és tu nem vai contigo,
nem fica quando vais; em que não pensas,
porque ao medir apenas medes e
nada mais fazes que medir – só isto,
apenas isto, isto unicamente: não queiras,
não perguntes, não esperes,
que o pouco ou muito é tudo o que te resta.
Jorge de Sena (14/7/58)


Esta manhã quente e nublada descansa placidamente embalada pela brisa.

Nem sei se merece a pena perguntar-lhe por que veio, para quê, porque acontece em cada dia esta luz nem sempre coada, por vezes já vibrante a esta hora matinal. É porque a vida acontece e é de todos a mesma. Basta folhear um livro e lá está tudo o que já dissemos por outras palavras, outros escreveram que não em versos melódicos, o que nós pensamos aqui e agora.

É este o milagre da escrita, a adoçar os dias que medimos e ainda falta cumprir, a recordar as falas dos que partiram mas não morreram para nós, que nos hão-de pegar pela mão sempre que fechamos os olhos e nos entregamos ao que não é mister discutir porque é intrinsecamente único. A escrita do outro onde nos vemos ao espelho e as imagens retornam muitas vezes em retratos de magia de espelhos côncavos ou convexos, quem disse que o real é um espelho raso?

Mas do tempo que medimos realmente, só podemos medir o que passou, e dele transportarmos para diante o lastro que carregamos, que faz equilibrar o barco, tantas vezes batido por ondulações fortes, de uma beleza invulgar, ou tempestades que exigem uma força insana. Até um dia. E por que não esperar um dia de mar azul, quieto, calmo como um lago, o risco branco atrás de espuma branca, a abrir como uma renda? Adiante o mar acaba, num repente, mas então já nos embrulhámos na onda branca e já não sentimos. E o fundo do mar é só de outra cor.