terça-feira, dezembro 23, 2014

Saber Olhar, Saber Dizer

"Urros, em plena montanha, é uma terra de ovelhas. Ao romper de alva, ainda o dia vem longe, cada corte parece um saco sem fundo donde vão saindo movediços novelos de lã. Quem olha as suas ruelas a essa hora, vê apenas um tapete fofo, ondulante, pardo do lusco-fusco, a cobrir os lajedos. Depois o sol levanta-se e ilumina os montes. E todos eles mostram amorosamente nas encostas os brancos e mansos rebanhos que tosam o panasco macio. A riqueza da aldeia são as crias, o leite e aquelas nuvens merinas que se lavam, enxugam e cardam pelo dia fora, e nas fiadas se acabam de ordenhar. Numa loja de gado, ao quente bafo animal, juntava-se o povo."

Miguel Torga, "Novos Contos da Montanha"


Nos tempos que correm, escrever livros só por escrever não merece a pena.

Tantos livros publicados, tantas (in)verdades repetidas, tantos lugares-comuns sem interesse, tantos poemas que nada são, tantas palavras usadas indevidamente, tanta falácia, tanta desfrase, oportunismo que nada acrescenta ao bem da sociedade, tanta árvore sacrificada a bem do ego de cada um. 

Creio ter sido Gabriel Garcia Marquez quem escreveu com toda a propriedade: quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais a lutar por dinheiro e poder, então a nossa sociedade poderá enfim evoluir para um outro nível.

Isto é pura utopia, cada vez mais há menos lugar para o conhecimento, o poder aperta pelo dinheiro, cada vez mais dinheiro que nunca é suficiente para as necessidades cada vez mais elevadas na ânsia de possuir cada vez mais muito, cada vez mais no caminho de uma riqueza que é um pormenor, apenas isso, na aristocracia do conhecimento.

É que, cada vez mais, tudo concorre para que só muito poucos possam alcançar aquilo por que os ideais tanto lutaram, uma utópica igualdade ao nível do conhecimento. A internet tem esse poder mas é preciso saber usá-la e, para usufruir de todo o seu potencial, há que aprender o clássico - falar ler e escrever - o que cada vez mais se menospreza. Nenhum músico chega à liberdade do jazz sem adquirir a solidez das bases, nenhum bailarino dança coreografias de Pina Bausch sem ter aprendido dança clássica.

Voltando à escrita, a verdadeira boa escrita não tem nacionalidade. Como a formosura, como o ser humano bem no seu íntimo. Sinto-me beirã mergulhada na beleza das metáforas de Torga, a lã como nuvens em marcha,  como neve a amaciar a rudeza da paisagem, do chão pedregoso e inculto dos invernos frios do Nordeste transmontano.

É o manto branco a cobrir as serras, a encher os vales, os campos vastos, os lagos, os rios, é um mundo diferente daquele onde cresci, por isso o espanto, por isso o fascínio.

Não deixo porém de estremecer de emoção, uma sensação sem disfarce, sem limites, quando as dunas tocam horizontes, quando os tons de areia sugerem calor, secura, odor de queimada, quando o verde intenso dos cafezais transforma o calor e a humidade em rendas de noivado e logo a seguir se pinta de vermelho-sangue.

E também há neve a cobrir os campos, ali chama-se algodão.

terça-feira, dezembro 16, 2014

NOVOS TEMPOS

      Silêncio. Mais silêncio. A resposta, dura, foi um soco: 
      - Também morreu. Era minha mãe!
      Aquele bruto, o seu filho... O golpe aniquilou a derradeira coragem do brasileiro. Um agónico espasmo de terror paralisou-lhe o corpo todo, embora sentisse o arcaboiço abalado pelas pancadas do coração. De súbito, porém, como se lhe tivessem dado corda, um redemoinho dos sentidos arrastou-o para o ar livre. Saindo quase a correr, tropeçou na pedra alta da soleira. E, já se afastara uns trinta passos da porta da casa paterna, quando se lembrou, por fim, de que era um homem importante e abastado. Deteve-se, a ofegar. E, tirando atabalhoadamente a gorda carteira do bolso, escolheu nela, a toda a pressa, do dinheiro que a enchia, dez contos de réis. Voltando depois atrás, no seu passo miudinho, a cambalear sobre o xisto, entrou de novo na toca onde viera ao mundo. E, sorrateiramente, foi poisar o dinheiro sobre a arca. Sem que o filho e a mãe, sempre em frente do lume, se voltassem para ele. O rapazio, porém, não perdendo de vista nem um só dos gestos do brasileiro, e encantado com o aspecto burlesco daquele corpanzil mal jeitoso aos tropeções rua fora, soltou em uníssono uma gargalhada muito fresca que foi despedaçar o silêncio majestoso do crepúsculo.

Mário Braga, "Serranos"



Pela mão de Mário Braga - certamente o único neo-realista vivo da geração da Vértice, a revista de que foi editor por cerca de vinte anos - percorri de novo as serranias do interior norte do país, esses lugares fascinantes (de pura ficção, no meu entender dessa época) para mim, desde que encontrei "O Malhadinhas" de Mestre Aquilino e as suas "Terras do Demo". 

Mário Braga tem contos admiráveis em "Serranos", onde relata a rusticidade dos homens e mulheres talhados à medida das terras em que nasceram, numa simplicidade de escrita porém incisiva, que não lhe retira suavidade e delicadeza na descrição dos lugares e das gentes. Observador atento e sensível da realidade urbana em "Nevoeiro e Caminhos sem Sol", assalta-me com essa leitura uma sensação constrangedora da sua actualidade.

Portugal do século XXI aparece em contornos de há um século atrás, a pobreza a espreitar, a incultura das gentes a encontrar os caminhos antigos de subserviência, as mulheres acossadas pelos empregadores, impedidas de procriar para não perderem os lugares de magros salários, outras pelas estradas entregues à prostituição; é a violência em todas as frentes, na intimidade dos lares, nas instituições, violações e assassínios inconcebíveis num país que se diz - que se quer - democrático, os direitos espezinhados pelos que dominam com o poder do dinheiro.

Os mais cultos, os mais capazes, os mais jovens, abandonam os mais velhos, e aos mais velhos, o país que sonharam conquistar - onde parece medrar a ignorância e a fome, o desespero - impotentes para garantirem um futuro promissor, mendigando o sucesso longe das suas raízes.

O mundo não vai acabar, apenas vai ser diferente. A televisão, a internet, os drones, este crescimento das tecnologias, acontece em progressão geométrica e, consequentemente, a uma velocidade que muito poucos conseguem acompanhar de forma a aceitar as novas normas de valores, lesivas do sentimento mais profundo de tolerância e compaixão. As religiões de Abraão não cumpriram as normas, aproveitaram-se delas, desde há muito adulterando os seus princípios fundamentais. 

O mundo vai continuar, mau grado os Jeronimus Bosch do terceiro milénio cristão.


terça-feira, novembro 18, 2014

E DEPOIS DO ADEUS



Passou por casa, mudou de roupa, pediu dinheiro emprestado, e antes do sol nascer atravessou a fronteira.
Voltava agora, decorrido meio século, velho, pobre, amargurado, com toda uma existência de exilado atrás de si e dorido ainda dos golpes injustos que recebera. A que vinha? Rever a terra da criação, rezar duas ave-marias na sepultura dos pais e calar uma ânsia obscura de resgate que os anos tornavam casa vez mais premente.
Passageiro anónimo da camioneta da carreira, apenas ela o alijou no largo, ficou-se pasmado a olhar o fontanário, o cruzeiro, o rego de água que atravessava a povoação e o casario que a tarde mortiça tornava sonolento. E apeteceu-lhe chorar.

Miguel Torga, "Novos Contos da Montanha"


"E depois do adeus" é um mote que traz aos portugueses a vibração de Abril, o cheiro dos cravos vermelhos, logo a seguir a cor negra do fato, o fado de xaile pelos ombros, o lamento da alma, o coração desfeito pela traição.
Por mais que o vento sopre, por mais que o inverno queime como o sol na praia, por mais que o outono se apague em vagas de calor, a idiossincrasia de um povo é mais forte e impõe-se mau grado a formação académica, mau grado a religião professada ou a ausência dela, mau grado a idade ou o estrato social.
Mau grado ainda a falência do estado novo, há coisas que se deve calar, há coisas que se sabe e não se diz, há assuntos que seguem varridos para debaixo dos tapetes, sejam eles de estopa ou de esmirna. São os velhos do restelo assombrando, ensombrando as velas dos que partem, dos que partiram há um século a procurar um mundo maior, o Portugal grande que fomos e somos ainda na diáspora. O Portugal que não é esquecido quando o exílio dói, o Portugal que apagou aqueles que partiram e não quiseram de volta.
Depois do adeus, depois de nós, é preciso renascer e criar de novo, é preciso acalmar os excessos da revolução, é preciso refazer com justiça a rede que suporta o país. Porque uma revolução acontece quando há injustiça. Retomar as rédeas tem de ser com justiça para quem puxa a carruagem mas também para quem conduz. É no equilíbrio das duas forças que está a esperança de tempos melhores. 
E não é com lamentos, acusações, paternalismo ou saudosismo que se constrói um país novo, é com acção e comedimento, com informação e formação e exigência. Quanto mais informados, mais capazes de exigências no cumprimento da cidadania. E informação, pressupõe formação a todos os níveis, é bom não esquecer.
Já se fala em eleições, já se fala em mudança.
Eu faço desde já o meu voto: que os novos dirigentes, venham eles do quadrante político que vierem, consigam circular pelo país sem medo, sem fugas, sem apupos; que saibam e possam sempre enfrentar os opositores com a dignidade que deve merecer qualquer dos altos dignitários que representam o nosso país, em nome dos Portugueses.

quinta-feira, outubro 30, 2014


Razão, irmã do Amor e da Justiça,
Mais uma vez escuta a minha prece.
É a voz de um coração que te apetece,
Duma alma livre só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça 
De astros, sóis e mundos permanece;
E é por ti que a virtude prevalece,
E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações
Buscam a liberdade entre clarões;
E os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti podem sofrer e não se abatem,
Mãe de filhos robustos que combatem
Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

Antero de Quental 


Os Santos, O Pão por Deus, as broas, o Halloween importado, nada disto consta da minha memória de criança. Só o Dia dos Finados, o Dia dos Fiéis Defuntos, me inspirava o respeito que os mais velhos lhe atribuíam, a missa da manhã em que as senhoras trajavam de negro, os homens de fato escuro, a romagem ao cemitério.

Do que me lembro da terra longe em que cresci, era feriado o Dia de Todos os Santos e, na manhã do dia seguinte, Dia dos Finados, havia tolerância de ponto para cumprir a veneração aos Féis Defuntos, a que o dia era dedicado. E porque os meus antepassados repousavam a milhares de quilómetros dali, por estas aldeias beirãs, eu entrei muito tarde num cemitério, local de culto qual igreja, porque sempre que passávamos de carro, em frente dele, minha mãe se benzia com recolhimento.

É um lugar equívoco para mim ainda hoje. Não tenho a certeza de sentir o peso  dos sepultados, talvez porque os espaços que frequento esporadicamente estejam coloridos e bem cuidados, talvez porque prefira observar todo o conjunto como marca de cultura dos povos. Eu recuso-me a aceitar que alguma vez possa eu própria ali repousar, entre flores que seja, fechada em mausoléus ou coberta de mármores, recuso qualquer lápide com o meu nome inscrito. Prefiro viver na memória dos que em vida me encheram de flores, dos que se lembram do meu vulto nas suas vidas, dos que cruzaram o meu caminho e seguiram mesmo sem olhar.

Os meus defuntos estão vivos em mim, cultivo cá dentro o jardim de rosas perfumadas e espinhosas, de cactos agrestes que também florescem, de relva plana, de terra batida, de pedras e de estrume. Sou um jardineiro atento, um arquitecto paisagista, a minha visão é limitada ao meu corpo, ao meu sentir, a verdade dos outros nem sempre é a minha verdade.
E quando é, quando isso acontece, a entrega não tem limites no tempo que me resta.

E porque um dia "hei-de ser pó e cinza e nada", quero que a natureza me receba já pronta, em cinza, em pó, dentro do nada a intemporalidade dos afectos, dentro do nada os sonhos imaterializados.



sexta-feira, outubro 10, 2014

Ave do Paraíso


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder... pra me encontrar...

                                                                                    Florbela Espanca



Chegou o Outono em passos ardentes de Verão, e logo a serenidade chegou, a amenidade dos dias, os fins de tarde a pedirem um agasalho leve, a chuva embrulhada nos flocos de algodão que povoam o azul bem no alto.
Este ano chegou com as estrelícias, uma planta exótica, trazida da ilha do paraíso das flores – erguida no meio do Atlântico para regalo de quem a habita. As suas flores são deslumbrantes no seu desabrochar: lembram um pássaro em voo plano e soberbo, abrem outras asas depois, outras ainda e outras mais sem que perca o garbo e o colorido invulgar.
Alguns anos, vários anos de espera a olhar as folhas grossas e esguias perfilando-se primaveras adiante, até que finalmente este Outono fez chegar a oferenda ansiada. Conheci-as quando há larguíssimas décadas – era uma menina então à descoberta do mundo novo – as encontrei no alto da ilha, como pássaros descolando dos tufos de folhas, imagem que partilho ainda hoje.
Como o amor floresce, uma e outra vez, como a vida desabrocha devagar, a mesma flor abrindo, erguendo asas, murchando umas, outras com o mesmo fulgor se abrem uma e outra vez até que já sem forças se deixam envelhecer, perder a cor, perder o viço, até se apagarem para que outra flor ao lado recomece o caminho antes palmilhado.
Desta vez em outro caule esguio, do outro lado da planta, outra perspectiva, outros olhares, a mesma beleza, sempre, renovada.

quarta-feira, setembro 10, 2014

Setembro outra vez

Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho do Criador, o amor é, pelo contrário, aquilo que só nos pertence a nós e através do qual escapamos ao Criador. O amor é a nossa liberdade.
                                            Milan Kundera, "A Insustentável Leveza do Ser"


Não sou decididamente o que os olhos dos outros me vêem nem me sinto parte integrante do espaço que me rodeia no seu todo. Com frequência o mundo que partilho é bem outro, não muito distante da infância longínqua em que o melhor amigo era imaginário.

Olho no céu aquele enovelado brilhante de branco a afrontar o azul, a desfazer-lhe a cor, o pincel dos ventos altos soprando e as figuras a sucederem-se num crescendo de fantasias. É Setembro a anunciar as primeiras chuvas, o fim do cacimbo frio e seco, o tempo dos tortulhos que chegavam com os pastores e o gado no final do dia. E os loengos, os loengos saídos daquela sacola do Camboiola – bordada por suas mãos – e às vezes ainda um maboque de odor inigualável.

Bem mais tarde, o Setembro final de férias, minhas férias reais, no tempo em que a abertura das aulas era em Outubro, as minhas férias após as multidões o calor, as cadeiras os chapéus, as toalhas os banhos, os lanches a fruta, o cansaço da praia. Era o regresso lento à escola ainda sem o barulho dos alunos, a minha mãe comigo, as crianças em casa, os doces, as costuras, as rendas no repouso da praia ao fim do dia.

Setembro é agora mais triste, a minha mãe já não está para fazer anos, as crianças já não são, todos os que amei seguiram caminhos, rotas que já não passam por este espaço em meu redor. Mas eu ainda vivo com eles, os dias de maior solidão fazem-nos chegar e eu convivo bem com essa saudade que ajuda a viver, a esquecer a loucura imparável do mundo que vou deixar ficar.


Outros setembros continuarão a rodar no tempo, as noites serenas do outono a chegar, noites mansas depois do pôr-do-sol inebriante a colorir os poentes, os últimos raios a despedirem-se cobrindo o mar de prata. 

domingo, agosto 24, 2014

A CATEDRAL



La Hollande est un songe, monsieur, un songe d'or et de fumée, plus fumeux le jour, plus dorée la nuit, et nuit et jour ce songe est peuplée de Lohen-grin comme ceux-ci, filant rêveusement sur leurs noires bicyclettes à haut guidons, cygnes funèbres qui tournent sans trêve, dans tout le pays, autour des mers, le long des canaux. Ils rêvent, la tête dans leurs nuées cuivrées, ils roulent en rond, ils prient, sonambules, dans l'encens doré de la brume, ils ne sont plus là. Ils sont partis à des milliers de kilomètres, vers Java, l'île lointaine. Ils prient leurs dieux grimaçants de l'Indonésie dont ils ont garni toutes leurs vitrines et qui errent en ce moment au-dessus de nous, avant de s'accrocher, comme des singes somptueux, aux enseignes et aux toits en escaliers, pour rappeler à ces colons nostalgiques que la Hollande n'est pas seulement l'Europe des marchands, mais la mer qui mène à Cipango et à ces îles où les hommes meurent fous et heureux.

Albert Camus, in «La Chute»



Não consegui olhar.

Ali ao meu lado, a menos de dois palmos, aqueles corpos desnudos, vagamente cobertos de tecido mínimo, mulheres esbeltas, esculturais, outras nem tanto, encostadas à porta de vidro aberta, na mão um telemóvel ou um cigarro, outras apenas um olhar, quem sabe um convite atrás do vidro fechado. Quem sabe ainda um olhar de tristeza, de receio, um pedido de ajuda entalado na garganta. Não consegui enfrentar uma única face, os pensamentos cavalgando pela novela inacabada quando parti, na certeza de que a máfia de Leste exerce o seu poderio num lugar da Europa do Norte donde se veicula a ideia de respeito pelos direitos humanos. 
 
Ao fundo ergue-se o perfil da catedral que Camus me anunciava, velando quieta, atenta, aquelas peças humanas expostas nas vitrines, seres humanos ao lado duma sociedade que as coloca do lado de fora dela, que as desfruta, desconhecidas, proscritas. Ou talvez não. Nem todas. Afinal a prostituição pode ser uma forma de sobrevivência, uma opção de vida como qualquer outra. 
 
Amsterdão e os seus canais não perdem a beleza, a sua arquitectura prende-nos o olhar, a cultura aparece na concentração e multiplicidade dos museus e galerias. Mas a cidade cansa pelo excesso de gente anónima, a multidão que passa e olha, olha e não vê, cansa pelo excesso de oferta de serviços inimagináveis que proliferam em todas as zonas e ferem a estrutura da cidade no seu conjunto.

Numa Holanda que visitei pela primeira vez, país de grandes espaços verdes e planos, horizontes bordados de árvores, Roterdão foi a minha cidade. Cidade grande, mansa como o seu Maas, casas magníficas, cais e canais e barcos e verdes, muito verde e pássaros que convivem sem medo dos humanos. E também Delft, a cidade de Vermeer e das faianças vindas do séc. XVII naquele azul inimitável dos nossos azulejos bem portugueses.

Dez dias é pouco para ver muito, e eu gosto de pousar.  Gostei de ver a conquista da terra, primeiro como que um enorme porto de abrigo com um farol em cada ponta, depois um imenso atol. As pedras a atapetarem o fundo, os troncos entrelaçados e a terra retirada do mar a cobrir tudo, os diques, mais diques, a areia plantada de ervas para a segurar e finalmente mais praia, mais um porto, mais terreno agrícola, mais uma refinaria que se acrescenta. 

E também ali conheci casa e história de um verdadeiro pirata holandês que combateu os espanhóis e deles foi feito prisioneiro, um pirata que tentou a sorte no Brasil e Angola, felizmente sem êxito para nós, um pirata de quem se mantém a casa referenciada numa rua de Roterdão com o seu nome – Piet Heinstraat – e onde uma placa destaca as suas pilhagens, entre as quais ouro, prata, pérolas, peles, açúcar, perfumes e... um papagaio.

Hei-de voltar.

sexta-feira, julho 18, 2014

SOBREVIVÊNCIA



 
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Alberto Caeiro


 

Ontem foi preciso fazer chantilly para cobrir o bolo de noz, e sumo de limão é imprescindível na clara de ovo para o sucesso desejado.

Abri o limão e logo reparei numa lagarta verde, pequeníssima, bem no centro. Olhei a outra metade e, também ali, qualquer coisa verdejava na coloração suave dos gomos. Tirei os óculos (sim, tirei os óculos) para ver melhor e, aquilo que me pareceu uma lagarta impertinente, não passava de uma semente germinada!

Saltei anos no tempo. Vi uma papaia de coloração intensa, alaranjada, aberta ali na varanda, acabada de chegar da horta, e as sementes já irrequietas, apressadas, ainda no útero querendo crescer, já cheias de verde, de vida. E meu pai, meu pai chamando a atenção dos meninos para a prodigalidade da terra, naquela hora e sempre deslumbrado com uma natureza pujante, naturalmente produtiva, numa dádiva perene.

A Terra aqueceu, dizem os cientistas e nós vamos sentindo. E o limão retirado da árvore, parece tê-los escutado e vá de comportar-se já como nascido nos trópicos. É só um limão, mas reage como ser vivo aos factores que condicionam a sua existência. Como os animais reagem para a procriação consoante o tempo a abundância de alimento.

Como os homens inteligentes deixam de procriar quando têm baixas remunerações, quando não têm condições de trabalho que lhes permita assegurar a sobrevivência das suas crias.


sexta-feira, julho 04, 2014

O meu Rapaz





Quando
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes no mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se ainda não estivesse morta.


Sophia de Mello Breyner Andresen







Dizer vinte anos é muito tempo. Dizer quarenta anos é uma vida, foi a vida de meu irmão. Mais vinte e são vidas, muitas vidas que se cruzam, que se apagam, que se transformam. É nascer outra vez, algumas vezes.


Quarenta anos dizia meu pai quando eu era menina e parecia-me assim uma coisa do outro mundo: há quarenta anos...


E hoje, quarenta e seis anos depois, foi a vez de esquecer uma das horas mais felizes que marcaram a minha vida. As horas já são pequenas para mim, deve ser, elas saltam, apagam a memória cansada, escondidas no novelo apertado da mesma cor, do mesmo fio, mas na outra ponta.


Há quarenta e seis anos foi um tempo difícil, foi um tempo de desassossego, foi um tempo de incertezas, de certezas inesperadas e duras, foi um tempo de decisões, de afirmação, de muita esperança também. O deslumbramento da concretização de um sonho a completar, completado.


Aquele ser pequenino veio encher o meu mundo, dar-me força para enfrentar os empreendimentos a que me propus, nunca houve cansaço, dor que me derrubasse.
E se foi difícil! Mas foi vida na sua plenitude.



Veio a desesperança, anos mais tarde. Dolorosa. E tudo se recompôs porque a vida é assim mesmo, feita de recomeços uma e outra vez, o oceano imenso a encher-me por dentro, por vezes a transbordar com as marés. 

Mas este verão, é tempo de reencontro.


sexta-feira, junho 13, 2014

BICHOS



J'ai toujours aimé la mer sur les plages. Et puis sur les plages désertes de ma jeunesse la boutique a proliféré. Maintenant je n'aime plus que le milieu des océans, là où l'existence des rivages paraît improbable. Mais un jour, à nouveau, sur les plages du Brésil, j'ai compris qu'il n'est pas pour moi de plus grande joie que de fouler un sable vierge à la rencontre d'une lumière sonore, pleine des sifflements de la vague.

Albert Camus [Carnets]



  

Partilhar uma alegria é tão mais premente do que abrir as palavras à dor.

Talvez porque a alegria é breve e se esquece, como o sonho se esvai ao acordar do dia, mas o pesadelo persiste e existe e assusta até ao novo período do anoitecer, no receio de nova presença, o medo intraduzível apertando o coração dos homens, no pavor das tormentas que o céu derrama, ainda que saibamos que logo a tempestade traz a bonança, assim haja tempo na vida que sobra.

Daí a procura insana dos tempos breves, jocosos, inesperados quase sempre, outras vezes gozados antes do tempo programado. Porque a concretização é fugaz como o arco-íris que e anuncia a chuva. Depois, tudo é relativo: o que a uns parece breve a outros é um pedaço de existência, uma batalha, um território a defender, um ciclo de vida a cumprir.

Um jardim, um relvado, um vaso onde pousa uma arbusto alto, um pau que o segura dos ardores dos ventos. Um pisco corajoso pousa e pipila e roda e reclama da presença de um gato pouco lesto mas astuto que se escuda por baixo da folhagem. Ali, a dois passos de mim, a angústia de um progenitor defendendo a prole, quem sabe desviando as atenções do ninho próximo, não chega para apagar o deslumbramento pelos seres da natureza pródiga, o respeito pela inteligência dos não humanos.

Gosto de bichos. Gosto de gatos que fazem o favor de dividir comigo o território que é deles e mo demonstram a cada espaço: um campo relvado é sempre um espaço verde, um espaço convidativo, seja um campo de bola ou de golf, um jardim aparado, um coradoiro de roupa, seja um campo de trigo povoado de papoilas.

No limite, uma manta colorida para cobrir uma cama de criança.