quarta-feira, setembro 10, 2014

Setembro outra vez

Se a excitação é um mecanismo que depende de um capricho do Criador, o amor é, pelo contrário, aquilo que só nos pertence a nós e através do qual escapamos ao Criador. O amor é a nossa liberdade.
                                            Milan Kundera, "A Insustentável Leveza do Ser"


Não sou decididamente o que os olhos dos outros me vêem nem me sinto parte integrante do espaço que me rodeia no seu todo. Com frequência o mundo que partilho é bem outro, não muito distante da infância longínqua em que o melhor amigo era imaginário.

Olho no céu aquele enovelado brilhante de branco a afrontar o azul, a desfazer-lhe a cor, o pincel dos ventos altos soprando e as figuras a sucederem-se num crescendo de fantasias. É Setembro a anunciar as primeiras chuvas, o fim do cacimbo frio e seco, o tempo dos tortulhos que chegavam com os pastores e o gado no final do dia. E os loengos, os loengos saídos daquela sacola do Camboiola – bordada por suas mãos – e às vezes ainda um maboque de odor inigualável.

Bem mais tarde, o Setembro final de férias, minhas férias reais, no tempo em que a abertura das aulas era em Outubro, as minhas férias após as multidões o calor, as cadeiras os chapéus, as toalhas os banhos, os lanches a fruta, o cansaço da praia. Era o regresso lento à escola ainda sem o barulho dos alunos, a minha mãe comigo, as crianças em casa, os doces, as costuras, as rendas no repouso da praia ao fim do dia.

Setembro é agora mais triste, a minha mãe já não está para fazer anos, as crianças já não são, todos os que amei seguiram caminhos, rotas que já não passam por este espaço em meu redor. Mas eu ainda vivo com eles, os dias de maior solidão fazem-nos chegar e eu convivo bem com essa saudade que ajuda a viver, a esquecer a loucura imparável do mundo que vou deixar ficar.


Outros setembros continuarão a rodar no tempo, as noites serenas do outono a chegar, noites mansas depois do pôr-do-sol inebriante a colorir os poentes, os últimos raios a despedirem-se cobrindo o mar de prata. 

2 comentários:

Manuel Veiga disse...

belo crochet de emoções. e palavras belíssimas.

beijo

Rocha de Sousa disse...

Jawaa, não tenho podido seguir estas
coisas, nem nos meus próprios bogues.
Mas estou a sentir em tudo o que escre-
ve aqui, além das imagens, uma evolução belíssima , técnica e espiritual.